NEUZA MACHADO*
Sem dúvida um pensamento que não se arme dialeticamente permanecerá inteiramente perdido diante de um fenômeno tão multidimensional como é o literário. Na chave da dicotomia, as categorias se opõem excluindo-se mutuamente. Somente os pensadores tricótomos pensam no eixo da contradição, admitindo um terceiro elemento como mediador dialético. E só estes possuem olhos para penetrar nas esquinas secretas dos caminhos da arte.[1]
APRESENTAÇÃO
Esta reflexão teórico-crítica tem por fim provar a possibilidade de uma colaboração dos Estudos Analíticos da Literatura com o desenvolvimento da Hermenêutica de um determinado texto.
Não se trata de qualquer texto, como se verá, já que cada obra impõe o seu próprio método de análise e/ou interpretação. Mas, no tipo de texto que pretendo intermediar criticamente (A hora e vez de Augusto Matraga, de Guimarães Rosa, o qual fez parte de minha Dissertação de Mestrado, em 1990, e, posteriormente, de minha Tese de Doutorado, em 1996), a Semiologia de Segunda Geração (de Roland Barthes, Umberto Eco e Anazildo Vasconcelos da Silva), certamente, oferece um corpo teórico, para a análise, e colabora com a posterior interpretação hermenêutica, possibilitando uma interação paradigmática consciente, de acordo com as exigências críticas atuais, voltadas à interdisciplinaridade.
Para que esta propedêutica não se desvirtualize (já que a direciono aos alunos de graduação em Letras), começarei resenhando o livro de Emerich Coreth, Questões Fundamentais de Hermenêutica[2], sobre a história do problema hermenêutico. A seguir, desenvolverei alguns dos principais elementos metodológicos do movimento hermenêutico do século XIX e verei o relacionamento dialético entre Hermenêutica e Ciência, a partir de Richard Palmer[3] e Paul Ricoer[4], discutindo as noções de compreensão, interpretação e o problema do método crítico. Ressalto que apoiar-me-ei nas conclusões do Professor Eduardo Portella (escritas na década de setenta, mas ainda atuais), para superar determinados impasses teóricos, já que colocarei a Semiologia de Segunda Geração (própria para análises literárias) como Ciência Auxiliar à compreensão dos sentidos. Para tal empresa, utilizarei também alguns postulados do semiólogo italiano Umberto Eco. Assim, nas páginas finais desta propedêutica, retomarei os ensinamentos de Ricoer e Eduardo Portella, esperando demonstrar então a possibilidade da Semiologia da Literatura realizar com a Hermenêutica um criador diálogo, uma contribuição criadora para o entendimento do fenômeno literário.
Quero esclarecer ainda que, ao postular a possibilidade de uma colaboração entre Semiologia e Hermenêutica, não é minha intenção comparar o método de uma Ciência com o de outra. Ambos (os métodos) possuem, segundo o meu ponto de vista, qualidades próprias. A experiência de contemplação da obra tem de abranger os dados visíveis e não-visíveis. Esta experiência de contemplação da obra é um conhecimento (nomenclatura hermenêutica). Não há como separar forma e conteúdo. Direi ainda, apoiada em Gadamer: o essencial na experiência estética de uma obra não é o conteúdo nem a forma, mas a matéria significada, ou seja, um mundo com a sua própria dinâmica. Não pretendo comparar dois métodos científicos, mas admitir que um (o semiológico) pode colaborar com o outro (o hermenêutico).
HERMENÊUTICA E SEMIOLOGIA: UM PROBLEMA DA CRÍTICA LITERÁRIA ATUAL
Neste início de século XXI, observa-se um fenômeno significativo no que concerne à Crítica Literária (aliás, este fenômeno já é antigo: seus primórdios se localizam nos anos oitenta): há um impasse de teorias diversificadas, várias maneiras de se penetrar no universo do texto, e isto traz, para a Ciência da Interpretação, a dúvida, quanto a direção a ser seguida, na realização do trabalho crítico. Ressalte-se o fato de que todas as teorias convivem nos meios acadêmicos brasileiros, senão em harmonia total, pelo menos respeitando-se cordialmente, evitando, assim, as divergências que existiram nos anos setenta. Nos anos sessenta, não será demais lembrar, o Estruturalismo (ponto de vista analítico repressor) imperou nas Universidades. Nos anos cinqüenta, os universitários que se dedicavam ao estudo da literatura estavam submetidos às diretrizes teóricas (também analíticas e repressoras) do New Criticism americano, divulgado aqui no Brasil, pelo Professor Afrânio Coutinho, com o nome de Nova Crítica.
Por tais motivos, compreende-se, hoje, que não há como escolher um partido teórico único, no âmbito da Literatura-Arte, se há a facilidade de se conhecer cada facção e avaliar-lhe suas contribuições, em função do desvelamento e compreensão do texto. Restará ao crítico literário brasileiro atual, antes de fazer uma escolha consciente, observar as sugestões oferecidas pela própria obra, pelo próprio texto, relacionando razão e compreensão: A obra impõe a sua verdade e, portanto, o seu próprio método a ser utilizado. Não se pode dissociar a Crítica da Arte.
Em conseqüência deste impasse, a maneira de como interpretar um texto literário tornou-se um problema nos meios acadêmicos. (Não estou referindo-me aos teóricos conceituados). O que se observa atualmente, entre os alunos de Letras, é a utilização aleatória de todas as correntes críticas. Há um cruzamento de nomenclaturas que, ao invés de esclarecer a mensagem, torna-a ilegível.
Reconheço que este problema se origina no fato de o aspirante à função de Crítico Literário não possuir um conhecimento de base, já que o mesmo desconhece os postulados fundamentais de cada corrente crítica.
No que se refere à Hermenêutica, por exemplo, o problema torna-se mais grave, por esta ter sua origem nos primórdios da História religiosa do homem ocidental. Fala-se muito em Hermenêutica, mas não há, nos meios acadêmicos, um conhecimento correto em relação à mesma. Desconhecem-se seus questionamentos de origem, sua ligação com os Textos Sagrados, as divergências que a marcaram no decorrer de sua história, a sua posterior incursão nos domínios da Filosofia e da Literatura.
