Quer se comunicar com a gente? Entre em contato pelo e-mail neumac@oi.com.br. E aproveite para visitar nossos outros blogs, "Neuza Machado 1", "Neuza Machado 2" e "Neuza Machado - Letras".

quarta-feira, 25 de março de 2009

SERTÃO: CASA DA INFÂNCIA

NEUZA MACHADO

A “Poética da casa” de Gaston Bachelard [A poética do espaço] reporta-se interativamente ao sertão da narrativa A hora e vez de Augusto Matraga de Guimarães Rosa. O sertão roseano como a casa inesquecível, com seus recantos secretos, seus refúgios e abrigos.

O artista de origem sertaneja, narrando as aventuras de Augusto Esteves das Pindaíbas e do Saco-de-Embira, recorda (matéria lírica no espaço da ficção) o sertão da infância, seu passado inesquecível, seus fundamentais primeiros anos de vida.

Investigando apenas os trechos que reproduzem o estado anímico do ficcionista — trechos de alto conteúdo lírico —, verifica-se que se encontram além da objetividade histórica. Recordando o sertão, traz à memória a casa da infância, e é por isto que, em um determinado trecho narrativo, se liberta do jugo do narrador experiente (cf.: Walter Benjamim), para “apresentar” liricamente os pormenores da viagem de retorno do personagem Augusto Matraga ao Arraial do Murici.

Mudanças ocorrem no discurso do narrador, graças a esta interferência da matéria lírica. Estas mudanças discursivas representam um momento de transição: o narrador roseano abandonando o cogito(1), sintagmático (vide as narrativas de Sagarana, excetuando, evidentemente, “A hora e vez de Augusto Matraga”), passa a comandar seu processo de ascendência para os cogitos superiores da consciência argumentativa (vide Grande Sertão: Veredas). O narrador — alter ego do ficcionista — se deixa contagiar pelas minúcias do espaço externo do sertão recolhidas em seu íntimo. Recolhe os fragmentos de suas lembranças — suas recordações infanto-juvenis — transformando-as em acontecimentos narrativos. Há uma superabundância de pensamentos que se entrechocam e se ajustam, mas o discurso retórico — característica do literário — impõe suas diretrizes.

De repente, na altura, a manhã gargalhou: um bando de maitacas passava, tinindo guizos, partindo vidros, estralejando de rir. E outro. Mais outro. E ainda outro, mais abaixo, com as maitacas verdinhas, grulhantes, incapazes de acertarem as vozes na disciplina de um corpo.(...) E agora os periquitos, os periquitinhos de guinchos timpânicos, uma esquadrilha, sobrevoando... E mesmo, de vez em quando, discutindo, brigando, um casal de papagaios ciumentos. Todos tinham muita pressa: os únicos que interromperam, por momentos, a viagem, foram os alegres tuins, os minúsculos tuins de cabecinhas amarelas, que não levam nada a sério, e que choveram nos pés de mamão e fizeram recreio, aos pares, sem sustentar o alarido – rrrl, rrrl! rrrl-rrril!...

Os estranhamentos em nível de discurso textual: os fonemas r, i, l agrupados de forma a caracterizarem o alarido dos tuins. Por que a manhã gargalhou com a revoada de pássaros?

Mas o que não se interrompia era o trânsito das gárrulas maitacas. Um bando grazinava alto, risonho, para o que ia na frente: — Me espera!... Me espera!... — E o grito tremia e ficava nos ares, para o outro escalão, que avançava lá atrás.

Os estranhamentos, em nível de discurso textual, aparecem sob novas formas de expressão, registrando as transformações sofridas pelo Narrador e pelo Narrado. Estes se encontram sob as exigências do mágico mundo ficcional, mas todas as contribuições poéticas são bem-vindas. A mimésis ficcional (diferente da mimésis dramática) se sobressai apenas no texto visível. Nhô Augusto é um simples receptor das variações mentais do narrador. Agora, o discurso está repleto de matéria poética: metáforas, antíteses e estranhamentos. Agora, o narrador faz seu personagem cantar velhas cantigas e se encantar com a natureza.

E Nhô Augusto pegou a cantar a cantiga, muito velha, do capiau exilado: “Eu quero ver a moreninha tabaroa, arregaçada, enchendo o pote na lagoa...” Cantou, longo tempo. Até que todas as asas saíssem do céu.

“Asas” conotando “pássaros”. “Asas” apresentando a visualização da grandiosidade do espetáculo do bando de maitacas, maracanãs e tuins voando em direção ao sul, em períodos cíclicos.

Depois que os pássaros passam, Nhô Augusto raciocina: “Não passam mais... Ô papagaiada vagabunda! Já devem de estar longe daqui...” Logo a seguir, observa-se a perplexidade do próprio narrador, interrogando a realidade do texto: “Longe, onde?”, se não há distâncias geográficas no mundo ficcional. Estes estranhamentos explicam o insólito da narrativa, apreendido apenas na camada visível do texto. As recordações da infância permitem esta instabilidade — intercalação de versos sertanejos — através do ato de cantar do personagem.

Como corisca, como ronca a trovoada, no meu sertão, na minha terra abençoada...

O narrador apresentara, antes, um bonito dia ensolarado. Novamente, interrogando a realidade do texto, apresenta aos leitores (ou ouvintes) a sua perplexidade diante de uma descoberta que se delineia subjetivamente, ainda incubada: “Longe, onde?” Intercala outros versos, efetivando um discurso insólito.

Quero ir namorar com as pequenas, com as morenas do Norte de Minas...

Como desejar namorar as morenas do Norte de Minas, se ele, Nhô Augusto, já se encontra no Norte? “Longe, onde?”.

“Norte” simbolizando o mundo ficcional. No literário-arte não há fronteiras histórico-substanciais (“Longe, onde?”), não há distâncias temporais, não há imposições lingüísticas, não impera a lógica da razão. “Longe, onde?”, então, se tudo é possível no mundo de um deus-que-garante-tudo.

É o passado inesquecível do ficcionista que se sobressai, quando o narrador do século XX se descontrola (cf. Walter Benjamim) ao narrar os acontecimentos que pautam a volta de Nhô Augusto. A volta do personagem representa o retorno das recordações da infância e adolescência, a recuperação das imagens da antiga morada. Por isto, o tom poético, o discurso estranho, diferente, que se verifica a partir da decisão do personagem de retornar ao Arraial do Murici.

O narrador informa que seu personagem não percebia os rumos que tomava; o narrador também não percebe os rumos que a narrativa toma. Por meio de contribuição filosófica bachelardiana, há como compreender o impasse ficcional: a casa — o sertão — faz o narrador “devanear”, faz seu personagem poetizar. Sertão inesquecível. O narrador moderno — inserido na sociedade capitalista — não conseguiu esquecer o castelo que permaneceu vívido em suas lembranças. Valores verdadeiros de um passado revigorado no imaginário-em-aberto. Não são os valores objetivos que contam; contam mais as sensações que permanecem no íntimo do ficcionista. Narrador-Poeta ou Poeta-Narrador ou, simplesmente, Poeta? Os Poetas não delegam poderes, apenas sentem, recordam (novamente ao coração), devaneiam; não transitam entre dois mundos diferentes.

Bachelard cita Jung em sua Introdução (A poética do espaço):

Temos que descobrir uma construção e explicá-la: seu andar superior foi construído no século XIX, o térreo data do século XVI e o exame mais minucioso da construção mostra que ela foi feita sobre uma torre do século II. No porão descobriram fundações romanas e, debaixo do porão, acha-se uma caverna em cujo solo se descobrem ferramentas de sílex, na camada superior, e restos de fauna glaciária nas camadas mais profundas. Tal seria mais ou menos a estrutura de nossa alma.

O sertão ficcional de Guimarães Rosa se encontra nas bases da estrutura de vida do narrador, extensivo, portanto, às bases de estrutura de vida do próprio ficcionista. O andar superior foi construído no século XX — narrador moderno —; o térreo — ligado ao sertão mineiro — denuncia os séculos iniciais da História do Brasil ancorados no sertão; mas se observado ponderadamente, verifica-se que esse sertão tem seu alicerce cravado na Era Medieval. Observando as camadas mais profundas, chega-se a uma origem sueva, localizada numa fase pré-medieval de Portugal, num tronco familiar bárbaro, cujo apelido (sobrenome) de família era Guimaranes.

Observe-se o depoimento de Guimarães Rosa ao crítico alemão Günter Lorenz (Entrevista a Günter Lorenz - 1965):

Para sermos exatos, devo dizer-lhe que nasci em Cordisburgo, uma cidadezinha não muito interessante, mas para mim, sim, de muita importância. Além disso, em Minas Gerais: sou mineiro. E isto sim é o importante, pois quando escrevo, sempre me sinto transportado para esse mundo: Cordisburgo. Não acha que soa como algo muito distante? Sabe também que uma parte de minha família é, pelo sobrenome, de origem portuguesa, mas na realidade é um sobrenome suevo que na época das migrações era Guimaranes, nome que também designava a capital de um estado suevo na Lusitânia? Portanto, pela minha origem, estou voltado para o remoto, o estranho. Você certamente conhece a história dos suevos. Foi um povo que, como os celtas, emigrou para todos os lugares sem poder lançar raízes em nenhum. Este destino, que foi tão intensamente transmitido a Portugal, talvez tenha sido o culpado por meus antepassados se pegarem com tanto desespero àquele pedaço de terra que se chama o sertão. E eu também estou apegado a ele.

O sertão é a casa do narrador e do Ficcionista. Dentro da casa íntima de cada sertanejo há um sertão que não se esquece. A literatura de Guimarães Rosa nasceu de sua vida inicial, sua literatura só sabe recordar o sertão. A memória (matéria épica) é insuficiente para transmitir sentimentos que remontam a pré-fase da alma humana inserida na alma de um único homem. Não se objetiva aqui avaliar o fenômeno pela ótica psicológica, mas reconhecer que a primeira morada é a base das futuras recordações. As primeiras lembranças, mesmo que aparentemente esquecidas, permanecem alojadas, armazenadas em íntimos compartimentos. O espaço interior desse sertão — sua intimidade — é captado através (no mais puro sentido etimológico da palavra “atravessar”) do olhar nostálgico do ficcionista (atenção: narrador ¹ ficcionista). Se a narrativa, nas últimas seqüências, se processa por meio de um discurso diferente do comumente usado para reproduzir a realidade, isto se apresenta graças à complexidade de se lembrar — recordar — de quem narra. A recordação é caótica e, pelo prisma da criação, valiosa; por isto, as imagens se encontram dispersas (cf. Bachelard), e, ao mesmo tempo, há um corpo de imagens.

Seguindo ainda as teorizações de Bachelard, verifica-se que esse acúmulo de imagens (ou imaginação além dos limites) aumenta os valores da verdadeira realidade do sertão mineiro (no sentido material). O sertão foi a primeira morada do escritor, o sertão roseano concentra as imagens dessa casa. No sertão da infância, ele foi um ser protegido, antes de tomar para si as rédeas de seu próprio destino. Foi ali que conheceu o calor do fogão-de-lenha e o calor do afeto familiar. Depois, o mundo o envolveu.

Bachelard diz: “a casa é o nosso canto do mundo”. O escritor adquiriu inúmeros talentos, projetou-se socialmente e intelectualmente, transformou-se em cidadão do mundo, mas o sertão permaneceu como seu “canto do mundo “ no mundo.

