Quer se comunicar com a gente? Entre em contato pelo e-mail neumac@oi.com.br. E aproveite para visitar nossos outros blogs, "Neuza Machado 1", "Neuza Machado 2" e "Neuza Machado - Letras".

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

A AUTORIDADE DO ONTEM ETERNO

NEUZA MACHADO


A AUTORIDADE DO ONTEM ETERNO

NEUZA MACHADO


Max Weber questiona: "Por que os homens obedecem?"

Em primeiro lugar, afirma, há a “autoridade do ontem eterno”. Os "subjugados" se conformam com o domínio exercido pelo Patriarca. Partindo desta assertiva de Weber ― ainda repensando a narrativa ficcional A Hora e Vez de Augusto Matraga, de Guimarães Rosa, escrita em meados do século XX ―, posso refletir que, em princípio, o personagem Augusto Esteves se assemelha à “autoridade do ontem eterno”, porque continua uma tradição dos chamados “valores exemplares”. Seu poder “exemplar” foi herdado do pai, o Coronel Afonsão Esteves das Pindaíbas e do Saco-da-Embira.

Fazer um nome que se respeite (que se respeitasse no século XX) não é tarefa para entretenimento, é serviço pesado, para o qual o pioneiro necessita gastar muita energia. Necessita provar sua coragem, impor sua autoridade de “herdeiro do ontem eterno” para se fazer respeitar. Com tais atitudes, esse homem, que foi candidato a um nome nos primórdios de sua vida, gradativamente, passa a ser temido e odiado, ao mesmo tempo, idolatrado, e sua descendência deverá, por força das circunstâncias, continuar tal obra.

O narrador roseano em questão nos apresenta uma pequena comunidade mineira, sertaneja e tradicional, e seu herói: ambos em vias de se degradarem.

Eis o conflito do narrador de A Hora e Vez de Augusto Matraga: a degradação não está no espaço apreendido (o tradicional Sertão de Minas Gerais) — sua singularíssima sensibilidade (sua criatividade) capta a pureza remanescente dos antigos núcleos —; a degradação (a palavra “degradação” aqui não possui sentido pejorativo) da Era Moderna encontra-se nele próprio, porque, porta-voz que é do Artista ficcional do século XX, conhece as várias faces/fases do Homem Moderno.

Eis o conflito desta ímpar narrativa ficcional de meados do século XX: a memória (matéria épica) contrapõe-se às recordações de um mundo para sempre perdido (matéria romanesca/ficcional). O que foi transmitido por sucessivas gerações, encontra-se agora em vias de extinção. O narrador de Guimarães Rosa se dá conta de que esta comunidade existe apenas em suas recordações (matéria lírica). O narrador roseano, desta narrativa em particular, é o representante desta comunidade primitiva e, ao mesmo tempo, burguesa. Por isto, ele é primitivo e burguês. Porque se desenvolve na dialética daquele que o idealizou, cujas origens reproduzem as "comunidades fechadas do passado". Assim como Nhô Augusto herdou a autoridade do “ontem eterno”, ele também herdou esta “autoridade” como duplo de um Sábio que narra suas próprias “experiências de vida” (matéria histórica, paraliterária) como herdeiro de um nome sertanejo. Essas “experiências” não são experiências pessoais, mas, enquanto cursos de vida, são experiências verdadeiras, são transcendentais, irracionais; são as “experiências” daquele que se coloca como porta-voz da burguesia sertaneja do século XX edificada nos pequenos vilarejos dominados por Senhores-de-terra poderosos.


MACHADO, Neuza. O Narrador Toma a Vez: Sobre A Hora e Vez de Augusto Matraga de Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: NMachado, 2006 – ISBN 85-904306-2-6

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

A INEVITÁVEL DINÂMICA DO NARRADOR FICCIONAL DO SÉCULO XX

NEUZA MACHADO



A INEVITÁVEL DINÂMICA DO NARRADOR FICCIONAL DO SÉCULO XX

NEUZA MACHADO


O narrador de Guimarães Rosa (A Hora e Vez de Augusto Matraga) transmite as notícias do sertão arcaico — sertão como distância e fundamento —, e mostra que o poder meio primitivo dos donos-de-terra nos sertões brasileiros foi uma constante e, talvez, ainda o seja em virtude de o sertanejo ser muito apegado às tradições e aos valores antigos. Graças a esse apego, a arte de narrar ainda sobrevive em Minas Gerais, e as figuras que se sobrepuseram ali em força e poder político alcançam ― ficcionalmente ― níveis lendários, equiparando-se aos notáveis heróis registrados nas Literaturas de todos os tempos.