Por estas razões, farei uma breve retrospectiva da História da Hermenêutica, desde o seu advento, em que o que a preocupava era o problema da correta interpretação dos Textos Sagrados. Esta retomada histórico-reflexiva baseia-se em dados oferecidos por Emerich Coreth (op. cit.), e tem por objetivo inicial reconhecer o relato do problema teológico e a sua ligação com a questão hodierna da Hermenêutica, ou seja, a questão do conhecimento ao se contemplar as obras literárias não religiosas. A seguir, por esta mesma retrospectiva, buscarei um diferente olhar crítico, o qual irá proporcionar-me a defesa de meu objetivo central: provar a possibilidade de uma colaboração consciente da Semiologia da Literatura – das gerações atuais – com o desenvolvimento da Hermenêutica de um determinado texto.
Sem dúvida um pensamento que não se arme dialeticamente permanecerá inteiramente perdido diante de um fenômeno tão multidimensional como é o literário. Na chave da dicotomia, as categorias se opõem excluindo-se mutuamente. Somente os pensadores tricótomos pensam no eixo da contradição, admitindo um terceiro elemento como mediador dialético. E só estes possuem olhos para penetrar nas esquinas secretas dos caminhos da arte.[1]
APRESENTAÇÃO
Esta reflexão teórico-crítica tem por fim provar a possibilidade de uma colaboração dos Estudos Analíticos da Literatura com o desenvolvimento da Hermenêutica de um determinado texto.
Não se trata de qualquer texto, como se verá, já que cada obra impõe o seu próprio método de análise e/ou interpretação. Mas, no tipo de texto que pretendo intermediar criticamente (A hora e vez de Augusto Matraga, de Guimarães Rosa, o qual fez parte de minha Dissertação de Mestrado, em 1990, e, posteriormente, de minha Tese de Doutorado, em 1996), a Semiologia de Segunda Geração (de Roland Barthes, Umberto Eco e Anazildo Vasconcelos da Silva), certamente, oferece um corpo teórico, para a análise, e colabora com a posterior interpretação hermenêutica, possibilitando uma interação paradigmática consciente, de acordo com as exigências críticas atuais, voltadas à interdisciplinaridade.
Para que esta propedêutica não se desvirtualize (já que a direciono aos alunos de graduação em Letras), começarei resenhando o livro de Emerich Coreth, Questões Fundamentais de Hermenêutica[2], sobre a história do problema hermenêutico. A seguir, desenvolverei alguns dos principais elementos metodológicos do movimento hermenêutico do século XIX e verei o relacionamento dialético entre Hermenêutica e Ciência, a partir de Richard Palmer[3] e Paul Ricoer[4], discutindo as noções de compreensão, interpretação e o problema do método crítico. Ressalto que apoiar-me-ei nas conclusões do Professor Eduardo Portella (escritas na década de setenta, mas ainda atuais), para superar determinados impasses teóricos, já que colocarei a Semiologia de Segunda Geração (própria para análises literárias) como Ciência Auxiliar à compreensão dos sentidos. Para tal empresa, utilizarei também alguns postulados do semiólogo italiano Umberto Eco. Assim, nas páginas finais desta propedêutica, retomarei os ensinamentos de Ricoer e Eduardo Portella, esperando demonstrar então a possibilidade da Semiologia da Literatura realizar com a Hermenêutica um criador diálogo, uma contribuição criadora para o entendimento do fenômeno literário.
Quero esclarecer ainda que, ao postular a possibilidade de uma colaboração entre Semiologia e Hermenêutica, não é minha intenção comparar o método de uma Ciência com o de outra. Ambos (os métodos) possuem, segundo o meu ponto de vista, qualidades próprias. A experiência de contemplação da obra tem de abranger os dados visíveis e não-visíveis. Esta experiência de contemplação da obra é um conhecimento (nomenclatura hermenêutica). Não há como separar forma e conteúdo. Direi ainda, apoiada em Gadamer: o essencial na experiência estética de uma obra não é o conteúdo nem a forma, mas a matéria significada, ou seja, um mundo com a sua própria dinâmica. Não pretendo comparar dois métodos científicos, mas admitir que um (o semiológico) pode colaborar com o outro (o hermenêutico).
HERMENÊUTICA E SEMIOLOGIA: UM PROBLEMA DA CRÍTICA LITERÁRIA ATUAL
Neste início de século XXI, observa-se um fenômeno significativo no que concerne à Crítica Literária (aliás, este fenômeno já é antigo: seus primórdios se localizam nos anos oitenta): há um impasse de teorias diversificadas, várias maneiras de se penetrar no universo do texto, e isto traz, para a Ciência da Interpretação, a dúvida, quanto a direção a ser seguida, na realização do trabalho crítico. Ressalte-se o fato de que todas as teorias convivem nos meios acadêmicos brasileiros, senão em harmonia total, pelo menos respeitando-se cordialmente, evitando, assim, as divergências que existiram nos anos setenta. Nos anos sessenta, não será demais lembrar, o Estruturalismo (ponto de vista analítico repressor) imperou nas Universidades. Nos anos cinqüenta, os universitários que se dedicavam ao estudo da literatura estavam submetidos às diretrizes teóricas (também analíticas e repressoras) do New Criticism americano, divulgado aqui no Brasil, pelo Professor Afrânio Coutinho, com o nome de Nova Crítica.
Por tais motivos, compreende-se, hoje, que não há como escolher um partido teórico único, no âmbito da Literatura-Arte, se há a facilidade de se conhecer cada facção e avaliar-lhe suas contribuições, em função do desvelamento e compreensão do texto. Restará ao crítico literário brasileiro atual, antes de fazer uma escolha consciente, observar as sugestões oferecidas pela própria obra, pelo próprio texto, relacionando razão e compreensão: A obra impõe a sua verdade e, portanto, o seu próprio método a ser utilizado. Não se pode dissociar a Crítica da Arte.
Em conseqüência deste impasse, a maneira de como interpretar um texto literário tornou-se um problema nos meios acadêmicos. (Não estou referindo-me aos teóricos conceituados). O que se observa atualmente, entre os alunos de Letras, é a utilização aleatória de todas as correntes críticas. Há um cruzamento de nomenclaturas que, ao invés de esclarecer a mensagem, torna-a ilegível.