Eu sou antes de mais nada um “homem do sertão”; e isto não é apenas uma afirmação biográfica, mas também, e nisto pelo menos eu acredito firmemente, que ele, esse “homem do sertão”, está presente como ponto de partida mais que qualquer outra coisa. (...) Este pequeno mundo do sertão, este mundo original e cheio de contrastes, é para mim o símbolo, diria mesmo o modelo de um universo. (Entrevista ao crítico Günter Lorenz)

O sertão foi seu primeiro e verdadeiro universo, e o que veio depois não o satisfez realmente. Não se encontra satisfação particular em um mundo refletor de hipocrisias, e o mundo moderno, mundo que circunda o sertão roseano sem afetá-lo inteiramente, espelhou a degradação do homem do século XX, distante temporalmente dos valores irretocáveis da Antigüidade. O narrador de A hora e vez de Augusto Matraga traslada-se, em sua narrativa, ao “país da infância imóvel” (cf. Bachelard), de onde resgata, por meio da nostalgia, os tesouros de um espaço verdadeiro, pois suas lembranças são verdadeiras, assim como sua antiga felicidade. As histórias de grandes homens ou de violentos senhores-de-terra são verdadeiras, porque se encontram registradas nas recordações, não estão registradas simplesmente na memória, não fazem parte da memória histórica replena de falsos testemunhos.

Bachelard, como filósofo, procura abordar as imagens da casa reflexivamente, diligenciando “não romper a solidariedade da memória e da imaginação”, aspectos racionais da realidade. Os teóricos da literatura dignificam mais o imaginário-em-aberto do texto ficcional. Para Bachelard, “a casa abriga o devaneio, protege o sonhador, permite sonhar em paz”: a casa-sertão de Guimarães Rosa só se faz verdadeira graças ao devaneio, ao sonho do sonhador, às recordações da infância. Bachelard afirma que “os pensamentos e as experiências sancionam os valores humanos, ao devaneio pertencem os valores que marcam o homem em sua profundidade”. O objetivo do narrador roseano não é a aprovação dos valores sertanejos (matéria épica); é mais importante realçar os valores que marcam esse povo em sua profundidade. Por isso, o narrador “sonha em paz” (Bachelard), quando recria o sertão da infância, pois assim valoriza um espaço que lhe é caro, vivenciado em um clima de devaneio. As lembranças do narrador encontram-se ancoradas nesse sertão de sonho, integra pensamentos, imagens, recordações. Nessa integração sustenta-se o retorno de Nhô Augusto (agora, personagem secundário, uma vez que, de ora em diante, o personagem principal será o próprio narrador), retorno pautado por um discurso intrincado, no qual a realidade se encontra modificada pelo crivo dos sentimentos interiorizados. Neste discurso (típico da estética de transição do modernismo para o pós-modernismo), vale mais a criatividade do imaginário-em-aberto poetizado, mesmo que esta criatividade apareça dentro dos moldes ficcionais.

Este artigo faz parte de um capítulo da Tese de Doutorado de Neuza Machado: DO PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL (Sobre a obra ficcional de Guimarães Rosa), defendida na Pós-Graduação da Faculdade de Letras da UFRJ, já registrada na Biblioteca Nacional/Ministério de Educação e Cultura (MEC), Rio de Janeiro.

Este artigo foi publicado em MOMENTOS DE CRÍTICA LITERÁRIA IX – ATAS DOS CONGRESSOS LITERÁRIOS DE CAMPINA GRANDE – 1994 (Coord. e Org. de Elizabeth Marinheiro). Campina Grande: Editora Universitária, 1996, p. 290-295).

segunda-feira, 2 de março de 2009

SERTÃO ROSEANO: UMA LEITURA BACHELARDIANA

NEUZA MACHADO

Observando e dialetizando o sertão em A hora e vez de Augusto Matraga, João Guimarães Rosa remexe a poeira da realidade sertaneja e se deslumbra com as novas possibilidades literárias que estão, agora, à sua disposição. Neste momento, o Artista brasileiro alcançou o cogito(2) da consciência questionadora e suas lembranças do sertão da infância serão, de ora em diante, reavaliadas ficcionalmente. Nos contos iniciais de Sagarana, o narrador experiente das comunidades fechadas do passado [cf.: Walter Benjamim] se materializou, direcionando-o para a elaboração de narrativas exemplares. Entretanto, graças a esta nova perspectiva dialetizada, ele intui a possibilidade de ultrapassar a sublimação condicionada da realidade convencional para o território da sublimação absoluta da realidade literária. Propõe, em seguida, em Grande Sertão: Veredas, a examinar e descrever o interior maravilhoso de uma comunidade primitiva, sob os ditames da perspectiva maravilhada, ainda ligada à perspectiva dialética. Por este novo ponto de vista ficcional, há a ultrapassagem da crosta, e um sertão diferente do sertão da primeira fase surge, mas ainda conservando a influência da perspectiva anterior.

A terceira perspectiva de intimidade é a que revela um interior maravilhoso, um interior esculpido e colorido com mais prodigalidade do que as mais belas flores. Tão logo a ganga é retirada, assim que o geodo é aberto, um mundo cristalino nos é revelado; a seção de um cristal bem polido revela flores, entrelaçamento, figuras. Não se pára mais de sonhar. Essa escultura interna, esses desenhos íntimos em três dimensões, essa efígies e retratos estão ali como belezas adormecidas. [Bachelard. A terra e os devaneios do repouso. S.P.: Martins Fontes, 1990: 23]

Não se pára mais de sonhar, porque, além de alcançar o estágio da perspectiva maravilhada, o sonhador do sertão está saindo da “meia-noite psíquica, onde [germinavam] virtudes de origem” [Bachelard. O direito de sonhar. RJ: Bertrand Brasil, 1991, p. 160], e retornando ao plano dos sonhos aumentadores, dilatados e retos, da vigília do amanhecer. Encontra-se no espaço intermediário entre o sono profundo e o despertar, começando já a administrar seus sonhos grandiosos e coloridos, escrevendo as quinhentas e sessenta e três páginas de Grande Sertão: Veredas num só fôlego.

(...) O centro possui forças novas. O ser era plástico, ei-lo agora plasmador. Em lugar de um espaço com dimensões preferidas, direções desejadas, eixos de agressão. Como são jovens as mãos quando se fazem a si próprias promessas de ação, promessas de antes do amanhecer! O polegar toca o teclado dos outros quatro dedos. Uma argila de sonho responde a esse tato delicado. O espaço onírico próximo ao despertar possui feixes de retas finas; a mão que espera o despertar é um tufo de músculos, desejos e projetos. [Bachelard (1991): 162]

Nos domínios do devaneio do despertar (multiplicidade do cheio, do maravilhado), o ficcionista não se preocupa em recuperar sintagmaticamente as imagens reprodutoras do sertão (não há mais a seqüência lógica das imagens). Agora, o espaço ficcional é, em sua totalidade, horizontal e vertical e “enche-se de objetos que provocam mais do que convidam” [Bachelard (1991): 162]. O longo narrar de Riobaldo representa o auge dessa fase. As forças oníricas se multiplicam, os sonhos se dilatam e o sertão do passado se transforma numa imensa travessia de vida, subordinando-se à memória, aos questionamentos e às recordações.

O narrador Riobaldo pede emprestado o olhar do Criador Literário, para que a narrativa alcance os domínios da autêntica criatividade literária. Este foi também, na infância, habitante daquele lugar de pura maravilha. Viu as árvores, as flores, os caminhos, o povo; conheceu o calor e o frio; partilhou dos hábitos; ouviu as estórias de honradez e bravura, mas adquiriu, posteriormente como participante ativo da moderna sociedade brasileira, outros valores. Ao desenvolver sua longa narrativa, agora sob a inspiração da perspectiva maravilhada — o que teoricamente chamamos de plano mítico-substancial — ele descobre o lado resplandecente dessa realidade que o faz sonhar, obrigando seu narrador-personagem a acompanhá-lo em seus devaneios luminosos.

Observemos um trecho de A hora e vez de Augusto Matraga:

E ele achava muitas coisas bonitas, e tudo era mesmo muito bonito, como são todas as coisas, nos caminhos do sertão.

Parou, para espiar um buraco de tatu, escavado no barranco; para descascar um ananás selvagem, de ouro mouro, com cheiro de presépio; para tirar mel da caixa comprida da abelha borá; para rezar perto de um pau-d’arco florido e de um solene pau-d’óleo, que ambos conservavam, muito de-fresco, os sinais da mão de Deus. E, uma vez, teve de escapar, depressa, para a meia-encosta, e ficou a contemplar, do alto, o caminho, belo como um rio, reboante ao tropel de uma boiada de duas mil cabeças, que rolava para o Itacambira, com a vaqueirama encourada – piquete de cinco na testa, em cada talão sete ou oito, e, atrás, todo um esquadrão de ulanos morenos, cantando cantigas do alto sertão. [Guimarães Rosa, A hora e vez de Augusto Matraga]

O narrador aqui, direcionado pelo Criador Literário, obriga seu personagem Augusto Matraga a apreciar o aspecto exterior do sertão. Neste momento de transição criativa submetida à perspectiva dialetizada, o ficcionista coloca o sertão da infância diante de seus próprios olhos e, posteriormente, transporta-se, como num passe de mágica, para o interior desse sertão, miniaturizando-se, para acompanhar de perto o olhar de seu personagem-narrador, descobrindo, aos poucos, as riquezas desse temporariamente minúsculo espaço.

E também fez, um dia, o jerico avançar atrás de um urubu reumático, que claudicava estrada a fora, um pedaço antes de querer voar. E bebia, aparada nas mãos, a água das frias cascatas véus-de-noivas do morro, que caem com tom de abundância e abandono. Pela primeira vez na sua vida, se extasiou com as pinturas do poente, com os três coqueiros subindo na linha da montanha para se recortarem num fundo alaranjado, onde, na descida do sol, muitas nuvens pegam fogo. E viu voar, do mulungu, vermelho, um tié-piranga, ainda mais vermelho – e o tié-piranga pousou num ramo do barbatimão sem flores, e Nhô Augusto sentiu que o barbatimão todo se alegrava, porque tinha agora um ramo que era de mulungu. [Guimarães Rosa, A hora e vez de Augusto Matraga]

De acordo com Bachelard, “todo conhecimento da intimidade das coisas é imediatamente um poema” [Bachelard (1990): 10]. O ficcionista, mediante seu narrador, até então captara apenas as belezas externas do sertão; agora, depara-se com a intimidade desse mesmo sertão. O minúsculo começa a transformar-se em imenso, sob as ordens dessa visita minuciosa do olhar atento.

Nessa fase de transição, fase sem dúvida alguma criativa, o escritor brasileiro observou o lugar da infância transmutativamente, questionadoramente, poeticamente, e viu, nessas minúcias, belezas encantatórias. Essa fase propiciou-lhe o reconhecimento de um plano maravilhoso (no sentido técnico do termo), de “um interior esculpido e colorido com mais prodigalidade do que as mais belas flores” [Bachelard, op. cit.], um mundo submetido à perspectiva maravilhada do narrador sertanejo e, ao mesmo tempo, pós-moderno.

Graças a essa fase embrionária, ou de transição, ou dialética (A hora e vez de Augusto Matraga), o escritor predispõe-se a criar a sua obra maior, Grande Sertão: Veredas, obra de ficção, repleta de matéria mítica, e muitas vezes classificada erroneamente como narrativa épica.

Caminhando com Nhô Augusto pelos caminhos do sertão, em A hora e vez de Augusto Matraga, espiando o buraco de tatu, escavado no barranco, o Artista, muito além do narrador, alcançou a possibilidade de remexer a fundo os segredos de sua matéria de análise, graças ao poder da imaginação dilatada.

Depois da transição, não parou mais de sonhar/criar, e, em Grande Sertão: Veredas, páginas e páginas vieram à tona, sob as ordens da perspectiva maravilhada, registrando e recriando a grandeza de um mundo até então obscuro e fechado, modelado nas primeiras narrativas de Sagarana pela técnica da oralidade. Remexendo a poeira desse mundo de formas vagas, intuiu o momento da criação e o abandono da repetição, percebendo que essas formas vagas necessitavam ser significadas.