As “experiências de vida”, ditas por Walter Benjamin, são relatadas em sucessivas gerações. É inerente ao sertanejo o hábito de contar estórias, passar para os mais jovens as “experiências” dos corajosos, promover normas de vida, ensinar, aconselhar e incentivar à geração futura o desenvolvimento de atos heróicos. Por esta ótica o povo sertanejo de Minas Gerais mantém um vínculo permanente com os povos primitivos.

O narrador roseano, em princípio, capta essa matéria remanescente dos povos antigos, subjacente no sertão e, por consequência, procura desenvolver uma narrativa dentro dos moldes (anteriormente sacralizados ficcionalmente) da “troca de experiências”. Em princípio, o narrador sertanejo do século XX se propõe a contar a vida de Augusto Esteves, herdeiro de uma dinastia de valentes fundamentada na força física, nas armas e na quantidade de alqueires de terra.

Weber, ao analisar o poder do Estado, diz:

“O Estado é uma relação de homens dominando homens, relação mantida por meio da violência legítima (isto é, considerada como legítima). Para que o estado exista, os dominados devem obedecer à autoridade alegada pelos detentores do poder” (Max Weber)

Esta assertiva de Weber se evidencia no início da narrativa de João Guimarães Rosa. É exatamente isto o que acontecia no século XX (ainda acontece no início do século XXI) nos sertões brasileiros e mesmo nas grandes cidades. A realidade se apresentava/apresenta em seus aspectos mais degradantes: homens (uma minoria no século XX) dominando homens (a maioria) por meio da violência, uns poucos poderosos homens escorados em instituições aparentemente criadas para servir, mas que se transformavam em forças geradoras de dominação.

Neste duplo aspecto se organizam as sequências ficcionais de A hora e vez de Augusto Matraga (narrativa apresentada aos leitores em meados do século XX): narrativa descompromissada e informativa de um mundo imaculado (à moda antiga) e, intrinsecamente, uma narrativa diferenciada em que estas “experiências de vida” do “ontem eterno” são negadas por um outro caótico mundo (mundo do século XX) abalado por sucessivas e inesperadas violências.

Graças a esta dualidade as sequências diegéticas acopladas ao pensamento mimético/criador atingem um plano universal de raras proporções. A narrativa capta a moderna incerteza social que envolvia (antigos) coronéis, jagunços, habitantes de uma pequena comunidade dos sertões brasileiros, e, de repente, percebe-se que aquele espaço singularmente ficcional representa o próprio meio social do século XX, com suas tristes contendas entre irmãos, guerras entre países vizinhos, subordinação do mais fraco pelo poderoso.

Penso em Guimarães Rosa como refletor da burguesia periférica brasileira de meados do século XX. Seu narrador é um personagem burguês. O ponto de vista de Rosa, mediatizado pelo narrador, é um ponto de vista burguês (Atenção: o sentido da palavra "burguês", aqui realçado, não possui acepção pejorativa).

Percebo, nas primeiras sequências da narrativa, o narrador como porta-voz das experiências do dono do ato de narrar, mas, posteriormente, o narrador de A Hora e Vez de Augusto Matraga passa a representar uma determinada classe social. Mesmo que este demonstre uma criatividade ilimitada, e isto se observa quando se liberta do jugo memorialista deixando suas recordações do ambiente do sertão aflorarem espontaneamente, nem por isto deixa de apresentar sua visão social de um mundo que representa suas raízes de vida. Se ele possui sensibilidade para captar o lado primitivo desse mundo, possui também suscetibilidade para observar que esse mundo do século XX se encontra ameaçado por forças desencontradas e poderosas.