Reconheço que este problema se origina no fato de o aspirante à função de Crítico Literário não possuir um conhecimento de base, já que o mesmo desconhece os postulados fundamentais de cada corrente crítica.
No que se refere à Hermenêutica, por exemplo, o problema torna-se mais grave, por esta ter sua origem nos primórdios da História religiosa do homem ocidental. Fala-se muito em Hermenêutica, mas não há, nos meios acadêmicos, um conhecimento correto em relação à mesma. Desconhecem-se seus questionamentos de origem, sua ligação com os Textos Sagrados, as divergências que a marcaram no decorrer de sua história, a sua posterior incursão nos domínios da Filosofia e da Literatura.
Por estas razões, farei uma breve retrospectiva da História da Hermenêutica, desde o seu advento, em que o que a preocupava era o problema da correta interpretação dos Textos Sagrados. Esta retomada histórico-reflexiva baseia-se em dados oferecidos por Emerich Coreth (op. cit.), e tem por objetivo inicial reconhecer o relato do problema teológico e a sua ligação com a questão hodierna da Hermenêutica, ou seja, a questão do conhecimento ao se contemplar as obras literárias não religiosas. A seguir, por esta mesma retrospectiva, buscarei um diferente olhar crítico, o qual irá proporcionar-me a defesa de meu objetivo central: provar a possibilidade de uma colaboração consciente da Semiologia da Literatura – das gerações atuais – com o desenvolvimento da Hermenêutica de um determinado texto.
UMA RETOMADA DA HISTÓRIA DA HERMENÊUTICA
Muito antes de se pensar na Hermenêutica como a concebemos hoje, ou seja, como Ciência da Interpretação e da Observação Crítica – ciência que questiona a correta interpretação dos textos literários –, já a questão era problematizada pelos intérpretes (os antigos “escribas”) das mensagens contidas no Antigo Testamento. Emerich Coreth, ao se referir aos escribas, situa-os como os primeiros exegetas que procuravam questionar a importância de uma correta interpretação dos Textos Sagrados. Observe-se que esses textos anunciavam o nascimento do Salvador, e os mesmos eram interpretados por sacerdotes rudes, os quais legaram à posteridade suas interpretações ambíguas. Com o advento do Novo Testamento, as ambigüidades se desfazem, pois quem as esclarece não é outro senão o próprio Filho de Deus, o Salvador esperado. Segundo Coreth, o Novo Testamento se coloca, desde as primeiras páginas, como o único intérprete autêntico das Mensagens Sagradas. Reavaliando as palavras de Coreth por uma diretriz interpretativa, isto se deve ao aval de Jesus Cristo, ao procurar elucidar, para as multidões que o acompanhavam, todas as ambigüidades do Antigo Testamento anteriormente questionadas, algumas que foram interpretadas incorretamente, de acordo com o que nos passa o Novo Testamento.
Jesus Cristo posicionou-se como o fecho de um ciclo da História dos hebreus e a estrutura basilar de uma nova etapa da História da humanidade. Se graças à sua interpretação os Textos Sagrados ficaram devidamente esclarecidos, ou se o povo acatava os ensinamentos sem formular questões, quanto à profundidade do que era recebido – haja vista as parábolas simplificadas –, o mesmo não aconteceu posteriormente. Coreth alerta para toda uma problemática da compreensão, tanto do Antigo quanto do Novo Testamento, envolvendo os exegetas dos Textos Sagrados, desde o século II d. C. Menciona as divergências existentes entre os padres que seguiam as orientações da Escola de Antioquia, em contraponto com os postulados da Escola Alexandrina. Situa esse momento como marco de um futuro problema hermenêutico, pois, se uma Escola procurava ressaltar o sentido histórico contido na Bíblia (Escola de Antioquia), a outra colocava em evidência a necessidade de se atingir o sentido espiritual que se evolava das páginas sagradas. Esses dois pontos de vista divergentes atestam o caráter polêmico da Bíblia (como repositório das mais diversas expressões literárias), sem, contudo, despojar-se de sua condição de reveladora da palavra de Deus. Atestam, inclusive, a dificuldade do intérprete de ater-se a uma interpretação consensual. Coreth informa ainda que Orígenes [um estudioso preocupado em unir a investigação histórico-filológica do texto a uma noção distinta dos vários sentidos que se podem destacar do mesmo] procurava ligar as duas correntes conscientemente, procurando desenvolver uma investigação cuidadosa. Prosseguindo em sua recapitulação histórica do problema teológico, ressalta, cuidadosamente, as divergências de opiniões entre São Jerônimo e Santo Ambrósio, bispo de Milão, e orientador de Santo Agostinho em sua redescoberta do Cristianismo.
No que se refere a Santo Agostinho, é importante destacar seu caráter conciliador, ao procurar aliar as duas formas de interpretar a Bíblia. Isto se prende ao fato de que o mesmo vivenciou várias formas de vida contemplativa, antes de se converter definitivamente ao cristianismo. Conhecendo-se suas transformações existenciais e religiosas, não é difícil compreender o porquê dessa atitude conciliadora (também destacada por Coreth). De origem cristã, o futuro Bispo de Hipona desenvolveu sua inteligência dentro de conceitos filosóficos e científicos distantes dos ensinamentos religiosos de sua infância. Estudou retórica, leu os professores e poetas latinos, desenvolveu estudos referentes às Ciências Humanas (foi aluno de Varrão) e, posteriormente, aderiu-se à doutrina Maniqueísta, abandonando os postulados cristãos da revelação sobrenatural da palavra de Deus, em benefício de uma orientação religiosa fundamentada apenas no conhecimento racional. Não satisfeito com esta doutrina, torna-se discípulo de Ambrósio, Bispo de Milão. Por tais razões, mesmo abandonando os conceitos da razão pura e retornando às normas do Cristianismo, o ex-estudioso das teorias de Varrão, ex-professor de gramática e retórica, ex-maniqueísta, jamais pode eliminar de sua vida o que foi aprendido e vivenciado. Restou-lhe uma atitude conciliadora: interpretar a Bíblia observando o elemento sobrenatural, sem abdicar do racional.