A criação de Grande Sertão: Veredas é o momento de conscientização de suas novas perspectivas ficcionais. Nessa fase, escritor e narrador se unem intimamente, formando o aspecto singular do personagem Riobaldo. Por intermédio dessa união, busca a profundidade do interior do sertão, remexe a superfície da terra, retira a ganga do geodo, e esculpe, com essa nova matéria, as várias figuras e formas que compõem o espaço místico-mítico de suas lembranças, espaço recriado por intermédio dos impulsos estéticos dos sonhos mais grandiosos.

Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade. (...) Esses gerais são sem tamanho. [Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas]

Eis o momento de penetração na crosta de terra do sertão. Submetido à perspectiva maravilhada, o Artista remexe a poeira de terra, ultrapassa a crosta e retira do fundo os segredos abrigados sob toneladas de pó. Os gerais são sem tamanho, e, agora, também, são sem tamanho os sonhos sertanejos do Criador. O rio Urucuia passa a adquirir dimensões especiais, e seus reflexos proporcionam imagens grandiosas. A matéria água aqui recebe a gota de tinta, permitindo-lhe uma penetração maior em seus domínios. As paisagens do sertão reproduzem uma determinada realidade relembrada nos momentos de íntima solidão.

Observadas por este prisma, em Grande Sertão: Veredas convivem as duas perspectivas bachelardianas, aqui retomadas como bases teóricas: a dialética — iniciada com A hora e vez de Augusto Matraga — e a maravilhada.

O personagem-narrador Riobaldo, sujeitando-se à vontade da imaginação minuciosa do Artista ainda preso à perspectiva dialética, insinua-se em toda parte, alcança todos os espaços, conhece todas as veredas do sertão; enrola-se em suas divagações, e suspira pensativamente o passado.

Travestido de Riobaldo, o Artista pós-moderno visita sua infância inesquecível, ancorada no plano das probabilidades infinitas; transita nos recantos desse espaço, ressuscita os jagunços, que povoaram seus sonhos infantis, seus medos e superstições. Valendo-se dessa visita, protege-se das angústias do mundo moderno, realidade palpável e angustiante, repleta de seres ansiosos e doentes.

O sertão, nesta narrativa, é simbolicamente o sussurro [o chamado] que o induz a penetrar as camadas profundas das confortantes recordações; é o abrigo entre as finas camadas de terra, ou entre os suaves reflexos das águas — o Verde, o Chico, o das Almas, o Urucuia, o rio maior, berço dos deuses sertanejos.

Aumentadas nos sonhos da infância, vejo de muito perto as migalhas secas de pão e a poeira entre as fibras de madeira dura ao sol. [Tzara. In.: Bachelard (1990: 15]

A dialética do pequeno e do grande se instala nas páginas de Grande Sertão: Veredas. A imaginação criadora transmuda o seu objeto de análise: as areias do Suçuarão – deserto – realçam o “estralal do sol” [op. cit., p.50] e a fome intensa, real, dos jagunços: “Era uma terra diferente, louca, e lagoa de areia. (...) O sol vertia do chão, com sal, esfaiscava” [op. cit.: 44]; o rio das Almas se agigantava, caindo dos altos claros da montanha das Almas. Essas lembranças de paisagens denunciam um sertão alargadamente mítico.

Quem me ensinou a apreciar essas belezas sem dono foi Diadorim. (...) Quando o senhor sonhar, sonhe com aquilo. Cheiro de campos com flores, forte, em abril: a ciganinha, roxa, e a nhiíca e a escova, amarelinhas... Isto — no Saririnhém. Cigarras dão bando. Debaixo de um tamarindo sombroso... Eh, frio! Lá geia até em costas de boi, até nos telhados das casas. Ou no Meãomeão – depois dali tem uma terra quase azul. Que não que o céu: esse é céu-azul vivoso, igual um ovo de macuco. Ventos de não deixar se formar orvalho... Um punhado quente de vento, passante entre duas palmas de palmeira... Lembro, deslembro. [Op. cit.: 24]

O escritor brasileiro revira o pó da terra, suas substâncias, em seus aspectos grandes e pequenos. “Se sabes pôr para fora o que está dentro e para dentro o que está fora, diz um alquimista, és um mestre da obra” [Bachelard (1990): 17]. A terra do Meãomeão é quase azul, não da cor azul do céu, é um céu-azul vivoso, só visível nos sonhos ousados. Ele revira e limpa o sertão. O sertão roseano é puro e limpo, mesmo circundado pelas impurezas da modernidade, porque nascido das imaculadas recordações da infância.

Foi um arraso de um tirotêi, p’ra cima do lugar Serra-Nova, distrito de Rio Pardo, no ribeirão Traçadal. Agente fazia má minoria pequena, e fechavam para riba de nós o pessoal dum Coronel Adalvino, forte político, com muitos soldados fardados no meio centro, comando do Tenente Reis Leme, que depois ficou capitão. Agüentamos hora mais hora, e já dávamos quase de cercados. (...).

Trape por meu cavalo — que achei — pulei em meu assento, nem sei em que rompe-tempo desatei o cabresto, de amarrado em pé de pau. Voei, vindo. Bala vinha. O cerrado estrondava. (...) Uma duas ou três balas se cravaram na borraina de minha sela, perfuraram de arrancar quase muita paina do encheio. (...) Baleado veio também o surrão que eu tinha nas costas, com poucas minhas coisas. E outra, de fuzil, em ricochete decerto, esquentou minha coxa, sem me ferir, o senhor veja: bala faz o que quer – se enfiou imprensada, entre em mim e a aba da jereba! Tempos loucos... Burumbum! [Guimarães Rosa. Grande Sertão: Veredas: 18]

Tempos loucos, tempo épico, tempo escondido na poeira sertaneja. Os alimentos, por exemplo, são perigosos: a mandioca doce convive com a mandioca brava, que pode matar; as águas dos rios, riachos e poços possuem qualidades díspares, pois podem matar a sede, no sentido salutar do verbo matar, mas, também, matar o sedento se estas estiverem contaminadas por minerais ou plantas nocivas à saúde. “Tem até tortas raças de pedras, horrorosas, venenosas – que estragam mortal a água, se estão jazendo em fundo de poço; o diabo dentro delas dorme: são o demo” [Op. cit.: 10]. O apenas visível, que nos contos de Sagarana cerceava a imaginação literária, foi transposto. O pequeno sertão, reduto de retorno e busca, transformou-se, tornou-se um gigante, graças à imaginação maravilhada do sonhador. Agora, o sertão é apenas do Criador, porque cabe por inteiro em suas mãos demiúrgicas, dilatando-se infinitamente através de seu olhar. “O minúsculo é enorme! Para assegurar-se disso, basta ir em imaginação habitá-lo” [Bachelard (1990) p. 12]. As pequenas guerras entre jagunços alcançam proporções épicas, ampliadas pela perspectiva maravilhada. Realçados por esta perspectiva, os alimentos tornam-se perigosos, as águas dos rios, riachos, poços, venenosas. Os limites visíveis foram transpostos: o Artista capta a essência dos elementos e os diviniza.

O amor também é dialetizado, alcançando, agora, a perspectiva maravilhada:

Eu era só mole, moleza, mas que não amortecia os trancos, dentro, do coração. Arfei. Concebi que vinham, me matavam. Nem fazia mal, me importei não. Assim, uns momentos, ao menos eu guardava a licença de prazo para me descansar. Conforme pensei em Diadorim. Só pensava era nele. (...) Eu queria morrer pensando em meu amigo Diadorim. (...) Com meu amigo Diadorim me abraçava, sentimento meu ia – voava reto para ele. [Op. cit.: 19]

O personagem-narrador, alter ego do ficcionista, vive o avesso do amor; questiona este sentimento desconhecido que o incomoda e o enleva; sentimento possível nos domínios do mito.

Depois da mítica luta, em Serra-Nova, distrito de Rio Pardo, no ribeirão Traçadal, surge o mítico amor do jagunço Riobaldo por seu amigo Diadorim. “O verdadeiro amor é selvagem e triste; é uma palpitação a dois nas trevas...” [Lawrence, D. H. In:. Bachelard (1990): 22]. O mundo mítico é o mundo das trevas. Diadorim, dos longos silêncios, dos olhos verdes misteriosos, é a essência do amor mitificado. Graças a esse amor, Riobaldo aprendeu a apreciar as belezas sem-dono do sertão: os rios, as cachoeiras; o cio da tigre preta na Serra do Tatu; a gargaragem de onça; a garoa rebrilhante da Serra dos Confins; a madrugada quando o céu embranquece; a garoa da Serra-da-Raizama, “onde até os pássaros calculam o giro da lua – se diz – e canguçu monstra pisa em volta. Lua de com ela se cunhar dinheiro.” [Guimarães Rosa, op. cit.: 24]

Ao dialetizar o sertão, revolvendo a terra mítica (Deus e diabo; masculino e feminino; bem e mal; juventude e velhice...), o Artista se extasia com as descobertas de seu personagem, extasia-se também com o repensar de velhas ideologias. O amor em Grande Sertão: Veredas é maior, é selvagem e triste, porque Diadorim representa o próprio sertão, eternamente amado, morto em seu jazigo do passado, mas vivo nas recordações do amante; um amor não concretizado por exigências históricas.

Agora, já é possível compreender a ambigüidade de tal relacionamento: Diadorim é um jagunço, corajoso, imbatível, é homem; o sertão é másculo. O personagem-narrador não aceita amar a um seu igual. No entanto, o Artista (o Ficcionista, o Criador) ama o sertão da infância, e o sertão da infância é por força ambíguo, é feminino e masculino, é aconchegante e terno, mas é também violento e guerreiro. E eis aqui a dialética do masculino/feminino: o sertão é Diadorim e Diadorim é o sertão. Sertão criado sob a égide do mito e do místico. Os anjos não têm sexo definido; as duas essências existem e se transmutam.

O Artista conhece os meandros de seu próprio sonho, as veredas do plano mágico e as exigências do mundo moderno. Ele pode amar o sertão; seu personagem Riobaldo — seu alter ego — pode amar o guerreiro Diadorim?

Seu personagem — másculo — não pode amar Diadorim, seu companheiro de lutas épicas, porque a sociedade moderna impõe preceitos de vida. A dialética masculino/feminino se faz presente, ao longo da narrativa, para salvar esse amor, concebido além dos limites da realidade ordinária: o lado feminino do sertão aparece em sua grandeza mítica, transformando o macho em fêmea; transformando Reinaldo/Diadorim em Maria Deodorina da Fé Bettancourt Marins, “que nasceu para o dever de guerrear e nunca ter medo, e mais para muito amar, sem gozo de amor...” [ Op. cit.: 565]

O escritor se contagia com a sua descoberta: seu amor pelo sertão é uma palpitação a dois nas trevas, nas trevas do pensamento mítico e criador. O seu íntimo sertão é masculino e forte, e feminino e frágil, assim como Diadorim e Maria Deodorina, duas pessoas distintas numa só encarnação; a terceira pessoa — essência divina — é o Sertão. O Artista aprofunda-se nesse ato de remexer a poeira da terra e penetrá-la, porque cada vez mais busca o seu passado sertanejo: mundo mítico, estranho, verde e andrógino; mundo de Riobaldo e Diadorim, o jagunço de olhos verdes (o verde do sertão), estranhos e silenciosos (sertão estranho e silencioso), Diadorim, a dos silêncios.