Neste duplo aspecto, enquanto apreensão da matéria ficcional, estrutura-se a narrativa de Guimarães Rosa: se o político de meados do século XX (de qualquer camada social) luta pelo poder, ou pelo prestígio advindo do poder, assim também o Senhor de terra do sertão também luta para conservar o seu poder. É uma luta feroz, porque é feita por meio da força física e dominação.


MACHADO, Neuza. O Narrador Toma a Vez: Sobre A Hora e Vez de Augusto Matraga de Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: NMachado, 2006 – ISBN 85-904306-2-6

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

FICÇÃO ROSEANA: INTERCÂMBIO SUTIL COM O INVÓLUCRO MÍTICO

NEUZA MACHADO



FICÇÃO ROSEANA: INTERCÂMBIO SUTIL COM O INVÓLUCRO MÍTICO

NEUZA MACHADO


Ainda repensando analiticamente e reflexivamente a narrativa A Hora e Vez de Augusto Matraga de Guimarães Rosa, torna-se necessário observar como há um intercâmbio sutil com o arcabouço mítico-antigo na primeira sequência (sintagmática).

O personagem Nhô Augusto, ao retornar com Sariema em direção ao Beco do Sem-Ceroula, atravessa um cenário mítico/místico ― as Idades do Mundo se superpõem e se mesclam no sertão mineiro ―, um cenário rústico iluminado por "lanterninhas e muita luz de azeite". O “herói” sertanejo abandona a deidade Sariema no meio do caminho — atitude dos que se julgam poderosos — e desce a ladeira (sozinho).

“Lá em baixo, esbarrou com o camarada, que trazia recado de D. Dionóra: que Nhô Augusto voltasse, ou ao menos desse um pulo até lá — à casa dele, de verdade, na Rua de Cima —, porque havia ainda muito arranjo a ultimar para a viagem, e ela — a mulher, a esposa — tinha uma ou duas coisas por perguntar...” (A Hora e Vez de Augusto Matraga)

Nhô Augusto “nem deixou o mensageiro acabar de acabar” e o obriga a retornar com outro recado, dizendo que não iria, e que era para Siá Dionóra e a menina retornarem para o Morro Azul. Depois, Nhô Augusto saiu em busca “de qualquer luz em porta aberta, aonde houvesse assombros de homens, para entrar no meio ou desapartar” (A Hora e Vez de Augusto Matraga).

Este trecho revela um personagem (mítico) ansioso por contendas e apresenta o um Olimpo sertanejo, representado no povoado pela Rua de Cima, e, no campo, pelo Retiro do Morro Azul. Quim Recadeiro poderá ser repensado como a encarnação moderna da figura de Hermes, o Mensageiro dos deuses. Dona Dionóra “que tinha belos cabelos e olhos sérios”: esta frase remete a uma expressão à maneira de Homero, na Ilíada, ao se referir a Hera, esposa de Zeus: “a deusa dos olhos bovinos” (cf. HOMERO, op. cit.). Dona Dionóra, a esposa traída, que conhecia e temia os repentes de Nhô Augusto: “duro, doido e sem detença, como um bicho grande do mato”. Nhô Augusto, a encarnação do homem primitivo para quem o ato de matar era um procedimento natural. Ele “matava mesmo, como dera conta do homem da foice, pago por vingança de algum ofendido”. É importante lembrar, nesta minha apreciação, que o herói mítico não poupa a vida de seus inimigos. Dona Dionóra resolveu abandonar o Olimpo matrimonial (cenário de grandes sofrimentos) e acompanhar seu Ovídio Moura, símbolo de felicidade. Novamente, o Quim, retornando com a notícia do abandono da Dionóra, "com a notícia de que a casa estava caindo".

Eis a queda do Olimpo pagão e a ascensão do monoteísmo hebraico e, posteriormente, cristão.

O início da narrativa até à queda e a segunda sequência (na qual encontra-se o "herói" adotando uma nova estratégia existencial) simbolizam as “experiências de vida” da comunidade do sertão, material precioso que fundamenta a vida de um povo. As “experiências de vida”, assinaladas por Walter Benjamin em “O Narrador”, encontram-se registradas na memória, e é exatamente a memória do narrador roseano que insiste em ressuscitar o herói, enquanto herdeiro de um nome ilustre, e, consequentemente, em permanecer fiel às tradições do sertão de Minas Gerais.