O problema da compreensão dos Textos Sagrados continuou repercutindo nas etapas seguintes da Era Moderna: a reforma luterana em oposição à Igreja Romana, posteriormente a Contra-Reforma [numa tentativa de recuperar o anterior poder religioso, naquele momento em decadência], passando pelo pensamento Iluminista e sua visão racional da mensagem divina, até chegar a Hegel e outros pensadores.
No século XIX, inaugura-se o movimento hermenêutico, propriamente dito. É nesse momento que vamos encontrar a palavra hermenêutica como sinônimo de investigação e compreensão do texto ainda religioso, visando a opor-se à pesquisa histórico-crítica, método que tem sua origem na obra polêmica de David Friedrich Strauss, A Vida de Jesus, e que procurava ressaltar, na Bíblia, a história do Antigo Oriente, preocupando-se em estudar os aspectos lingüísticos e culturais em detrimento do sentido sobrenatural contido nos Textos e revelador dos desígnios de Deus. O movimento hermenêutico opunha-se ao método histórico-crítico, mas, ao mesmo tempo, não desprezava a contribuição valiosa oferecida por essa forma de investigação crítica da Bíblia e, inclusive, destacava seu caráter esclarecedor. Não se tratava exatamente de uma oposição, mas de conciliação, postura que outros exegetas da Bíblia adotaram, no transcorrer da História Religiosa do Homem.
Observando a repercussão histórica do problema teológico, pelo ponto de vista crítico de Emerich Coreth, contido no livro já citado, pude encontrar o cerne de meu questionamento sobre o problema da Crítica atual, em outras palavras, a base para o meu próprio postulado que, a partir de agora, desenvolverei, ou seja, o problema atual dos vários paradigmas analítico-interpretativos que convivem, mescladamente, no âmbito da Ciência da Literatura. Trazendo à luz os problemas que afligiam os intérpretes da Bíblia no passado, Coreth procurou demonstrar a perenidade dos conflitos interpretativos, tanto na área das Ciências Exatas, quanto na das Ciências Humanas, inerentes à História da Humanidade. Diz ele, falando especificamente do problema hermenêutico:
Em todo caso, põe-se aqui já o problema em toda a sua amplitude, evidenciando que a questão hermenêutica da atualidade não é, no fundo, nova, mas retoma um antigo problema, ainda que de um outro modo e sob novos pontos de vista.[5]
O que marca o movimento hermenêutico do século XIX, não é seu caráter opositor e, ao mesmo tempo, conciliador, mas o fato de que, por intermédio dele, o posicionamento crítico, marcadamente religioso, desprende-se dos Textos Sagrados, alcançando os domínios da Filosofia e da Literatura. A Crítica passa a centralizar-se no problema da compreensão do texto como linguagem, questionamentos esses que levaram ao entendimento da essência do Homem e do Universo, e que estavam antes restritos ao âmbito dos estudos teológicos.
Quanto à Literatura, nosso tema de reflexão crítica, a Hermenêutica passa a promover a compreensão dos textos, tornando-se conhecida como a teoria que permite compreender e, posteriormente, explicar o que foi compreendido. Compreensão não como faculdade de compreender, como se vê nos dicionários, mas como maneira de ser e relacionar-se com os seres e com o ser, no dizer de Ricoer.[6]
Sem deixar de pertencer aos domínios da investigação teológica (o que se conhece como Hermenêutica Específica), a Hermenêutica da Filosofia e da Literatura expande-se, e passa a centralizar na linguagem do texto (seja religioso, histórico ou literário) a sua busca de compreensão da essência do Homem e de sua atuação como ser-no-mundo, passando também a possibilitar ao investigador uma maior amplitude de visão, permitindo-lhe o alcance dos sentidos do texto investigado.
No que se refere à interpretação literária, faz-se necessário, agora, um esclarecimento. Observe-se que compreender um texto não é suficiente, necessita-se de uma operação ou transação que possibilite esclarecer e decifrar o significado da obra. Necessita-se saber distinguir o que realmente quis-se anunciar; quais as mensagens contidas em um texto que se produz em uma linguagem pluri-ambígua. Impõe-se assim um método de abordagem transmutativo, uma atitude mediadora entre compreensão e explicação (posicionamento fundamental da Hermenêutica). A este método de abordagem dá-se o nome de interpretação. Como interpretar fundamenta-se em postulados científicos, diferentes da compreensão como elemento do universo crítico-filosófico hermenêutico (fenomenológico), subentende-se que não há como fugir a um inter-relacionamento entre Hermenêutica e Ciência. Uma questão que foi observada nos anos setenta, permanece ainda insolúvel neste início de terceiro milênio, incomodando a maior parte dos profissionais da Ciência da Literatura, simpatizantes do antigo método da análise literária estruturalista. No momento em que se propõe uma nova atitude didática, uma aproximação necessária entre o professor e seus alunos, não há mais como promover o distanciamento. Se o professor for realmente um artífice de categoria, em sua disciplina de estudos literários, saberá como promover o entendimento e o diálogo receptivo.
INTERCÂMBIO ENTRE CIÊNCIA E HERMENÊUTICA: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO
Quando se retoma o posicionamento de Richard E. Palmer[7], apresentado nos anos oitenta, recusando-se a reconhecer no método científico uma atitude válida para o esclarecimento do texto, volta-se à questão, já assinalada pelos exegetas da Bíblia, de opor-se ou aderir-se a uma conciliação entre o sentido apreendido e a forma de esclarecer o que foi decifrado. Palmer desenvolve e reconhece a necessidade de se procurar um método, ou teoria que possibilite a decifração da marca humana contida na obra literária. Método e Teoria são palavras que fazem parte do universo teórico-crítico das Ciências Exatas; decifrar não é o mesmo que compreender, portanto, não se visualiza outra saída para a Crítica Literária atual: pressupõe-se um intercâmbio entre Ciência (análise) e Hermenêutica (conhecimento), em benefício da verdadeira compreensão do texto literário.