Que vontade era de pôr meus dedos, de leve, o leve, nos meigos olhos dele, ocultando, para não ter de tolerar de ver assim o chamado, até que ponto esses olhos, sempre havendo, aquela beleza verde, me adoecido, tão impossível. [Op. cit.: 43]

Eis o chamado do sertão. Não é muito difícil, agora, compreender os estranhamentos de Diadorim, o jagunço de olhos verdes, diferentes e silenciosos. Aquela beleza verde. Para o sertanejo do passado é impossível possuir novamente o sertão, apesar do chamado que vem de distâncias temporais. Para o adulto citadino, nascido nas gerais, o sertão da infância encontra-se distante no tempo, suspenso no plano vertical infinito, porque houve um momento de rejeição anterior, restando agora apenas as lembranças.

Aqui, faz-se indispensável uma observação: o sertão do passado morre com Diadorim (o sertão em seu aspecto mítico-pagão), mas será ressuscitado na fase seguinte (Primeiras estórias, Estas estórias, até o final), sob o comando da perspectiva de intensidade substancial infinita, “onde o interior [do sertão] é conquistado no infinito da profundeza para o infinito dos tempos.” [Bachelard (1990): 27]

Falaremos, posteriormente, ao analisarmos “A terceira margem do rio”, de um sertão intacto, vivo, irreal, depositado numa canoinha de nada, rio abaixo, rio acima, navegando ao sabor das recordações sem limites.

O ficcionista intui e antecipa esse futuro momento narrativo: “as coisas que acontecem, é porque já estavam ficadas prontas, noutro ar, no sabugo da unha; e, com efeito, tudo é grátis quando sucede, no reles do momento” [Op. Cit.: 408]. As coisas acontecem suspensas no instante entre o antes e o depois [Bachelard], propiciando uma terceira margem surreal, no vertical do tempo infinito e solitário. Riobaldo, por ora, copia o seu destino, porque seu Criador, no plano da pura maravilha, descobriu que Diadorim é o sertão e vice-versa, assim como Riobaldo, o cego Borromeu, e todos os outros personagens.

Na meia-detença, ouvi um limpado de garganta. Virei para trás. Só era o cego Borromeu, que moveu os braços e as mãos; feio, feito negro que embala clavinote. Sem nem sei por que, mal que perguntei:” — Você é o sertão?!” [Op. cit.: 552]

No meio da batalha, Riobaldo descobre o lado feio do sertão: o cego Borromeu é feio e representa também o sertão. Diadorim é o lado bonito; o cego inspira medo e nojo, assim como as batalhas sangrentas entre jagunços. O cego não mata, mas os jagunços matam; o sertão mata e morre miticamente — seu aspecto pagão — nos sonhos do ficcionista, assim como o suave e destemido Diadorim, ou Maria Deodorina, também prestes a morrer num combate extraordinário, mas que ficará eternamente vivo no mundo da ficção.

Não ter de tolerar de ver assim o chamado: o sertão chama o Artista mediante as lembranças da infância. Seu interior maravilhoso, colorido, inspira-lhe férteis páginas. As belezas da natureza, os combates entre jagunços (matéria mítica), o Amor maior (matéria poético/ficcional), vêm à tona saídos da imaginação maravilhada. A terra do sertão (masculina e feminina) se amalgama aos sensíveis rios (femininos e masculinos), entrelaçam-se. E eis uma nova dialética: terra-masculina e rios-femininos e vice-versa. As águas são naturalmente femininas, simbolizando Amor, Maternidade, Encantamento, mas, de acordo com a visão de quem as vê, podem também se transformar em matéria masculina. A terra e a água, amalgamadas miticamente, inspiram essa fase roseana dialética e maravilhada, que levará o escritor, posteriormente, aos cogitos superiores de seu intelecto singular.

Este artigo, sobre a obra de Guimarães Rosa, faz parte da Tese de Doutorado de Neuza Machado. Título: DO PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL (tese defendida na Universidade Federal do Rio de Janeiro).

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

DIVINO DO CARANGOLA

A MÁGICA PRAÇA DE UM LUGAR DIVINO
NEUZA MACHADO

Divino, 09/02/2003

A pracinha é a da Cidade de minhas raízes. Estou esperando o ônibus que me levará de volta ao Rio de Janeiro. Rimas à parte, hoje a Cidade está magicamente iluminada pelo sol de fevereiro. Um Domingo ensolarado de fevereiro. As imagens da televisão da Rodoviária não param de mostrar os encantos do Havaí [a voz do locutor de um programa que repete um esporte de americanos, o surfe, sacode a solidão de um Domingo no interior]. Um homem passa pedindo dinheiro. O senhor de chapéu de palhinha não lhe deu dinheiro [“— Não vou lhe dar dinheiro pra comprar cachaça, não senhor!”]. O deserdado da boa sorte no mundo não desistiu de ganhar seu dinheirinho. Um pouco trôpego, aproxima-se de mim [“— Dona, me dá um trocadinho pra comprar um pão!”]. Digo-lhe que não tenho trocado, mas acabo sacudindo a bolsinha e dando-lhe vinte e cinco centavos. A colaboração é pequena, porque sei que é para comprar cachaça. Ele avalia a pratinha de vinte e cinco centavos [“— Deus que ajude a senhora!”]. Reconheço que a colaboração é pequena, um real não iria fazer-me falta [mesmo sabendo que é para a cachaça]. [“–—Deus que ajude a senhora!”]. Deus há de ajudar-me! Preciso muito da ajuda de Deus. Não sei o que me reserva o futuro.

Estou sentada no grande banco da Estação Rodoviária. Alguns motociclistas passam; jovens casais passeiam de braços dados em volta da Praça. Duas moças estão sentadas ao meu lado. Já saborearam seus deliciosos sorvetes de fabricação caseira e esperam também um ônibus.

Cheguei cedo à Rodoviária da Iluminada Cidadezinha. Algumas moças descem a ladeira que circunda a Igreja da Cidade, dirigindo velozes motocicletas. Neste exato momento, outras duas moças passam de motocicleta, alegres, felizes, usando reduzidos shorts, à moda das garotas do Rio de Janeiro. Com certeza, são de lá, e estão aqui em férias. Não acredito que elas sejam daqui, mesmo sabendo que a minha Cidade de Minas, interiorana, luta para alcançar as benesses do progresso do século XXI. Tenho plena consciência de que os jovens divinenses lutam para se modernizarem, contrariando as severas tradições, em um grave momento de pós-modernidade. Estão vivendo um impasse. As leis antigas do lugar ainda permanecem sob as cinzas da Era Moderna e os grupos progressistas já caminham para a Pós-Modernidade. As últimas Idades do Mundo se entrelaçam ante os meus olhos deslumbrados, neste preciso momento, e nesta tão amada Cidade do interior de Minas Gerais. O meu amor por esta Cidade não possui limites. As pessoas que estão à minha volta, por enquanto, não têm conhecimento deste meu grande afeto por elas e pela Cidade que as abriga.

O homem voltou. Já bebeu a sua cachaça e quer pedir-me mais dinheiro. Mal abre a boca para pedir-me e eu respondo-lhe condoída, penalizada de sua triste sorte: “— Já lhe dei dinheiro!” Ele sai cambaleando. Coitadinho! Ou será que a coitada sou eu? Até este momento, repleta de responsabilidades diárias, mal tendo tempo para apreciar as últimas maravilhas do Mundo. Agora, tenho! Estou sentada em um grande banco da Rodoviária, diante de uma encantadora Praça do interior de Minas Gerais, repleta de sonhos e esperanças, apreciando as diversas Eras do Mundo a entrelaçarem-se ante os meus olhos deslumbrados.

Os habitantes do lugar olham-me curiosos. Desconfiam que partilho com eles o conhecimento de seus mágicos e antigos segredos. Mesmo que a minha aparência seja diferente, de quem mora há anos em uma Cidade Grande, eles sabem que a minha massa corpórea é oriunda da matéria mítica deste pequeno lugar. É verdade! O lugar é pequeno, mágico, aconchegante, mas o brilho de sua aura é imensurável. Aprecio a movimentação ao meu redor. Com certeza, pelo menos alguns dos que estão aqui, olhando-me, são meus parentes de sangue [e eu ainda não os conheço!].

O sorveteiro aproxima-se. Ele sabe que vou comprar-lhe um sorvete. Peço-lhe um sorvete de milho verde, para metaforicamente saborear o gosto de minhas origens meio divinas. Agora, ele conversa com as duas moças que estão sentadas ao meu lado. Uma delas está rindo, feliz, conversando com o sorveteiro. Ele pergunta-lhe de onde ela é, onde ela mora. Com certeza, ela mora nos arredores, em uma das centenárias grandes Fazendas de café da região.

A minha presença na Rodoviária é como se fosse algo insólito para os habitantes do lugar. Afinal, estou aqui, esperando o ônibus do Rio de Janeiro, olhando atentamente a movimentação do lugar, e escrevendo ininterruptamente. “O que será que ela está escrevendo?”, pensarão. Estou registrando minhas impressões mais caras. Estou intimamente recordando a minha infância, as minhas antigas e bem vividas férias passadas aqui, neste lugar. Estou de volta ao meu aconchego!

A pracinha é antiga. Desde que me entendo por gente, conheço esta pracinha. As árvores são as mesmas de minha infância? Penso que são! São pés de Ficus, plantados há muito tempo, erguendo-se majestosos no pequeno quadrado a eles destinados. No momento, algumas pessoas estão voltando da Igreja. Assistiram à missa das onze, ou onze e meia, na bela Matriz Católica, construída, talvez, a partir do final do século XIX. Com certeza, ficaram por lá um pouco mais, já que, agora, são mais de treze horas.

Daqui a pouco, o meu ônibus vai chegar, levando-me para a barulheira infernal do Rio de Janeiro. Mas, a pracinha é a mesma de minha infância. Nada mudou! Aparentemente, ocorreram mudanças! Os jovens e os velhos que se sentam em seus bancos de pedra possuem os mesmos sonhos e esperanças das pessoas de meu tempo. Quantos gostariam de se aventurar também em direção à grande Metrópole do Rio de Janeiro, ou outra grande Cidade do Brasil. Muitos vão... Mas voltam. Não estão preparados para viver nas Grandes Cidades. São poucos os que ousam enfrentar as drásticas mudanças impostas pelas engrenagens do progresso. Voltar às vezes poderá ser a conseqüência de uma inadequação. É gratificante voltar, mas que seja uma volta aureolada. Não vale a pena voltar para ser motivo de constrangimento. Os que saem e são derrotados pela Cidade Grande, quando voltam, percebem na própria alma a frustração sentida por aqueles que não conseguiram alcançar suas metas.

A praça está animada. Os que estão à minha volta perscrutam sobre o motivo de minha presença. Será que sou um deles?, pensarão. Mas, plagiando o grande escritor Guimarães, “aqui em Minas, sou mineira!” As crianças brincam. Um ônibus se aproxima. Será o ônibus do Rio de Janeiro? Não é. As duas moças embarcam nele, distanciando-se de minhas íntimas elucubrações. Estou escrevendo para passar o tempo à espera do ônibus interestadual. Que momento supremo para quem convive com a correria do Rio de Janeiro. Para mim, especialmente, que momento indescritível! Se houver outras oportunidades, vou continuar a escrever sobre as maravilhas desta Cidade divina, neste mesmo banco desta pequena e agradável Estação Rodoviária.

Pretendo voltar sempre. Meus conterrâneos vão acabar se acostumando. Mas, estão todos curiosos. Uma senhora passa usando um elegante bermudão jeans. Que bela novidade! Há uns anos atrás, com certeza, não seria bem considerada por usar bermudão. Agora, já é permitido. Minha Cidade já está mais tolerante.

Mas, a Cidade continua mágica...