MACHADO, Neuza. O Narrador Toma a Vez: Sobre A Hora e Vez de Augusto Matraga de Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: NMachado, 2006 – ISBN 85-904306-2-6

terça-feira, 14 de setembro de 2010

A AURA DO HERÓI SERTANEJO DE ANTIGAS CONTENDAS

NEUZA MACHADO



A AURA DO HERÓI SERTANEJO DE ANTIGAS CONTENDAS

NEUZA MACHADO


Recupero agora os dados que remetem à aura do herói de antigas contendas (em A Hora e Vez de Augusto Matraga de Guimarães Rosa): houve um deslocamento de gentes porque a figura imponente do personagem, alteado, peito largo, vestido de luto (a cor negra como símbolo de respeito) se agigantava, diminuindo ainda mais o povo, já por si pequeno na escala social. Nhô Augusto, Zeus sertanejo, pisando pés dos outros, não se incomodando em destruir, varando a frente da massa, se encarando com a Sariema, pondo-lhe o dedo no queixo; assim, a Sariema como uma entre tantas deidades preferidas pelo tonitruante deus “com voz de meio-dia”; o tonitruante que nunca pede, ao contrário, berra, grita, impõe. Um tonitruante deus acostumado a determinar o destino dos mortais; que não oferece o rosto ao povo, mas espera os aplausos, a glorificação.

Entretanto, no momento, o deus sertanejo já não se encontra em um espaço apenas mítico como os deuses da Antiguidade. O mítico agora se amálgama ao místico cristão. Há um leilão de santo, e isto indica que alguma coisa está por acontecer. Se o povo está miticamente encapetado com as atitudes de Nhô Augusto, e sedento por prazeres, como nas festas pagãs, há, por outro lado, o Tião leiloeiro, mensageiro do Deus monoteísta, lembrando àquela multidão o aspecto sagrado do evento: "— Respeito, gente, que o leilão é de santo!..." Maior do que a grandeza de Nhô Augusto é a grandeza do Sagrado.

Isto impõe reafirmar que o início da narrativa remete simbolicamente ao momento de transição, que caracterizou uma passagem: o paganismo politeísta cedendo espaço aos austeros preceitos da fé monoteísta. Preceitos esses fortes, para os quais o próprio herói Augusto Matraga, rebaixando a sua aura mítica, se curvou servilmente, abafando a arrelia. “— Sino e santo não é pagode, povo! Vou no certo... Abre, abre, deixa o Tião passar!” E o povo, surpreendido com a atitude de Nhô Augusto, acalmou-se. O capiauzinho enamorado chamou a sua amada Tomázia, porque para ele ela não era a Sariema, para saírem dali, aproveitando a confusão que se estabelecera — confusão como significante de espaços dogmáticos que se superpõe —; evidentemente, o capiauzinho não conseguiu seu intento, simplesmente porque ainda não chegara o momento do deus pagão sertanejo desmantelar-se juntamente com o seu Olimpo. O Zeus tonitruante sertanejo ainda não se vê ameaçado e separa-os com uma pranchada de mão. Não sabe o capiauzinho que todas as deidades do sertão pertencem ao Senhor-de-terra? Nhô Augusto, o Todo-Poderoso, rompente, mítico, “alargou no tal três pescoções: — Toma! Toma! E toma!... Está querendo?...

O narrador, por enquanto diegético e observador, distanciado dos acontecimentos e, por isto mesmo, consciente de todos os detalhes da narrativa, registra a cena, captando todos os ângulos do tumulto que se instaurou após a iniciativa de briga de Nhô Augusto. O narrador está atento ao detalhe, porque sua função, neste primeiro momento, é reproduzir uma narrativa memorialista, continuar uma tradição (como herdeiro do “ontem eterno”), levar aos pósteros as experiências de vida do povo sertanejo. Por estas razões, ele busca em um passado remoto o modelo de seu herói. O sertão tem suas raízes no mítico. O sertão possui matéria mítica ainda em estado primitivo. Apenas o mundo circundante é outro. Não existe mais a verdade dos antigos, e as experiências de vida comunitária foram suplantadas pela degradação do homem moderno.

