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quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

FERNANDO PESSOA E HETERÔNIMOS

AS VÁRIAS FACES DE UM POETA DO SÉCULO XX
NEUZA MACHADO

O século XX poderá ser visto como um momento de cisão histórico-social e estético-literária na História da Cultura Ocidental (semelhante ao que ocorreu no final do século XV). Os sinais desta mudança poderão ser observados a partir dos anos finais do século XIX, e, literariamente, esses mesmos “sinais” poderão ser detectados na estética simbolista, estética esta que como se sabe influenciou os intelectuais, escritores e poetas do século seguinte. A estética simbolista em todas as suas gradações (pintura, música, literatura), sem sombra de dúvida, poderá ser colocada como um “divisor de águas”, tanto no âmbito da Arte quanto no âmbito Histórico-Social.

Repensando principalmente a literatura dos anos iniciais do século XX, não seria demais lembrar que esta tomou forma em meio a um ambiente de caos. O ano de 1914 marca o início da Primeira Guerra Mundial, um acontecimento que já se previa desde o início do século em cada cantinho da Europa. Os anos que antecederam a Primeira Guerra, desde meados do século XIX, já anunciavam o que viria pela frente: a visão de um mundo estilhaçado, circundando seres humanos também estilhaçados, exteriormente e interiormente.

Repensando aquele momento dramático, ouso repensar também a história pessoal de um dos maiores líricos da Literatura do Século XX: Fernando Pessoa, poeta português, orgulho da Nação Portuguesa.

Fernando Pessoa vivenciou dramaticamente aquele período de guerra, e mais ainda, assistiu ao estilhaçamento de sua própria Nação: a morte do penúltimo rei e de seu filho em 1908, a deposição do novo rei D. Manuel, a República em 1910 (cujas propostas de base não se realizaram e se perderam em meio aos desacertos e aos desfacelamentos dos partidos, impedindo que os novos rumos políticos se concretizassem) e, sobretudo, historicamente, acompanhou o desenrolar da Guerra de 1914. Fernando Pessoa “intuiu”, a partir de seu próprio “eu” existencial, o “estilhaçamento” do ser humano, a partir dali, um joguete nas sendas do progresso (ou se quiserem, nas sendas do destino).

Essa “vivência” (por enquanto, não encontro um nome mais apropriado) sedimentou a sua arte poética. Por isto, os vários heterônimos. Se o ser humano, a partir daqueles anos de guerra, tornou-se um ser fragmentado, nada impediria o surgimento de um lírico também fragmentado. Por meio da criação poética, Fernando Pessoa “obrigou-se” a encarnar esse lírico. Ele se “estilhaçou” liricamente, e as diversas faces do Fernando Poeta, cada uma representando os sentimentos desencontrados que o angustiavam, ou quem sabe a sua própria realidade fracionada, receberam nomes especiais: heterônimos que somados ao seu próprio nome o imortalizaram.

Para esta questão dos heterônimos, desejo colocar aqui o meu entendimento: independente dos estudos críticos usuais da obra de Fernando Pessoa (os quais embasados pelas próprias afirmações do poeta fazem a divisão de sua criação poética, catalogando-a em partes estanques, ou seja, os poemas de Fernando Pessoa (ele mesmo), os poemas de Álvaro de Campos, os poemas de Ricardo Reis, os poemas de Alberto Caeiro), penso que os seus poemas, repletos de autêntico lirismo à moda do século XX, pertencem todos a ele mesmo, ao inigualável poeta português. Reconheço a genialidade do mesmo ao formalizar um arcabouço ficcional (ele e seus diversos “eus”) para proteger a sua criatividade poética, mas não aceito compactuar com a idéia de que cada heterônimo sinalize um poeta diferente. Todos os poemas, independentes dos sinais que os diferenciam, possuem em comum a marca de um poeta que procurou significar liricamente seu próprio interior multifacetado e, assim, conseqüentemente, significou as vidas fragmentadas dos homens de seu tempo — infelizes participantes de um determinado século fragmentado.

Este texto de Neuza Machado foi publicado com o título Prefácio no livro Alberto Caeiro (Fernando Pessoa), Poemas. Belo Horizonte: Itatiaia, 2005. Vol. 23, Coleção Excelsior: 7 - 9.

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