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

FERNANDO PESSOA E HETERÔNIMOS

AS VÁRIAS FACES DE UM POETA DO SÉCULO XX
NEUZA MACHADO

O século XX poderá ser visto como um momento de cisão histórico-social e estético-literária na História da Cultura Ocidental (semelhante ao que ocorreu no final do século XV). Os sinais desta mudança poderão ser observados a partir dos anos finais do século XIX, e, literariamente, esses mesmos “sinais” poderão ser detectados na estética simbolista, estética esta que como se sabe influenciou os intelectuais, escritores e poetas do século seguinte. A estética simbolista em todas as suas gradações (pintura, música, literatura), sem sombra de dúvida, poderá ser colocada como um “divisor de águas”, tanto no âmbito da Arte quanto no âmbito Histórico-Social.

Repensando principalmente a literatura dos anos iniciais do século XX, não seria demais lembrar que esta tomou forma em meio a um ambiente de caos. O ano de 1914 marca o início da Primeira Guerra Mundial, um acontecimento que já se previa desde o início do século em cada cantinho da Europa. Os anos que antecederam a Primeira Guerra, desde meados do século XIX, já anunciavam o que viria pela frente: a visão de um mundo estilhaçado, circundando seres humanos também estilhaçados, exteriormente e interiormente.

Repensando aquele momento dramático, ouso repensar também a história pessoal de um dos maiores líricos da Literatura do Século XX: Fernando Pessoa, poeta português, orgulho da Nação Portuguesa.

Fernando Pessoa vivenciou dramaticamente aquele período de guerra, e mais ainda, assistiu ao estilhaçamento de sua própria Nação: a morte do penúltimo rei e de seu filho em 1908, a deposição do novo rei D. Manuel, a República em 1910 (cujas propostas de base não se realizaram e se perderam em meio aos desacertos e aos desfacelamentos dos partidos, impedindo que os novos rumos políticos se concretizassem) e, sobretudo, historicamente, acompanhou o desenrolar da Guerra de 1914. Fernando Pessoa “intuiu”, a partir de seu próprio “eu” existencial, o “estilhaçamento” do ser humano, a partir dali, um joguete nas sendas do progresso (ou se quiserem, nas sendas do destino).

Essa “vivência” (por enquanto, não encontro um nome mais apropriado) sedimentou a sua arte poética. Por isto, os vários heterônimos. Se o ser humano, a partir daqueles anos de guerra, tornou-se um ser fragmentado, nada impediria o surgimento de um lírico também fragmentado. Por meio da criação poética, Fernando Pessoa “obrigou-se” a encarnar esse lírico. Ele se “estilhaçou” liricamente, e as diversas faces do Fernando Poeta, cada uma representando os sentimentos desencontrados que o angustiavam, ou quem sabe a sua própria realidade fracionada, receberam nomes especiais: heterônimos que somados ao seu próprio nome o imortalizaram.

Para esta questão dos heterônimos, desejo colocar aqui o meu entendimento: independente dos estudos críticos usuais da obra de Fernando Pessoa (os quais embasados pelas próprias afirmações do poeta fazem a divisão de sua criação poética, catalogando-a em partes estanques, ou seja, os poemas de Fernando Pessoa (ele mesmo), os poemas de Álvaro de Campos, os poemas de Ricardo Reis, os poemas de Alberto Caeiro), penso que os seus poemas, repletos de autêntico lirismo à moda do século XX, pertencem todos a ele mesmo, ao inigualável poeta português. Reconheço a genialidade do mesmo ao formalizar um arcabouço ficcional (ele e seus diversos “eus”) para proteger a sua criatividade poética, mas não aceito compactuar com a idéia de que cada heterônimo sinalize um poeta diferente. Todos os poemas, independentes dos sinais que os diferenciam, possuem em comum a marca de um poeta que procurou significar liricamente seu próprio interior multifacetado e, assim, conseqüentemente, significou as vidas fragmentadas dos homens de seu tempo — infelizes participantes de um determinado século fragmentado.

Este texto de Neuza Machado foi publicado com o título Prefácio no livro Alberto Caeiro (Fernando Pessoa), Poemas. Belo Horizonte: Itatiaia, 2005. Vol. 23, Coleção Excelsior: 7 - 9.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

REAVALIANDO A ATUAÇÃO DA CRÍTICA LITERÁRIA

NEUZA MACHADO*

Sem dúvida um pensamento que não se arme dialeticamente permanecerá inteiramente perdido diante de um fenômeno tão multidimensional como é o literário. Na chave da dicotomia, as categorias se opõem excluindo-se mutuamente. Somente os pensadores tricótomos pensam no eixo da contradição, admitindo um terceiro elemento como mediador dialético. E só estes possuem olhos para penetrar nas esquinas secretas dos caminhos da arte.[1]

APRESENTAÇÃO

Esta reflexão teórico-crítica tem por fim provar a possibilidade de uma colaboração dos Estudos Analíticos da Literatura com o desenvolvimento da Hermenêutica de um determinado texto.

Não se trata de qualquer texto, como se verá, já que cada obra impõe o seu próprio método de análise e/ou interpretação. Mas, no tipo de texto que pretendo intermediar criticamente (A hora e vez de Augusto Matraga, de Guimarães Rosa, o qual fez parte de minha Dissertação de Mestrado, em 1990, e, posteriormente, de minha Tese de Doutorado, em 1996), a Semiologia de Segunda Geração (de Roland Barthes, Umberto Eco e Anazildo Vasconcelos da Silva), certamente, oferece um corpo teórico, para a análise, e colabora com a posterior interpretação hermenêutica, possibilitando uma interação paradigmática consciente, de acordo com as exigências críticas atuais, voltadas à interdisciplinaridade.

Para que esta propedêutica não se desvirtualize (já que a direciono aos alunos de graduação em Letras), começarei resenhando o livro de Emerich Coreth, Questões Fundamentais de Hermenêutica[2], sobre a história do problema hermenêutico. A seguir, desenvolverei alguns dos principais elementos metodológicos do movimento hermenêutico do século XIX e verei o relacionamento dialético entre Hermenêutica e Ciência, a partir de Richard Palmer[3] e Paul Ricoer[4], discutindo as noções de compreensão, interpretação e o problema do método crítico. Ressalto que apoiar-me-ei nas conclusões do Professor Eduardo Portella (escritas na década de setenta, mas ainda atuais), para superar determinados impasses teóricos, já que colocarei a Semiologia de Segunda Geração (própria para análises literárias) como Ciência Auxiliar à compreensão dos sentidos. Para tal empresa, utilizarei também alguns postulados do semiólogo italiano Umberto Eco. Assim, nas páginas finais desta propedêutica, retomarei os ensinamentos de Ricoer e Eduardo Portella, esperando demonstrar então a possibilidade da Semiologia da Literatura realizar com a Hermenêutica um criador diálogo, uma contribuição criadora para o entendimento do fenômeno literário.

Quero esclarecer ainda que, ao postular a possibilidade de uma colaboração entre Semiologia e Hermenêutica, não é minha intenção comparar o método de uma Ciência com o de outra. Ambos (os métodos) possuem, segundo o meu ponto de vista, qualidades próprias. A experiência de contemplação da obra tem de abranger os dados visíveis e não-visíveis. Esta experiência de contemplação da obra é um conhecimento (nomenclatura hermenêutica). Não há como separar forma e conteúdo. Direi ainda, apoiada em Gadamer: o essencial na experiência estética de uma obra não é o conteúdo nem a forma, mas a matéria significada, ou seja, um mundo com a sua própria dinâmica. Não pretendo comparar dois métodos científicos, mas admitir que um (o semiológico) pode colaborar com o outro (o hermenêutico).


HERMENÊUTICA E SEMIOLOGIA: UM PROBLEMA DA CRÍTICA LITERÁRIA ATUAL

Neste início de século XXI, observa-se um fenômeno significativo no que concerne à Crítica Literária (aliás, este fenômeno já é antigo: seus primórdios se localizam nos anos oitenta): há um impasse de teorias diversificadas, várias maneiras de se penetrar no universo do texto, e isto traz, para a Ciência da Interpretação, a dúvida, quanto a direção a ser seguida, na realização do trabalho crítico. Ressalte-se o fato de que todas as teorias convivem nos meios acadêmicos brasileiros, senão em harmonia total, pelo menos respeitando-se cordialmente, evitando, assim, as divergências que existiram nos anos setenta. Nos anos sessenta, não será demais lembrar, o Estruturalismo (ponto de vista analítico repressor) imperou nas Universidades. Nos anos cinqüenta, os universitários que se dedicavam ao estudo da literatura estavam submetidos às diretrizes teóricas (também analíticas e repressoras) do New Criticism americano, divulgado aqui no Brasil, pelo Professor Afrânio Coutinho, com o nome de Nova Crítica.

Por tais motivos, compreende-se, hoje, que não há como escolher um partido teórico único, no âmbito da Literatura-Arte, se há a facilidade de se conhecer cada facção e avaliar-lhe suas contribuições, em função do desvelamento e compreensão do texto. Restará ao crítico literário brasileiro atual, antes de fazer uma escolha consciente, observar as sugestões oferecidas pela própria obra, pelo próprio texto, relacionando razão e compreensão: A obra impõe a sua verdade e, portanto, o seu próprio método a ser utilizado. Não se pode dissociar a Crítica da Arte.

Em conseqüência deste impasse, a maneira de como interpretar um texto literário tornou-se um problema nos meios acadêmicos. (Não estou referindo-me aos teóricos conceituados). O que se observa atualmente, entre os alunos de Letras, é a utilização aleatória de todas as correntes críticas. Há um cruzamento de nomenclaturas que, ao invés de esclarecer a mensagem, torna-a ilegível.

Reconheço que este problema se origina no fato de o aspirante à função de Crítico Literário não possuir um conhecimento de base, já que o mesmo desconhece os postulados fundamentais de cada corrente crítica.

No que se refere à Hermenêutica, por exemplo, o problema torna-se mais grave, por esta ter sua origem nos primórdios da História religiosa do homem ocidental. Fala-se muito em Hermenêutica, mas não há, nos meios acadêmicos, um conhecimento correto em relação à mesma. Desconhecem-se seus questionamentos de origem, sua ligação com os Textos Sagrados, as divergências que a marcaram no decorrer de sua história, a sua posterior incursão nos domínios da Filosofia e da Literatura.

Por estas razões, farei uma breve retrospectiva da História da Hermenêutica, desde o seu advento, em que o que a preocupava era o problema da correta interpretação dos Textos Sagrados. Esta retomada histórico-reflexiva baseia-se em dados oferecidos por Emerich Coreth (op. cit.), e tem por objetivo inicial reconhecer o relato do problema teológico e a sua ligação com a questão hodierna da Hermenêutica, ou seja, a questão do conhecimento ao se contemplar as obras literárias não religiosas. A seguir, por esta mesma retrospectiva, buscarei um diferente olhar crítico, o qual irá proporcionar-me a defesa de meu objetivo central: provar a possibilidade de uma colaboração consciente da Semiologia da Literatura – das gerações atuais – com o desenvolvimento da Hermenêutica de um determinado texto.

UMA RETOMADA DA HISTÓRIA DA HERMENÊUTICA

Muito antes de se pensar na Hermenêutica como a concebemos hoje, ou seja, como Ciência da Interpretação e da Observação Crítica – ciência que questiona a correta interpretação dos textos literários –, já a questão era problematizada pelos intérpretes (os antigos “escribas”) das mensagens contidas no Antigo Testamento. Emerich Coreth, ao se referir aos escribas, situa-os como os primeiros exegetas que procuravam questionar a importância de uma correta interpretação dos Textos Sagrados. Observe-se que esses textos anunciavam o nascimento do Salvador, e os mesmos eram interpretados por sacerdotes rudes, os quais legaram à posteridade suas interpretações ambíguas. Com o advento do Novo Testamento, as ambigüidades se desfazem, pois quem as esclarece não é outro senão o próprio Filho de Deus, o Salvador esperado. Segundo Coreth, o Novo Testamento se coloca, desde as primeiras páginas, como o único intérprete autêntico das Mensagens Sagradas. Reavaliando as palavras de Coreth por uma diretriz interpretativa, isto se deve ao aval de Jesus Cristo, ao procurar elucidar, para as multidões que o acompanhavam, todas as ambigüidades do Antigo Testamento anteriormente questionadas, algumas que foram interpretadas incorretamente, de acordo com o que nos passa o Novo Testamento.