Assim, penso nesse início como um momento de transição: Nhô Augusto um herói à moda antiga, um semideus (mítico-pagão), depois, "meio homem e meio santo" (místico-cristão); Sariema (uma das inúmeras deidades do sertão requisitadas pelo Senhor-Todo-Poderoso); Dionóra (a “nora de deus”; a traída e sofrida Hera), consorte legítima e desprezada; Quim Recadeiro (Hermes, o Mensageiro), mensageiro do Destino e mensageiro do Mundo; o sertão como espaço mítico/místico, cenário da memória e futuro palco de acontecimentos insólitos, os quais, por ora, jazem inativos nos compartimentos da recordação.


MACHADO, Neuza. O Narrador Toma a Vez: Sobre A Hora e Vez de Augusto Matraga de Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: NMachado, 2006 – ISBN 85-904306-2-6

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

MITOLOGIA DO DISCURSO FICCIONAL: A GRANDEZA DO NOME

NEUZA MACHADO



MITOLOGIA DO DISCURSO FICCIONAL: A GRANDEZA DO NOME

NEUZA MACHADO


O início da narrativa A hora e vez de Augusto Matraga, do escritor mineiro Guimarães Rosa, reenvia-me a um momento histórico de transição superposto e condicionado no espaço do sertão brasileiro do Estado de Minas Gerais: o momento da mudança mítica ocorrida no mundo.

Quando observo conscienciosamente a primeira sequência ficcional, reconheço o personagem Nhô Augusto como a própria personificação de um deus mitológico. Mais precisamente, o visualizo como personificação sertaneja do Zeus Capitolino dos antigos. Vários referentes remetem-me a esta interpretação. Senão, vejamos: “Matraga não é Matraga, não é nada”. Matraga, apelido que me faz pensar em matraca, barulho, trovões, é muito pouco para caracterizar a estirpe genética do herói.

“Matraga é Esteves. Augusto Esteves, das Pindaíbas e do Saco-da-Embira. Ou Nhô Augusto — o homem — nessa noitinha de novena, num leilão de atrás de igreja, no arraial da Virgem Nossa Senhora das Dores do Córrego do Murici” (A Hora e Vez de Augusto Matraga).

Matraga é Augusto, filho do Coronel Afonsão Esteves. Augusto: nome que remete à idéia de uma pomposa figura, símbolo dos governantes gregos; marca de respeitabilidade, de veneração; marca dos que vieram ao mundo sob bons presságios. Augusto é o homem. Entretanto, muito mais do que Augusto, filho do Coronel Afonsão — observe-se o aumentativo como marca de realeza —, Augusto Esteves é Nhô Augusto, o Senhor de um espaço sócio-substancial onde a heroicidade de um homem alcança o plano mítico. O personagem é, em princípio (na primeira sequência), a personificação do herói, e o sertão é o espaço antigo desse descendente de Zeus. Pari passu com seu poder de homem público, há nele o poder dos que se mitificam negativamente para impor seus desígnios aos menos favorecidos socialmente.

O personagem Nhô Augusto, no início, em sua majestade:

“E, aí, de repente, houve um deslocamento de gentes, e Nhô Augusto, alteado, peito largo, vestido de luto, pisando pés dos outros e com os braços em tenso, angulando os cotovelos, varou a frente da massa, se encarou com a Sariema, e pôs-lhe o dedo no queixo. Depois, com voz de meio-dia, berrou para o leiloeiro Tião:

— Cinquenta mil réis!...

Ficou de mão na cintura, sem dar rosto ao povo, mas pausando para os aplausos.

— Nhô Augusto! Nhô Augusto!

E insistiu fala mais forte:

— Cinquenta mil-réis, já disse! Dou-lhe uma! Dou-lhe duas – dou-lhe três!...” (A Hora e Vez de Augusto Matraga).