Palmer diz:
É certo que os métodos de “análise científica” podem e devem ser aplicados às obras, mas ao proceder deste modo estamos a tratar as obras como objetos silenciosos e naturais. Na medida que são objetos, são redutíveis a métodos científicos de interpretação; enquanto obras, apelam para modos de compreensão mais sutis e compreensíveis.[8]
Palmer não procura separar interpretação e compreensão, apenas não concorda que as obras sejam observadas como objetos silenciosos. É lógico que há, hoje, várias formas de interpretar e avaliar a mensagem do texto [um fenômeno da globalização], mas todas passam por pressupostos científicos, inclusive a interpretação que se faz, atualmente, por uns poucos iniciados, dentro do que se impõe como Crítica Receptiva. Como sabemos, esta diretriz crítica é exatamente a tal forma conciliadora, retirada de um pensamento tricótomo (relembrando aqui a epígrafe desta propedêutica, de autoria de Eduardo Portella), revestida com um título pomposo - Estética da Recepção -, mas que tem suas raízes na Hermenêutica e Dialética.
A Hermenêutica, como a concebemos atualmente, também é Ciência, ou por outra, é um postulado científico, porquanto passa por uma averiguação que não se pode localizar no âmbito apenas da compreensão divinatória, se reporto-me aos ensinamentos de Schleiermacher. Há de se acrescentar à intuição espontânea o esclarecimento da Verdade Científica. Nesta manifestação do intelecto está a faculdade de percepção do Homem atual. Sem se pleitear confundir compreensão com faculdade de compreender, faz-se necessário observar o Homem e o Mundo pós-modernos, e, conseqüentemente, a obra literária, que os problematiza dentro de sua realidade. Realidade esta, não será demais lembrar, que já se encontra mascarada por opiniões ou juízos conflituosos, que longe estão do padrão comunitário dos antigos dogmas religiosos. Sem se pretender confundir compreensão com faculdade de compreender, faz-se imprescindível observar o Homem como ser-no-mundo, como ser específico de um mundo que, ao longo do século XX, foi-se deteriorando, gradativamente, fragmentando-se, e encaminhando-se para um ponto que, segundo as reflexões de Baudrillard[9], em seu livro América, será um ponto de fuga em direção ao Nada.
No que se relacione ao texto literário propriamente dito, e de acordo com os postulados hermenêuticos, concebêmo-lo como repositório da problemática social e psíquica que envolve o Homem e o Mundo. Para que haja uma interpretação consciente de um texto literário, há a necessidade de o intérprete estar preparado para captar a ambigüidade, a pluralidade de sentidos que uma obra da arte literária oferece. A obra literária é um enigma; é preciso decifrar esse enigma, trazer à luz os sentidos ocultos, os quais subjazem nas entrelinhas. Assim, para um reconhecimento crítico seguro, faz-se indispensável um conhecimento analítico que propicie, depois da análise evidentemente, a compreensão dessas camadas invisíveis. Por esta linha conciliadora (exigência deste momento pós-moderno), o intérprete se apropria do papel de leitor participativo, incorporando-se ao texto interpretado, pois, graças a uma prévia compreensão do que se passa no universo da linguagem literária (seja ela poética ou ficcional), passa a compreender a mensagem do outro. O texto se coloca como mediador entre a obra e o intérprete. Este só compreende e interpreta porque possui já uma compreensão anterior de sua própria atuação como ser-no-mundo, e, assim, está apto para compreender o que se encontra subentendido nas entrelinhas do texto. Compreendendo, liberta-se; interpreta-se a extensão do ato de compreender. Compreendendo o texto, o intérprete dispõe-se a observar suas próprias preconcepções do mundo, e dele mesmo, que se acham inseridas em sua consciência transmutativa.
O texto é também mediador entre compreensão e interpretação. Compreendendo-o e interpretando-o hermeneuticamente, interpreta-se a própria consciência, desvenda-se o próprio inconsciente. Compreendendo o outro, interpretando seus questionamentos, sua posição diante do Mundo e do enunciado, passa-se a compreender as próprias indagações e as indagações do Universo; permutam-se conhecimentos; exerce-se o ato (ou hábito) de questionar e/ou responder, ou mesmo de se buscar a resposta através da polissemia da palavra, promovedora de uma série de significações.
Mas, se a compreensão do texto literário proporciona concebê-lo como repositório da problemática social e psíquica que envolve o Homem e o Mundo, é também lícito repetir que estou aqui a referir-me ao Homem e ao Mundo atuais. Estes já vivenciaram novas etapas de vida; novos conhecimentos se foram agregando aos do passado. Não é o caso de avaliar se tais conhecimentos foram benéficos ou não, o fato é que eles se materializaram, e é impossível pensar em desfazer-se deles.
E eis que chego, agora, ao ponto central de meu postulado: Como conceber um método crítico satisfatório, se no universo da Crítica Literária atual há diversos encaminhamentos que propiciam o desvelamento do texto?
É bom reafirmar que a questão não é nova. Desde o advento da Lingüística, e o posterior surgimento dos postulados científicos, penetrando o universo da obra literária e tentando decodificá-la unicamente por meio da análise explícita, que o problema se faz presente nos domínios da Crítica.
Se nos últimos decênios do século dezenove a compreensão hermenêutica, ao se desprender dos Textos Sagrados, possibilitou uma amplitude de visão, centralizada no texto profano e na sua ambigüidade, permitiu também, gradativamente, o desenvolvimento de diferentes abordagens, todas de caráter científico.
A Teoria do Conhecimento foi cedendo a vez às análises puramente científicas, fechadas e auto-suficientes, e, quando já se pensava que a supremacia do posicionamento científico era um fato concreto e irreversível, ressurge a Hermenêutica (e ressurgirá sempre que houver necessidade de mudanças), desta vez provando (e eis nesta prova algo de científico) que, além do texto explícito (a linguagem literária), há outras camadas da obra literária dignas de serem observadas e compreendidas.