Jesus Cristo posicionou-se como o fecho de um ciclo da História dos hebreus e a estrutura basilar de uma nova etapa da História da humanidade. Se graças à sua interpretação os Textos Sagrados ficaram devidamente esclarecidos, ou se o povo acatava os ensinamentos sem formular questões, quanto à profundidade do que era recebido – haja vista as parábolas simplificadas –, o mesmo não aconteceu posteriormente. Coreth alerta para toda uma problemática da compreensão, tanto do Antigo quanto do Novo Testamento, envolvendo os exegetas dos Textos Sagrados, desde o século II d. C. Menciona as divergências existentes entre os padres que seguiam as orientações da Escola de Antioquia, em contraponto com os postulados da Escola Alexandrina. Situa esse momento como marco de um futuro problema hermenêutico, pois, se uma Escola procurava ressaltar o sentido histórico contido na Bíblia (Escola de Antioquia), a outra colocava em evidência a necessidade de se atingir o sentido espiritual que se evolava das páginas sagradas. Esses dois pontos de vista divergentes atestam o caráter polêmico da Bíblia (como repositório das mais diversas expressões literárias), sem, contudo, despojar-se de sua condição de reveladora da palavra de Deus. Atestam, inclusive, a dificuldade do intérprete de ater-se a uma interpretação consensual. Coreth informa ainda que Orígenes [um estudioso preocupado em unir a investigação histórico-filológica do texto a uma noção distinta dos vários sentidos que se podem destacar do mesmo] procurava ligar as duas correntes conscientemente, procurando desenvolver uma investigação cuidadosa. Prosseguindo em sua recapitulação histórica do problema teológico, ressalta, cuidadosamente, as divergências de opiniões entre São Jerônimo e Santo Ambrósio, bispo de Milão, e orientador de Santo Agostinho em sua redescoberta do Cristianismo.

No que se refere a Santo Agostinho, é importante destacar seu caráter conciliador, ao procurar aliar as duas formas de interpretar a Bíblia. Isto se prende ao fato de que o mesmo vivenciou várias formas de vida contemplativa, antes de se converter definitivamente ao cristianismo. Conhecendo-se suas transformações existenciais e religiosas, não é difícil compreender o porquê dessa atitude conciliadora (também destacada por Coreth). De origem cristã, o futuro Bispo de Hipona desenvolveu sua inteligência dentro de conceitos filosóficos e científicos distantes dos ensinamentos religiosos de sua infância. Estudou retórica, leu os professores e poetas latinos, desenvolveu estudos referentes às Ciências Humanas (foi aluno de Varrão) e, posteriormente, aderiu-se à doutrina Maniqueísta, abandonando os postulados cristãos da revelação sobrenatural da palavra de Deus, em benefício de uma orientação religiosa fundamentada apenas no conhecimento racional. Não satisfeito com esta doutrina, torna-se discípulo de Ambrósio, Bispo de Milão. Por tais razões, mesmo abandonando os conceitos da razão pura e retornando às normas do Cristianismo, o ex-estudioso das teorias de Varrão, ex-professor de gramática e retórica, ex-maniqueísta, jamais pode eliminar de sua vida o que foi aprendido e vivenciado. Restou-lhe uma atitude conciliadora: interpretar a Bíblia observando o elemento sobrenatural, sem abdicar do racional.

O problema da compreensão dos Textos Sagrados continuou repercutindo nas etapas seguintes da Era Moderna: a reforma luterana em oposição à Igreja Romana, posteriormente a Contra-Reforma [numa tentativa de recuperar o anterior poder religioso, naquele momento em decadência], passando pelo pensamento Iluminista e sua visão racional da mensagem divina, até chegar a Hegel e outros pensadores.

No século XIX, inaugura-se o movimento hermenêutico, propriamente dito. É nesse momento que vamos encontrar a palavra hermenêutica como sinônimo de investigação e compreensão do texto ainda religioso, visando a opor-se à pesquisa histórico-crítica, método que tem sua origem na obra polêmica de David Friedrich Strauss, A Vida de Jesus, e que procurava ressaltar, na Bíblia, a história do Antigo Oriente, preocupando-se em estudar os aspectos lingüísticos e culturais em detrimento do sentido sobrenatural contido nos Textos e revelador dos desígnios de Deus. O movimento hermenêutico opunha-se ao método histórico-crítico, mas, ao mesmo tempo, não desprezava a contribuição valiosa oferecida por essa forma de investigação crítica da Bíblia e, inclusive, destacava seu caráter esclarecedor. Não se tratava exatamente de uma oposição, mas de conciliação, postura que outros exegetas da Bíblia adotaram, no transcorrer da História Religiosa do Homem.

Observando a repercussão histórica do problema teológico, pelo ponto de vista crítico de Emerich Coreth, contido no livro já citado, pude encontrar o cerne de meu questionamento sobre o problema da Crítica atual, em outras palavras, a base para o meu próprio postulado que, a partir de agora, desenvolverei, ou seja, o problema atual dos vários paradigmas analítico-interpretativos que convivem, mescladamente, no âmbito da Ciência da Literatura. Trazendo à luz os problemas que afligiam os intérpretes da Bíblia no passado, Coreth procurou demonstrar a perenidade dos conflitos interpretativos, tanto na área das Ciências Exatas, quanto na das Ciências Humanas, inerentes à História da Humanidade. Diz ele, falando especificamente do problema hermenêutico:

Em todo caso, põe-se aqui já o problema em toda a sua amplitude, evidenciando que a questão hermenêutica da atualidade não é, no fundo, nova, mas retoma um antigo problema, ainda que de um outro modo e sob novos pontos de vista.[5]

O que marca o movimento hermenêutico do século XIX, não é seu caráter opositor e, ao mesmo tempo, conciliador, mas o fato de que, por intermédio dele, o posicionamento crítico, marcadamente religioso, desprende-se dos Textos Sagrados, alcançando os domínios da Filosofia e da Literatura. A Crítica passa a centralizar-se no problema da compreensão do texto como linguagem, questionamentos esses que levaram ao entendimento da essência do Homem e do Universo, e que estavam antes restritos ao âmbito dos estudos teológicos.

Quanto à Literatura, nosso tema de reflexão crítica, a Hermenêutica passa a promover a compreensão dos textos, tornando-se conhecida como a teoria que permite compreender e, posteriormente, explicar o que foi compreendido. Compreensão não como faculdade de compreender, como se vê nos dicionários, mas como maneira de ser e relacionar-se com os seres e com o ser, no dizer de Ricoer.[6]

Sem deixar de pertencer aos domínios da investigação teológica (o que se conhece como Hermenêutica Específica), a Hermenêutica da Filosofia e da Literatura expande-se, e passa a centralizar na linguagem do texto (seja religioso, histórico ou literário) a sua busca de compreensão da essência do Homem e de sua atuação como ser-no-mundo, passando também a possibilitar ao investigador uma maior amplitude de visão, permitindo-lhe o alcance dos sentidos do texto investigado.

No que se refere à interpretação literária, faz-se necessário, agora, um esclarecimento. Observe-se que compreender um texto não é suficiente, necessita-se de uma operação ou transação que possibilite esclarecer e decifrar o significado da obra. Necessita-se saber distinguir o que realmente quis-se anunciar; quais as mensagens contidas em um texto que se produz em uma linguagem pluri-ambígua. Impõe-se assim um método de abordagem transmutativo, uma atitude mediadora entre compreensão e explicação (posicionamento fundamental da Hermenêutica). A este método de abordagem dá-se o nome de interpretação. Como interpretar fundamenta-se em postulados científicos, diferentes da compreensão como elemento do universo crítico-filosófico hermenêutico (fenomenológico), subentende-se que não há como fugir a um inter-relacionamento entre Hermenêutica e Ciência. Uma questão que foi observada nos anos setenta, permanece ainda insolúvel neste início de terceiro milênio, incomodando a maior parte dos profissionais da Ciência da Literatura, simpatizantes do antigo método da análise literária estruturalista. No momento em que se propõe uma nova atitude didática, uma aproximação necessária entre o professor e seus alunos, não há mais como promover o distanciamento. Se o professor for realmente um artífice de categoria, em sua disciplina de estudos literários, saberá como promover o entendimento e o diálogo receptivo.


INTERCÂMBIO ENTRE CIÊNCIA E HERMENÊUTICA: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

Quando se retoma o posicionamento de Richard E. Palmer[7], apresentado nos anos oitenta, recusando-se a reconhecer no método científico uma atitude válida para o esclarecimento do texto, volta-se à questão, já assinalada pelos exegetas da Bíblia, de opor-se ou aderir-se a uma conciliação entre o sentido apreendido e a forma de esclarecer o que foi decifrado. Palmer desenvolve e reconhece a necessidade de se procurar um método, ou teoria que possibilite a decifração da marca humana contida na obra literária. Método e Teoria são palavras que fazem parte do universo teórico-crítico das Ciências Exatas; decifrar não é o mesmo que compreender, portanto, não se visualiza outra saída para a Crítica Literária atual: pressupõe-se um intercâmbio entre Ciência (análise) e Hermenêutica (conhecimento), em benefício da verdadeira compreensão do texto literário.

Palmer diz:

É certo que os métodos de “análise científica” podem e devem ser aplicados às obras, mas ao proceder deste modo estamos a tratar as obras como objetos silenciosos e naturais. Na medida que são objetos, são redutíveis a métodos científicos de interpretação; enquanto obras, apelam para modos de compreensão mais sutis e compreensíveis.[8]

Palmer não procura separar interpretação e compreensão, apenas não concorda que as obras sejam observadas como objetos silenciosos. É lógico que há, hoje, várias formas de interpretar e avaliar a mensagem do texto [um fenômeno da globalização], mas todas passam por pressupostos científicos, inclusive a interpretação que se faz, atualmente, por uns poucos iniciados, dentro do que se impõe como Crítica Receptiva. Como sabemos, esta diretriz crítica é exatamente a tal forma conciliadora, retirada de um pensamento tricótomo (relembrando aqui a epígrafe desta propedêutica, de autoria de Eduardo Portella), revestida com um título pomposo - Estética da Recepção -, mas que tem suas raízes na Hermenêutica e Dialética.

A Hermenêutica, como a concebemos atualmente, também é Ciência, ou por outra, é um postulado científico, porquanto passa por uma averiguação que não se pode localizar no âmbito apenas da compreensão divinatória, se reporto-me aos ensinamentos de Schleiermacher. Há de se acrescentar à intuição espontânea o esclarecimento da Verdade Científica. Nesta manifestação do intelecto está a faculdade de percepção do Homem atual. Sem se pleitear confundir compreensão com faculdade de compreender, faz-se necessário observar o Homem e o Mundo pós-modernos, e, conseqüentemente, a obra literária, que os problematiza dentro de sua realidade. Realidade esta, não será demais lembrar, que já se encontra mascarada por opiniões ou juízos conflituosos, que longe estão do padrão comunitário dos antigos dogmas religiosos. Sem se pretender confundir compreensão com faculdade de compreender, faz-se imprescindível observar o Homem como ser-no-mundo, como ser específico de um mundo que, ao longo do século XX, foi-se deteriorando, gradativamente, fragmentando-se, e encaminhando-se para um ponto que, segundo as reflexões de Baudrillard[9], em seu livro América, será um ponto de fuga em direção ao Nada.