MACHADO, Neuza. O Narrador Toma a Vez: Sobre A Hora e Vez de Augusto Matraga de Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: NMachado, 2006 – ISBN 85-904306-2-6

domingo, 12 de setembro de 2010

SOCIOLOGIA DO SERTÃO

NEUZA MACHADO


SOCIOLOGIA DO SERTÃO

NEUZA MACHADO


Meu pensamento sobre o assunto relacionado a Estudos Sociológicos da Literatura se organiza a partir deste questionamento: se o sertão roseano de A Hora e Vez de Augusto Matraga possui matéria mítica (épica) em estado bruto, se é um espaço representativo de um mundo ordenado, onde só há respostas e as perguntas inexistem, quem é o representante da moderna sociedade individualista nascida da produção para o mercado (Conferir: BENJAMIN, Walter. OS PENSADORES, 1980), nesta narrativa genuinamente moderna?

Evidentemente, se acompanho as diretivas da Crítica Sociológica, sobressai-se o narrador do século XX como porta-voz das experiências do Artista Ficcional de origem sertaneja, ou seja, o plenipotenciário do ato de narrar como representante do povo sertanejo, no que se refere às suas origens e às origens das elites burguesas. O narrador roseano é o mediador nos limites das duas classes sociais, ultrapassando assim as fronteiras míticas, fechadas, e passando a vivenciar o para sempre inacabado mundo moderno.

Se o real precisa ser criado e demonstrado logicamente, é necessário que o Artista Ficcional se valha de um narrador em fase de transição para apresentar uma comunidade pura e o seu herói — comunidade já em vias de extinção —, comunidade e herói isolados pelo Caos do Mundo da Modernidade. O narrador aqui é o autêntico personagem moderno (não é o Nhô Augusto), é ele o herói problemático, porque apenas ele, enquanto narrador inquieto, se movimenta entre os dois espaços da narrativa: o perfeito e o inacabado.

O sertão de Minas Gerais (assim como as outras partes do sertão brasileiro) é rico em matéria épica, mas miniatural se observado por um narrador memorialista. A modernidade já vai perdendo contato com a memória e os velhos conselheiros já não ditam normas de vida. O sertão mineiro se revela (e se revelará permanentemente) mais enriquecedor e vasto se observado por um narrador reflexivo, conhecedor de um outro mundo onde os perigos estão à espreita de quem se impor desvendar os segredos do Insólito (do Desconhecido).

Lucien Goldmann questiona o fato de o romance, enquanto fenômeno da Era Moderna, enquanto forma literária complexa, materializar-se, durante séculos, sob diversas maneiras, por intermédio de escritores diferentes entre si, em países distantes uns dos outros, transmitindo, diacronicamente e sincronicamente, no plano ficcional-literário, o conteúdo de cada época. Para Goldmann, a forma romanesca transpõe para o plano literário o cotidiano da sociedade individualista nascida da produção para o mercado.

O normal, numa sociedade produtora para o mercado, seria a relação natural entre homens e bens, relação em que a produção é conscientemente regida pelo consumo futuro, pelas qualidades concretas dos objetos, por seu valor de uso. A produção (capitalista) para o mercado não admite tal consciência e elimina esta relação entre homens e bens em geral. A relação social da produção, na fase de produção para a troca, passa a ser de homens com outros homens, por meio do valor de troca, mediatizado pela moeda ou dinheiro, conforme a teoria do valor que se encontra em Marx.

Esses valores do capitalismo burguês, no que concerne ao texto ficcional roseano, não estão traduzidos claramente, por se tratar, em princípio, de uma narrativa que procura apresentar os valores puros do sertão. Guimarães Rosa, em A Hora e Vez de Augusto Matraga, por intermédio de seu narrador, revela a sua visão do dinheiro e a sua visão do sertão mineiro na entrevista a Günter Lorenz (e, como Artista ficcional, estas idéias prevalecem e se contradizem):

“Não me interessa o dinheiro: venho de um mundo onde ele não adianta muito; lá se necessita de pão, armas, cavalos, e ainda se pratica o comércio da troca” (ENTREVISTA).