Os antagonismos existentes entre as duas facções eram visíveis nos anos setenta, e é naquele momento que encontro, no que se relaciona especialmente à Crítica Literária no Brasil, o professor Eduardo Portella, preocupado com o cientificismo crítico, que aqui se aportara nos anos cinqüenta e sessenta, e que se fechava em prepotentes modelos de como se interpretar os textos literários. Observe-se a sua posição defensiva a respeito da questão, a qual seria examinada no decorrer de sua teorização assentadamente hermenêutica, e que está registrada no seu livro Fundamentos da Investigação Literária:
Recusamo-nos inicialmente a imaginar a crítica literária fechada em si mesma, entregue a uma estranha forma de autodevoramento. Criticar é rasgar novos horizontes de compreensão. Uma crítica enclausurada será fatalmente uma crítica cega, provinciana ou parasitária. O seu entendimento superlativo pressupõe a consciência de sua interdisciplinaridade.[10]
Penso também, resguardada por Eduardo Portella, que “criticar é rasgar novos horizontes de compreensão”; reconheço, como profissional de Letras, que não se pode prescindir, nos estudos literários, da contribuição da Crítica Hermenêutica, propulsora do alcance das camadas mais profundas da obra literária e diretriz consciente da compreensão de suas mensagens unívocas, que se encontram camufladas nas entrelinhas. Mas, assim como Eduardo Portella já observava, na década de setenta, a “progressiva pressão dos modelos científicos no âmbito do fazer ou do saber literário”[11], e se preocupava em desenvolver uma espécie de reciclagem terminológica, visando se posicionar hermeneuticamente, abolindo de suas teorizações qualquer contato epistemológico, assim, também, encontro-me agora, nesta propedêutica e em meu próprio campo de trabalho. Usando outras palavras, tenho consciência de que a questão permanece, aqui no Brasil (não estou a referir-me aos posicionamentos americanos e europeus), apesar da afirmação de uns poucos teóricos, os quais divulgam que a tensão entre as duas correntes inexiste. Para tal comprovação, bastará ao crítico tricótomo fazer uma avaliação do que ocorre, em termos de ensino da Literatura, nas diversas Universidades do país.
Atualmente, ao invés da “pressão”, o que existe são trilhas díspares, abertas a todos incondicionalmente, e que levam o analista desavisado e/ou o pseudo-intérprete da obra literária a desenvolver uma crítica aleatória, misturando os conceitos e as terminologias dos diversos tipos de crítica literária. É lícito lembrar que estes diversos paradigmas são importantes, mas deveriam ser teoricamente bem encaminhados.
Ainda, apoiando-me no pensamento do professor Eduardo Portella, continuo repetindo a sua assertiva: “criticar é rasgar novos horizontes de compreensão”. Penso que todos esses encaminhamentos críticos são válidos, desde que se saiba situá-los corretamente. Penso no texto como mediador de compreensão e somente ele dirá qual a forma de desenvolvimento crítico a ser seguida. Cada texto impõe a própria Verdade, e não é lícito que o crítico se afaste desta Verdade compreendida.
Se hoje, em nossos meios intelectuais, não há mais a “pressão dos modelos científicos no âmbito do fazer ou do saber literário”, como muitos afirmam, infere-se que estas linhas críticas díspares reverteram-se em um novo problema. Urge reordenar o desordenado por meio de uma conciliação crítica satisfatória. A Semiologia de Segunda Geração, proposta por Umberto Eco nos anos oitenta, continua válida, uma vez que, pressionada pelas exigências críticas da Fenomenologia, a mesma reconheceu a sua validade apenas para os estudos analíticos preliminares, lineares, aceitando as posteriores incursões do analista-intérprete nas camadas invisíveis da obra. Esta aceitação deveu-se unicamente aos plurissignificativos textos [de poesia e prosa] dos escritores do século XX, os quais naturalmente se obrigaram a interpretar criativamente a sua desordenada realidade. Assim, a Semiologia de Segunda Geração (anos oitenta), de Umberto Eco, de Roland Barthes e outros, reivindicando somente a decodificação do texto literário, por meio de esquemas objetivos, e certa ao aceitar que se desenvolva posteriormente qualquer tipo de interpretação, desde que se respeite seus postulados básicos, preliminares, limitados apenas ao texto, enquanto camada explícita da obra literária], aliada conciliadoramente à Hermenêutica, ou qualquer outra linha crítica sócio-fenomenológica, parece-me a solução ideal, pelo menos momentaneamente (não se deve perder de vista o fato de que a Crítica Literária deverá, forçosamente, adaptar-se aos valores estéticos das épocas vindouras). Presa ao meu momento histórico-estético, penso em uma conciliação entre análise e interpretação. Mais precisamente, como base analítica, só vejo a Semiologia de Segunda Geração como colaboradora de uma interpretação extra-texto. Aos Estudos Semiológicos de Segunda Geração, conhecidos como Crítica Semiológica, não importam se a posterior interpretação (do que foi decodificado por meio de esquemas) é semi-hermenêutica (termo de minha autoria, pois a crítica autenticamente hermenêutica não se permite misturas), psicanalítica ou sociológica. Importam-lhes que a interpretação seja pertinente e não se distancie em demasia do universo pesquisado, distorcendo a mensagem explícita e/ou unívoca do texto literário. É bem verdade que a Semiologia, enquanto suporte analítico, não possibilita a compreensão do sentido que se oculta ali, ao desenvolver seus estudos esquemáticos, mas não impede que se observe a posteriori as outras camadas. Atualmente, os já renovados semiólogos da literatura têm consciência de que a linguagem do texto-arte é pluri-ambígua, permitindo diversos pontos de vista interpretativos. O problema se atém somente ao fato de que não há um consenso pertinente, que esclareça a desordenação crítica atual, observada no entrelaçamento aleatório das diversas e confusas nomenclaturas.
A partir de agora, entro no núcleo temático deste empreendimento: superar o impasse teórico-crítico, no âmbito específico da Crítica Literária, entre análise (cientificismo) e interpretação (fenomenologia).
A Semiologia de Segunda Geração, tal como a entendo e pratico, não é uma teoria reducionista, não reduz a obra literária a um mero objeto de análise sem vida. Há, realmente, aqueles semiólogos que assim procedem. Eu defendo, aqui, as idéias de Roland Barthes e Umberto Eco, provedoras de uma Semiologia (para o texto literário) aberta, uma Semiologia que seja, e não mais que isto, um ponto de partida para a posterior interpretação hermenêutica. Esta Semiologia, do tipo praticada pelos semiólogos acima citados, visa a decodificar os signos e sinais contidos no texto, nas mensagens, nos relatos, mas passa adiante, ultrapassando o sistema de signos e chegando, mais precisamente com Barthes, quase ao nível do texto literário propriamente dito.