No que se relacione ao texto literário propriamente dito, e de acordo com os postulados hermenêuticos, concebêmo-lo como repositório da problemática social e psíquica que envolve o Homem e o Mundo. Para que haja uma interpretação consciente de um texto literário, há a necessidade de o intérprete estar preparado para captar a ambigüidade, a pluralidade de sentidos que uma obra da arte literária oferece. A obra literária é um enigma; é preciso decifrar esse enigma, trazer à luz os sentidos ocultos, os quais subjazem nas entrelinhas. Assim, para um reconhecimento crítico seguro, faz-se indispensável um conhecimento analítico que propicie, depois da análise evidentemente, a compreensão dessas camadas invisíveis. Por esta linha conciliadora (exigência deste momento pós-moderno), o intérprete se apropria do papel de leitor participativo, incorporando-se ao texto interpretado, pois, graças a uma prévia compreensão do que se passa no universo da linguagem literária (seja ela poética ou ficcional), passa a compreender a mensagem do outro. O texto se coloca como mediador entre a obra e o intérprete. Este só compreende e interpreta porque possui já uma compreensão anterior de sua própria atuação como ser-no-mundo, e, assim, está apto para compreender o que se encontra subentendido nas entrelinhas do texto. Compreendendo, liberta-se; interpreta-se a extensão do ato de compreender. Compreendendo o texto, o intérprete dispõe-se a observar suas próprias preconcepções do mundo, e dele mesmo, que se acham inseridas em sua consciência transmutativa.

O texto é também mediador entre compreensão e interpretação. Compreendendo-o e interpretando-o hermeneuticamente, interpreta-se a própria consciência, desvenda-se o próprio inconsciente. Compreendendo o outro, interpretando seus questionamentos, sua posição diante do Mundo e do enunciado, passa-se a compreender as próprias indagações e as indagações do Universo; permutam-se conhecimentos; exerce-se o ato (ou hábito) de questionar e/ou responder, ou mesmo de se buscar a resposta através da polissemia da palavra, promovedora de uma série de significações.

Mas, se a compreensão do texto literário proporciona concebê-lo como repositório da problemática social e psíquica que envolve o Homem e o Mundo, é também lícito repetir que estou aqui a referir-me ao Homem e ao Mundo atuais. Estes já vivenciaram novas etapas de vida; novos conhecimentos se foram agregando aos do passado. Não é o caso de avaliar se tais conhecimentos foram benéficos ou não, o fato é que eles se materializaram, e é impossível pensar em desfazer-se deles.

E eis que chego, agora, ao ponto central de meu postulado: Como conceber um método crítico satisfatório, se no universo da Crítica Literária atual há diversos encaminhamentos que propiciam o desvelamento do texto?

É bom reafirmar que a questão não é nova. Desde o advento da Lingüística, e o posterior surgimento dos postulados científicos, penetrando o universo da obra literária e tentando decodificá-la unicamente por meio da análise explícita, que o problema se faz presente nos domínios da Crítica.

Se nos últimos decênios do século dezenove a compreensão hermenêutica, ao se desprender dos Textos Sagrados, possibilitou uma amplitude de visão, centralizada no texto profano e na sua ambigüidade, permitiu também, gradativamente, o desenvolvimento de diferentes abordagens, todas de caráter científico.

A Teoria do Conhecimento foi cedendo a vez às análises puramente científicas, fechadas e auto-suficientes, e, quando já se pensava que a supremacia do posicionamento científico era um fato concreto e irreversível, ressurge a Hermenêutica (e ressurgirá sempre que houver necessidade de mudanças), desta vez provando (e eis nesta prova algo de científico) que, além do texto explícito (a linguagem literária), há outras camadas da obra literária dignas de serem observadas e compreendidas.

Os antagonismos existentes entre as duas facções eram visíveis nos anos setenta, e é naquele momento que encontro, no que se relaciona especialmente à Crítica Literária no Brasil, o professor Eduardo Portella, preocupado com o cientificismo crítico, que aqui se aportara nos anos cinqüenta e sessenta, e que se fechava em prepotentes modelos de como se interpretar os textos literários. Observe-se a sua posição defensiva a respeito da questão, a qual seria examinada no decorrer de sua teorização assentadamente hermenêutica, e que está registrada no seu livro Fundamentos da Investigação Literária:

Recusamo-nos inicialmente a imaginar a crítica literária fechada em si mesma, entregue a uma estranha forma de autodevoramento. Criticar é rasgar novos horizontes de compreensão. Uma crítica enclausurada será fatalmente uma crítica cega, provinciana ou parasitária. O seu entendimento superlativo pressupõe a consciência de sua interdisciplinaridade.[10]

Penso também, resguardada por Eduardo Portella, que “criticar é rasgar novos horizontes de compreensão”; reconheço, como profissional de Letras, que não se pode prescindir, nos estudos literários, da contribuição da Crítica Hermenêutica, propulsora do alcance das camadas mais profundas da obra literária e diretriz consciente da compreensão de suas mensagens unívocas, que se encontram camufladas nas entrelinhas. Mas, assim como Eduardo Portella já observava, na década de setenta, a “progressiva pressão dos modelos científicos no âmbito do fazer ou do saber literário”[11], e se preocupava em desenvolver uma espécie de reciclagem terminológica, visando se posicionar hermeneuticamente, abolindo de suas teorizações qualquer contato epistemológico, assim, também, encontro-me agora, nesta propedêutica e em meu próprio campo de trabalho. Usando outras palavras, tenho consciência de que a questão permanece, aqui no Brasil (não estou a referir-me aos posicionamentos americanos e europeus), apesar da afirmação de uns poucos teóricos, os quais divulgam que a tensão entre as duas correntes inexiste. Para tal comprovação, bastará ao crítico tricótomo fazer uma avaliação do que ocorre, em termos de ensino da Literatura, nas diversas Universidades do país.

Atualmente, ao invés da “pressão”, o que existe são trilhas díspares, abertas a todos incondicionalmente, e que levam o analista desavisado e/ou o pseudo-intérprete da obra literária a desenvolver uma crítica aleatória, misturando os conceitos e as terminologias dos diversos tipos de crítica literária. É lícito lembrar que estes diversos paradigmas são importantes, mas deveriam ser teoricamente bem encaminhados.

Ainda, apoiando-me no pensamento do professor Eduardo Portella, continuo repetindo a sua assertiva: “criticar é rasgar novos horizontes de compreensão”. Penso que todos esses encaminhamentos críticos são válidos, desde que se saiba situá-los corretamente. Penso no texto como mediador de compreensão e somente ele dirá qual a forma de desenvolvimento crítico a ser seguida. Cada texto impõe a própria Verdade, e não é lícito que o crítico se afaste desta Verdade compreendida.

Se hoje, em nossos meios intelectuais, não há mais a “pressão dos modelos científicos no âmbito do fazer ou do saber literário”, como muitos afirmam, infere-se que estas linhas críticas díspares reverteram-se em um novo problema. Urge reordenar o desordenado por meio de uma conciliação crítica satisfatória. A Semiologia de Segunda Geração, proposta por Umberto Eco nos anos oitenta, continua válida, uma vez que, pressionada pelas exigências críticas da Fenomenologia, a mesma reconheceu a sua validade apenas para os estudos analíticos preliminares, lineares, aceitando as posteriores incursões do analista-intérprete nas camadas invisíveis da obra. Esta aceitação deveu-se unicamente aos plurissignificativos textos [de poesia e prosa] dos escritores do século XX, os quais naturalmente se obrigaram a interpretar criativamente a sua desordenada realidade. Assim, a Semiologia de Segunda Geração (anos oitenta), de Umberto Eco, de Roland Barthes e outros, reivindicando somente a decodificação do texto literário, por meio de esquemas objetivos, e certa ao aceitar que se desenvolva posteriormente qualquer tipo de interpretação, desde que se respeite seus postulados básicos, preliminares, limitados apenas ao texto, enquanto camada explícita da obra literária], aliada conciliadoramente à Hermenêutica, ou qualquer outra linha crítica sócio-fenomenológica, parece-me a solução ideal, pelo menos momentaneamente (não se deve perder de vista o fato de que a Crítica Literária deverá, forçosamente, adaptar-se aos valores estéticos das épocas vindouras). Presa ao meu momento histórico-estético, penso em uma conciliação entre análise e interpretação. Mais precisamente, como base analítica, só vejo a Semiologia de Segunda Geração como colaboradora de uma interpretação extra-texto. Aos Estudos Semiológicos de Segunda Geração, conhecidos como Crítica Semiológica, não importam se a posterior interpretação (do que foi decodificado por meio de esquemas) é semi-hermenêutica (termo de minha autoria, pois a crítica autenticamente hermenêutica não se permite misturas), psicanalítica ou sociológica. Importam-lhes que a interpretação seja pertinente e não se distancie em demasia do universo pesquisado, distorcendo a mensagem explícita e/ou unívoca do texto literário. É bem verdade que a Semiologia, enquanto suporte analítico, não possibilita a compreensão do sentido que se oculta ali, ao desenvolver seus estudos esquemáticos, mas não impede que se observe a posteriori as outras camadas. Atualmente, os já renovados semiólogos da literatura têm consciência de que a linguagem do texto-arte é pluri-ambígua, permitindo diversos pontos de vista interpretativos. O problema se atém somente ao fato de que não há um consenso pertinente, que esclareça a desordenação crítica atual, observada no entrelaçamento aleatório das diversas e confusas nomenclaturas.

A partir de agora, entro no núcleo temático deste empreendimento: superar o impasse teórico-crítico, no âmbito específico da Crítica Literária, entre análise (cientificismo) e interpretação (fenomenologia).

A Semiologia de Segunda Geração, tal como a entendo e pratico, não é uma teoria reducionista, não reduz a obra literária a um mero objeto de análise sem vida. Há, realmente, aqueles semiólogos que assim procedem. Eu defendo, aqui, as idéias de Roland Barthes e Umberto Eco, provedoras de uma Semiologia (para o texto literário) aberta, uma Semiologia que seja, e não mais que isto, um ponto de partida para a posterior interpretação hermenêutica. Esta Semiologia, do tipo praticada pelos semiólogos acima citados, visa a decodificar os signos e sinais contidos no texto, nas mensagens, nos relatos, mas passa adiante, ultrapassando o sistema de signos e chegando, mais precisamente com Barthes, quase ao nível do texto literário propriamente dito.

Umberto Eco, um dos baluartes da “arte” de como desenvolver uma leitura semiológica do texto literário, na introdução de seu livro Leitura do Texto Literário[12], coloca em evidência a necessidade de uma cooperação interpretativa nos textos literário, não sem antes assinalar o fato de que esta cooperação interpretativa é, realmente, um problema a ser avaliado.

Como uma obra de arte poderia, por um lado, postular uma livre intervenção interpretativa por parte dos próprios destinatários e, por outro, exibir características estruturais que estimulam e ao mesmo tempo regulam a ordem das suas interpretações?[13]

Como exemplos de seu questionamento, Umberto Eco, referindo-se a um estudo de Jakobson, sobre “Les chates”, de Baudelaire, procura demonstrar, em benefício da compreensão, “a função ativa desempenhada pelo leitor na estratégia poética do soneto”.[14]

Quando publicou o seu livro Obra Aberta[15] Eco já fora criticado por Lévi-Strauss, que não concordava com a sua concepção de que a obra é aberta à interpretação do leitor. Para Lévi-Strauss, a obra é fechada, dotada de propriedades precisas que só a análise deve especificar.

Reportando-se à análise feita por Jakobson, Umberto Eco se defende e demonstra que o próprio Jakobson já previra a cooperação do leitor [talvez inconscientemente], ao desenvolver categorias, observadas através de um ponto de vista estruturalista, acerca das "“unções da linguagem"” Tais categorias falavam de “emissor, destinatário e contexto”, como “indispensáveis ao tratamento do problema da comunicação, mesmo da comunicação estética”.[16] Umberto Eco assinala, ainda, que um texto como “Les chats” reivindica a cooperação do leitor, assim como deseja também que este ensaie uma série de opções interpretativas, e defende a sua tese de que é possível uma abertura interpretativa do texto, mesmo sendo adepto dos postulados semiológicos.