Mesmo defendendo estas idéias em seu discurso ficcional, Guimarães Rosa permite aos leitores observar opacamente a realidade burguesa que envolve as representações do sertão. O seu particular e ficcional sertão mineiro é a representação de um espaço puro, mas há em seus domínios personagens degradados: os bate-paus de Nhô Augusto, por exemplo, são formas representativas simbólicas do mundo capitalista. Quando o personagem Nhô Augusto, depois da queda, sem poder, necessita dos serviços de seus antigos homens de confiança, esses se recusam a obedecer-lhe, porque são membros do aparelho ideológico do poder, do qual Nhô Augusto não mais dispõe. Augusto Matraga, pela ótica burguesa, já não possuía o poder, a qualidade de mando.

Em um pequeno parágrafo, o narrador de Guimarães Rosa detecta as representações das normas da sociedade capitalista:

“Fala com Nhô Augusto que sol de cima é dinheiro!... P’ra ele pagar o que está nos devendo... E é mandar por portador calado, que nós não podemos escutar prosa de outro, que seu Major disse que não quer” (A Hora e Vez de Augusto Matraga).

Os bate-paus de Nhô Augusto fazem a degradação do poder, isto é, do valor do dinheiro de quem tem, mas não conseguem corromper o puro espaço de referência do narrador de Guimarães Rosa, porque este é mediador do Artista ficcional do século XX, aquele indivíduo contraditório originário de um mundo em que o valor do dinheiro não tem valor. E o portador calado significa que quem fala é o poder, pois só o poder tem poder de fala.

Eis a questão central de minha tese: o narrador do século XX que fala ou é falado por sua própria narrativa. O narrador do século XX guiado pelo poder da própria palavra. O dinheiro não adianta muito no sertão mineiro (e brasileiro), mas é o poder no mundo capitalista urbano. E o ficcional sertão roseano (ou o real sertão brasileiro, se os meus leitores quiserem assim), mesmo possuindo matéria épica (= matéria mítica - não confundir matéria mítica com Gênero Épico) em estado bruto, está inserido, em sentido diacrônico e sincrônico, como capitalismo periférico, na sociedade brasileira moderna. A sociedade brasileira nasceu com a Era Moderna, e mesmo com o desenvolvimento de processos antigos de vida comunitária, em seu território, como a agricultura, as leis econômicas da Europa (do início da Era Moderna) comandaram as normas econômicas e sociais de seu povo. Assim se entende o fato de o narrador roseano em A Hora e Vez de Augusto Matraga refletir as contradições do Brasil, do capitalismo brasileiro, periférico, do terceiro mundo; entende-se o porquê de o mesmo apresentar sua visão pessoal e social do Mundo Sertanejo, com tais características comunitárias puras e, instintivamente, deixar-se perceber, também, como representante da sociedade capitalista (sociedade repleta de valores impuros).

Esta é a contradição do Artista ficcional do século XX, brasileiro, ao procurar representar o sertão mineiro. Em alguns casos, o humanismo do valor de uso, como característica de uma sociedade primitiva, se recusava a desaparecer em uma sociedade degradada como a brasileira, mas esse valor de uso passa a ser mediatizado pelo valor de troca (moeda, dinheiro). Como no sertão roseano a característica da pureza original de seus personagens é sempre realçada (onde alguns personagens não aceitam valores de mercadoria e querem continuar fiéis ao valor de uso, ao valor em si mesmo dos objetos de uso), qualquer alusão do narrador ao valor de troca capitalista a modificará, pois, alguns, ao adotarem atitudes de vida à moda burguesa, passam a se situar à margem do capitalismo, tornando-se indivíduos problemáticos. Este é o caso dos líderes carismáticos sertanejos, líderes religiosos, como Padre Cícero e Antônio Conselheiro. Estes, geralmente, são criadores de valores em seus domínios. E mesmos estes não conseguem livrar-se da dominação de uma sociedade programada para o comércio, para a troca e consumo de mercadorias, a partir do momento em que a atividade criadora de cada um deles se manifeste exteriormente.

Desde o momento em que o ficcionista produz sua obra, qualquer que seja, e a apresente a um público consumidor, deixa para trás os valores de uso e realiza valores de troca. Vende sua produção. Isto é fácil de entender: na sociedade burguesa (Era Moderna), o homem necessita do dinheiro para a sua sobrevivência. Arte também é trabalho remunerado na moderna sociedade. O Artista consome os produtos essenciais — valores de uso qualitativo —, produtos que só podem ser adquiridos com o dinheiro.