Umberto Eco, um dos baluartes da “arte” de como desenvolver uma leitura semiológica do texto literário, na introdução de seu livro Leitura do Texto Literário[12], coloca em evidência a necessidade de uma cooperação interpretativa nos textos literário, não sem antes assinalar o fato de que esta cooperação interpretativa é, realmente, um problema a ser avaliado.
Como uma obra de arte poderia, por um lado, postular uma livre intervenção interpretativa por parte dos próprios destinatários e, por outro, exibir características estruturais que estimulam e ao mesmo tempo regulam a ordem das suas interpretações?[13]
Como exemplos de seu questionamento, Umberto Eco, referindo-se a um estudo de Jakobson, sobre “Les chates”, de Baudelaire, procura demonstrar, em benefício da compreensão, “a função ativa desempenhada pelo leitor na estratégia poética do soneto”.[14]
Quando publicou o seu livro Obra Aberta[15] Eco já fora criticado por Lévi-Strauss, que não concordava com a sua concepção de que a obra é aberta à interpretação do leitor. Para Lévi-Strauss, a obra é fechada, dotada de propriedades precisas que só a análise deve especificar.
Reportando-se à análise feita por Jakobson, Umberto Eco se defende e demonstra que o próprio Jakobson já previra a cooperação do leitor [talvez inconscientemente], ao desenvolver categorias, observadas através de um ponto de vista estruturalista, acerca das "“unções da linguagem"” Tais categorias falavam de “emissor, destinatário e contexto”, como “indispensáveis ao tratamento do problema da comunicação, mesmo da comunicação estética”.[16] Umberto Eco assinala, ainda, que um texto como “Les chats” reivindica a cooperação do leitor, assim como deseja também que este ensaie uma série de opções interpretativas, e defende a sua tese de que é possível uma abertura interpretativa do texto, mesmo sendo adepto dos postulados semiológicos.
Postular a cooperação do leitor não significa contaminar a análise estrutural com elementos extratextuais. O leitor, como princípio ativo da interpretação, faz parte do quadro generativo do próprio texto.
Se até mesmo os reenvios anafóricos postulam cooperação por parte do leitor, então nenhum texto escapa a esta regra.[17]
Se antes a intervenção interpretativa era vista com desdém pelas normas estruturalistas [portanto, científicas], e totalmente eliminada em proveito de um estudo objetivo e metodológico, agora a mesma passou a ser respeitada, mas, ainda há opositores, oriundos das antigas exigências estruturalistas, que se recusam a uma necessária reciclagem crítica. Então, se a questão permanece sublinearmente (interagindo nas diversas Universidades do país), porque não buscar a conciliação, por meio de um renovado ponto de vista crítico, aceito por todos, e que seja devidamente registrado nos meios intelectuais. O semiólogo Umberto Eco, com seus questionamentos dos anos oitenta (quase à moda hermenêutica), permitiu uma abertura, permitiu conciliar pontos de vista divergentes em prol de uma consciente compreensão do texto.
Procuro articular as semióticas textuais com a semântica dos termos, limitando o objeto do meu interesse aos processos de cooperação interpretativa.[18]
Logo, para Umberto Eco, o “sentido” dos significados é tão importante quanto o desenvolvimento de uma articulação semiológica com os textos literários. E, para ele, não é lícito “isolar estruturas formais”, ou seja, desenvolver “análise de aspectos significantes” sem acatar, de antemão, uma interpretação, um preenchimento dos espaços das entrelinhas (espaços estes que jamais poderão ser tachados de vazios, quando, ao contrário, são plenos de significações), os quais só poderão ser revelados por meio da colaboração do leitor.
Percebe-se que Umberto Eco não é avesso a uma interpretação hermenêutica, mesmo que, por motivos óbvios, não assinale em seu trabalho esta provável concordância. A Ciência é um fato palpável em nossos dias. Prepotente ou não, ela faz-se presente em nosso cotidiano e, como sempre se observou, não se eliminam da História do Homem os conhecimentos que foram revelados e que vão sendo sucessivamente revelados.
Assim, a Hermenêutica atual se vê em face de uma questão, qual seja a de usar uma metodologia, sem se submeter às imposições da Ciência. O problema foi detectado por Eduardo Portella, no início da década de setenta, passou pelos anos oitenta e noventa, e, segundo minhas observações acadêmicas, continua insolúvel, neste início de Terceiro Milênio.
Como forma de revisão do impasse gerado nos anos setenta, recupero, aqui, o posicionamento de Eduardo Portella, delineando a sua concepção de expressão crítica, e defendendo uma disposição acentuadamente hermenêutica.
O empreendimento metodológico que levamos a efeito, embora obediente a determinados padrões de rigor que são eminentemente científicos, em nenhum instante quis comprometer a natureza peculiar do fenômeno literário.[19]
Como se observa, não estou extrapassando limites, colocando o termo dentro da jurisdição científica. Muito menos coloco-me como adepta inconteste dos postulados da crítica de base científica, quando reconheço a priori a importância da Hermenêutica, para que se desenvolva uma compreensão autêntica do sentido do texto. Apenas admito uma cooperação semiológica, repito, de Segunda Geração, uma vez que, nestes meus anos de magistério, ainda não reconheci novos segmentos da Semiologia Literária (é bem possível que, no âmbito da Lingüística, tal fato tenha acontecido). Admito a cooperação semiológica porque, não se pode negar, a Semiologia, aquela que lida especificamente com a forma literária, permite que se observe o texto translucidamente, promovendo a correta compreensão da mensagem implícita nele.
Repetirei mais uma vez que sou partidária de uma saudável conciliação entre ciência e fenomenologia. A ciência explica e a fenomenologia esclarece (a postulação de uma episteme, como base de estudos críticos, será sempre necessária ao estudioso da literatura). Como já observei antes, pela ótica de Paul Ricoer, ao adepto da Hermenêutica atual se coloca a alternativa entre compreender e explicar a mensagem, e esta alternativa só se realiza por intermédio da interpretação. É ainda pelo ponto de vista de Ricoer que continuo a refletir esta questão tão antiga em nossos meios e, ao mesmo tempo, tão atual.