Postular a cooperação do leitor não significa contaminar a análise estrutural com elementos extratextuais. O leitor, como princípio ativo da interpretação, faz parte do quadro generativo do próprio texto.

Se até mesmo os reenvios anafóricos postulam cooperação por parte do leitor, então nenhum texto escapa a esta regra.[17]

Se antes a intervenção interpretativa era vista com desdém pelas normas estruturalistas [portanto, científicas], e totalmente eliminada em proveito de um estudo objetivo e metodológico, agora a mesma passou a ser respeitada, mas, ainda há opositores, oriundos das antigas exigências estruturalistas, que se recusam a uma necessária reciclagem crítica. Então, se a questão permanece sublinearmente (interagindo nas diversas Universidades do país), porque não buscar a conciliação, por meio de um renovado ponto de vista crítico, aceito por todos, e que seja devidamente registrado nos meios intelectuais. O semiólogo Umberto Eco, com seus questionamentos dos anos oitenta (quase à moda hermenêutica), permitiu uma abertura, permitiu conciliar pontos de vista divergentes em prol de uma consciente compreensão do texto.

Procuro articular as semióticas textuais com a semântica dos termos, limitando o objeto do meu interesse aos processos de cooperação interpretativa.[18]

Logo, para Umberto Eco, o “sentido” dos significados é tão importante quanto o desenvolvimento de uma articulação semiológica com os textos literários. E, para ele, não é lícito “isolar estruturas formais”, ou seja, desenvolver “análise de aspectos significantes” sem acatar, de antemão, uma interpretação, um preenchimento dos espaços das entrelinhas (espaços estes que jamais poderão ser tachados de vazios, quando, ao contrário, são plenos de significações), os quais só poderão ser revelados por meio da colaboração do leitor.

Percebe-se que Umberto Eco não é avesso a uma interpretação hermenêutica, mesmo que, por motivos óbvios, não assinale em seu trabalho esta provável concordância. A Ciência é um fato palpável em nossos dias. Prepotente ou não, ela faz-se presente em nosso cotidiano e, como sempre se observou, não se eliminam da História do Homem os conhecimentos que foram revelados e que vão sendo sucessivamente revelados.

Assim, a Hermenêutica atual se vê em face de uma questão, qual seja a de usar uma metodologia, sem se submeter às imposições da Ciência. O problema foi detectado por Eduardo Portella, no início da década de setenta, passou pelos anos oitenta e noventa, e, segundo minhas observações acadêmicas, continua insolúvel, neste início de Terceiro Milênio.

Como forma de revisão do impasse gerado nos anos setenta, recupero, aqui, o posicionamento de Eduardo Portella, delineando a sua concepção de expressão crítica, e defendendo uma disposição acentuadamente hermenêutica.

O empreendimento metodológico que levamos a efeito, embora obediente a determinados padrões de rigor que são eminentemente científicos, em nenhum instante quis comprometer a natureza peculiar do fenômeno literário.[19]

Como se observa, não estou extrapassando limites, colocando o termo dentro da jurisdição científica. Muito menos coloco-me como adepta inconteste dos postulados da crítica de base científica, quando reconheço a priori a importância da Hermenêutica, para que se desenvolva uma compreensão autêntica do sentido do texto. Apenas admito uma cooperação semiológica, repito, de Segunda Geração, uma vez que, nestes meus anos de magistério, ainda não reconheci novos segmentos da Semiologia Literária (é bem possível que, no âmbito da Lingüística, tal fato tenha acontecido). Admito a cooperação semiológica porque, não se pode negar, a Semiologia, aquela que lida especificamente com a forma literária, permite que se observe o texto translucidamente, promovendo a correta compreensão da mensagem implícita nele.

Repetirei mais uma vez que sou partidária de uma saudável conciliação entre ciência e fenomenologia. A ciência explica e a fenomenologia esclarece (a postulação de uma episteme, como base de estudos críticos, será sempre necessária ao estudioso da literatura). Como já observei antes, pela ótica de Paul Ricoer, ao adepto da Hermenêutica atual se coloca a alternativa entre compreender e explicar a mensagem, e esta alternativa só se realiza por intermédio da interpretação. É ainda pelo ponto de vista de Ricoer que continuo a refletir esta questão tão antiga em nossos meios e, ao mesmo tempo, tão atual.

Vejo a história recente da hermenêutica dominada por duas preocupações. A primeira tende a ampliar progressivamente a visada da hermenêutica, de tal modo que todas as hermenêuticas regionais sejam incluídas numa hermenêutica geral. Mas esse movimento de desregionalização não pode ser levado a bom termo sem que, ao mesmo tempo, as preocupações propriamente epistemológicas da hermenêutica, ou seja, seu esforço para constituir-se em saber de reputação científica, estejam subordinadas a preocupações ontológicas segundo as quais compreender deixa de aparecer como um simples modo de conhecer para tornar-se uma maneira de ser e de relacionar-se com os seres e com o ser. O movimento de desregionalização se faz acompanhar, pois, de um movimento de radicalização, pelo qual a hermenêutica se torna, não somente geral, mas fundamental.[20]

Por conseguinte, num primeiro posicionamento, a Hermenêutica preocupa-se mais com a linguagem, mais especificamente, no dizer de Ricoer, com a linguagem escrita. Isto acontece porque a linguagem escrita reflete uma característica peculiar da linguagem humana (a polissemia), quando se observa o significado das palavras fora de seu contexto expressivo. Por meio desta constatação, passa-se para um segundo posicionamento, no qual se exige sensibilidade e compreensão, porque, ainda segundo Ricoer,

(...) o manejo dos contextos (...) põe em jogo uma atividade de discernimento que se exerce numa permuta concreta de mensagens entre os interlocutores, tendo por modelo o jogo da questão e da resposta. Esta atividade de discernimento é, propriamente, a interpretação: consiste em reconhecer qual a mensagem unívoca que o locutor construiu apoiado na base polissêmica do léxico comum. Produzir um discurso relativamente unívoco com palavras polissêmicas, identificar essa intenção de univocidade na recepção da mensagem, eis o primeiro e o mais elementar trabalho da interpretação. É no interior desse círculo bastante amplo de mensagens trocadas que a escrita demarca um domínio limitado, chamado por W. Dilthey (...) de expressões da vida fixadas na escrita. São elas que exigem um trabalho específico de interpretação, por razões (...) que se devem justamente à efetuação do discurso como texto. Digamos, provisoriamente, que, com a escrita, não se preenchem mais as condições da interpretação direta mediante o jogo da questão e da resposta, por conseguinte, através do diálogo. São necessárias, então, técnicas específicas para se elevar ao nível do discurso a cadeia dos sinais escritos e discernir a mensagem através das codificações superpostas, próprias à efetuação do discurso como texto.[21]

Ricoer já postulava, nos anos setenta, como se vê, uma Hermenêutica que se baseasse em pressupostos científicos. O termo discernir, por exemplo, distancia-se em muito dos postulados hermenêuticos anteriores, os quais pregavam apenas uma compreensão para uma posterior explicação, à moda dos exegetas da Bíblia. Discernir remete-me aos postulados semiológicos, os quais indicam a forma exata de como distinguir, diferenciar, separar, apartar, identificar, palavras-chave que conduzem à decodificação [termo também usado por Ricoer, nesta longa citação que destacamos acima], e que, de acordo com a nomenclatura semiológica, servem para destacar os referentes, os sememas, os semas, as isotopias  núcleos que compõem o todo do texto ; palavras-chave que permitem discernir a verdadeira mensagem do texto-arte, evitando que se desenvolva uma crítica distanciada do seu sentido exato, e que poderá ser destacado na interpretação.

Foi Schleiermacher o primeiro a se conscientizar da necessidade de uma reavaliação dos pressupostos hermenêuticos. Antes dele, as questões se localizavam nas duas formas, já assinaladas no início de minha considerações, de como se interpretar os Textos Sagrados, e numa análise filológica dos textos greco-romanos. Portanto, foi a partir de Schleiermacher que a “arte de compreender” desenvolveu-se até chegar ao ponto em que se encontra agora.

É de meu particular interesse lembrar que a Semiologia desenvolve uma técnica objetiva, cerceando, num primeiro momento, por intermédio de estudos esquemáticos, a compreensão espontânea do intérprete, mas, repito, depois dos estudos semiológicos, o texto se ilumina, permitindo que se observe o seu próprio reverso. Depois da análise, o intérprete passa a observar o que se esconde nas entrelinhas do literário.

Retomo, agora, as reflexões de Eduardo Portella, para, novamente, concordar com a sua assertiva de que “criticar é rasgar novos horizontes”. Se não há como “pensar a literariedade sem ser em tensão (ou, direi por minha vez, em colaboração) com a cientificidade, porque não submetermo-nos a um encontro que se efetive para além da recusa passional ou da submissão ingênua: seja um diálogo criador”.[22]

Ainda em relação ao termo decodificação, de largo uso na crítica de base cientificista, Eduardo Portella esclarece:

Decodificação não quer dizer necessariamente coincidência ou acordo; quer dizer apenas a ultrapassagem da incompreensão. Porque o único que se lhe pede é que esteja ancorada no porto seguro do entendimento.[23]

Não foi outra coisa o que propus aqui. Postulei uma contribuição satisfatória para o entendimento atual do literário, uma contribuição entre duas correntes críticas em benefício da correta decodificação do texto literário, para que a compreensão fique “ancorada no porto seguro do entendimento”. Ao reivindicar uma colaboração da Semiologia com a Hermenêutica, não quero (e, aqui, quero pedir licença para parodiar Eduardo Portella) repudiar o silêncio, que se encontra palpitante no interior da Obra Literária, e reverenciar a “loquacidade enganadora de um analismo que, em nome da objetividade, se mostra impermeável ao subjetivismo”. Ao contrário, proponho um labor crítico dialético, usando dos ensinamentos de ambas as correntes, para que esse silêncio seja rompido. Reivindico uma colaboração entre as duas correntes (afirmo que esta colaboração, que muitos dizem existir, não se efetua na prática, em nossos dias), para que este “silêncio” se ouça acima dos estudos esquemáticos, ou seja, estudos de origem estruturalista, e promova a compreensão dos sentidos corretos do texto literário.

* NEUZA MACHADO é doutora em Ciência da Literatura/Teoria Literária pela Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
[1]PORTELLA, Eduardo. Teoria da Comunicação Literária. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1970: 61-62.
[2]CORETH, Emerich. Questões Fundamentais de Hermenêutica. São Paulo: Ed. Da Universidade de São Paulo, 1973.
[3]PALMER, Richard E. Hermenêutica. Lisboa: Edições 70, 1986.
[4]RICOER, Paul. Interpretação e Ideologias. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977.
[5]CORETH (1977): 6
[6]RICOER (1977): 17
[7] PALMER (1986): cit.
[8] Idem: 19
[9] BAUDRILLARD, Jean. América. Rio de Janeiro: Rocco, 1986.
[10] PORTELLA (1981): 22
[11] Ibidem
[12] ECO, Umberto. Leitura do Texto Literário. Lisboa: Presença, 1983.
[13] Idem: 7
[14] Idem: 9
[15] Idem: 8
[16] Ibidem
[17] ECO, op. cit.: 9
[18] Idem: 11
[19] PORTELLA (1970), op. cit.: 22.
[20] RICOER (1977), op. cit.: 18
[21] RICOER (1970), op. Cit.: 19
[22] PORTELLA (1970), op. cit.: 22.
[23] Idem: 25.