Toda a problemática do homem que procura outros valores (valores genuínos, transparentes), toda a problemática daquele que vive em luta contra os valores degradados é captada imediatamente pela ótica do moderno escritor de ficção. O Ficcionista do século XX, por sua vez, também, poderá deturpar (inconscientemente ou não), a realidade que vê ou imagina. Por esta ótica, o sertão roseano possui inegavelmente características comunitárias — antigas —, mas incontestavelmente também não deixa de apresentar os valores que regem a sociedade brasileira como um todo. Os bate-paus, o major Consilva (representante da contra-ideologia que aspira ao Poder), as contendas políticas vislumbradas na narrativa, são partes de uma engrenagem que movimenta o mundo burguês. O arraial do Murici representa este dito mundo burguês, mesmo sendo um pequeno burgo incrustado no sertão.

O sertão mineiro de Guimarães Rosa reflete os valores puros dos povos antigos, mas contraditoriamente é, também, uma representação da fragmentada realidade burguesa. O personagem Augusto Matraga, em sua segunda fase ficcional, representa-a como herói que busca valores autênticos em um mundo inautêntico feito de ódios, de disputas. Dialeticamente, penso (além da narrativa apresentada) que o verdadeiro herói problemático nas narrativas ficcionais do século XX, representante do mundo moderno burguês, seja o narrador. É ele quem transmite à criatura ficcional seus questionamentos e sua fragmentação interior; é ele que prevê, por intermédio do personagem, seu próprio fim. Lukács já informara que o herói romanesco jamais alcançaria este mundo perfeito, em virtude da ruptura insuperável entre os dois. A morte do personagem simboliza as mortes cotidianas do narrador moderno, prisioneiro de uma realidade social ameaçadora que o obriga a criar e recriar a própria existência.


MACHADO, Neuza. O Narrador Toma a Vez: Sobre A Hora e Vez de Augusto Matraga de Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: NMachado, 2006 – ISBN 85-904306-2- 6

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

DISCURSO FICCIONAL E ESTRUTURA SOCIAL

NEUZA MACHADO


DISCURSO FICCIONAL E ESTRUTURA SOCIAL

NEUZA MACHADO


O romance, no início de seu desenvolvimento histórico, foi biografia e crônica, refletindo assim a sociedade da Era Moderna. Lucien Goldmann (A Sociologia do Romance) postula uma relação entre forma romanesca e a estrutura social em que ela se desenvolveu. As relações econômicas, na sociedade moderna, determinaram as atitudes do homem em relação aos objetos. Se antes o homem medieval se contentava com valores de uso, sistema de primeira onda, utilizando a terminologia de Toffler (A Terceira Onda), com o advento da sociedade moderna burguesa esses valores foram abandonados, em benefício de um sistema no qual o que importa é o lucro, a parte rentável dos objetos transformados em mercadoria destinada ao consumo (o que permanece na sociedade informatizada do século XXI).

As duas estruturas — a do romance paradigmático e a da moderna sociedade — são semelhantes, porque a trama (complexa) do romance moderno (não confundir com o já sacralizado termo “romance” que conceitua as narrativas lineares anteriores à Era Moderna) recria ficcionalmente o conflito e a solidão do homem da Era Moderna (momento do individualismo em oposição ao medieval comunitário), além de reproduzir a sua busca desesperada (sem esperança de realização) de valores inalterados.

Para responder a esses alterados valores humanos do período (resposta camuflada, degradada), a moderna e individualizada sociedade capitalista (incluindo também o momento de transição para a atual ― pós-moderna) estabeleceu a mediação da quantidade do valor do capital. Eis porquê os indivíduos gerados por essa sociedade tumultuada são inautênticos e os “heróis” do romance moderno (romance: espelho dessa sociedade) também.


MACHADO, Neuza. O Narrador Toma a Vez: Sobre A Hora e Vez de Augusto Matraga de Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: NMachado, 2006 – ISBN 85-904306-2-6