Vejo a história recente da hermenêutica dominada por duas preocupações. A primeira tende a ampliar progressivamente a visada da hermenêutica, de tal modo que todas as hermenêuticas regionais sejam incluídas numa hermenêutica geral. Mas esse movimento de desregionalização não pode ser levado a bom termo sem que, ao mesmo tempo, as preocupações propriamente epistemológicas da hermenêutica, ou seja, seu esforço para constituir-se em saber de reputação científica, estejam subordinadas a preocupações ontológicas segundo as quais compreender deixa de aparecer como um simples modo de conhecer para tornar-se uma maneira de ser e de relacionar-se com os seres e com o ser. O movimento de desregionalização se faz acompanhar, pois, de um movimento de radicalização, pelo qual a hermenêutica se torna, não somente geral, mas fundamental.[20]
Por conseguinte, num primeiro posicionamento, a Hermenêutica preocupa-se mais com a linguagem, mais especificamente, no dizer de Ricoer, com a linguagem escrita. Isto acontece porque a linguagem escrita reflete uma característica peculiar da linguagem humana (a polissemia), quando se observa o significado das palavras fora de seu contexto expressivo. Por meio desta constatação, passa-se para um segundo posicionamento, no qual se exige sensibilidade e compreensão, porque, ainda segundo Ricoer,
(...) o manejo dos contextos (...) põe em jogo uma atividade de discernimento que se exerce numa permuta concreta de mensagens entre os interlocutores, tendo por modelo o jogo da questão e da resposta. Esta atividade de discernimento é, propriamente, a interpretação: consiste em reconhecer qual a mensagem unívoca que o locutor construiu apoiado na base polissêmica do léxico comum. Produzir um discurso relativamente unívoco com palavras polissêmicas, identificar essa intenção de univocidade na recepção da mensagem, eis o primeiro e o mais elementar trabalho da interpretação. É no interior desse círculo bastante amplo de mensagens trocadas que a escrita demarca um domínio limitado, chamado por W. Dilthey (...) de expressões da vida fixadas na escrita. São elas que exigem um trabalho específico de interpretação, por razões (...) que se devem justamente à efetuação do discurso como texto. Digamos, provisoriamente, que, com a escrita, não se preenchem mais as condições da interpretação direta mediante o jogo da questão e da resposta, por conseguinte, através do diálogo. São necessárias, então, técnicas específicas para se elevar ao nível do discurso a cadeia dos sinais escritos e discernir a mensagem através das codificações superpostas, próprias à efetuação do discurso como texto.[21]
Ricoer já postulava, nos anos setenta, como se vê, uma Hermenêutica que se baseasse em pressupostos científicos. O termo discernir, por exemplo, distancia-se em muito dos postulados hermenêuticos anteriores, os quais pregavam apenas uma compreensão para uma posterior explicação, à moda dos exegetas da Bíblia. Discernir remete-me aos postulados semiológicos, os quais indicam a forma exata de como distinguir, diferenciar, separar, apartar, identificar, palavras-chave que conduzem à decodificação [termo também usado por Ricoer, nesta longa citação que destacamos acima], e que, de acordo com a nomenclatura semiológica, servem para destacar os referentes, os sememas, os semas, as isotopias núcleos que compõem o todo do texto ; palavras-chave que permitem discernir a verdadeira mensagem do texto-arte, evitando que se desenvolva uma crítica distanciada do seu sentido exato, e que poderá ser destacado na interpretação.
Foi Schleiermacher o primeiro a se conscientizar da necessidade de uma reavaliação dos pressupostos hermenêuticos. Antes dele, as questões se localizavam nas duas formas, já assinaladas no início de minha considerações, de como se interpretar os Textos Sagrados, e numa análise filológica dos textos greco-romanos. Portanto, foi a partir de Schleiermacher que a “arte de compreender” desenvolveu-se até chegar ao ponto em que se encontra agora.
É de meu particular interesse lembrar que a Semiologia desenvolve uma técnica objetiva, cerceando, num primeiro momento, por intermédio de estudos esquemáticos, a compreensão espontânea do intérprete, mas, repito, depois dos estudos semiológicos, o texto se ilumina, permitindo que se observe o seu próprio reverso. Depois da análise, o intérprete passa a observar o que se esconde nas entrelinhas do literário.
Retomo, agora, as reflexões de Eduardo Portella, para, novamente, concordar com a sua assertiva de que “criticar é rasgar novos horizontes”. Se não há como “pensar a literariedade sem ser em tensão (ou, direi por minha vez, em colaboração) com a cientificidade, porque não submetermo-nos a um encontro que se efetive para além da recusa passional ou da submissão ingênua: seja um diálogo criador”.[22]
Ainda em relação ao termo decodificação, de largo uso na crítica de base cientificista, Eduardo Portella esclarece:
Decodificação não quer dizer necessariamente coincidência ou acordo; quer dizer apenas a ultrapassagem da incompreensão. Porque o único que se lhe pede é que esteja ancorada no porto seguro do entendimento.[23]
Não foi outra coisa o que propus aqui. Postulei uma contribuição satisfatória para o entendimento atual do literário, uma contribuição entre duas correntes críticas em benefício da correta decodificação do texto literário, para que a compreensão fique “ancorada no porto seguro do entendimento”. Ao reivindicar uma colaboração da Semiologia com a Hermenêutica, não quero (e, aqui, quero pedir licença para parodiar Eduardo Portella) repudiar o silêncio, que se encontra palpitante no interior da Obra Literária, e reverenciar a “loquacidade enganadora de um analismo que, em nome da objetividade, se mostra impermeável ao subjetivismo”. Ao contrário, proponho um labor crítico dialético, usando dos ensinamentos de ambas as correntes, para que esse silêncio seja rompido. Reivindico uma colaboração entre as duas correntes (afirmo que esta colaboração, que muitos dizem existir, não se efetua na prática, em nossos dias), para que este “silêncio” se ouça acima dos estudos esquemáticos, ou seja, estudos de origem estruturalista, e promova a compreensão dos sentidos corretos do texto literário.
* NEUZA MACHADO é doutora em Ciência da Literatura/Teoria Literária pela Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
[1]PORTELLA, Eduardo. Teoria da Comunicação Literária. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1970: 61-62.
[2]CORETH, Emerich. Questões Fundamentais de Hermenêutica. São Paulo: Ed. Da Universidade de São Paulo, 1973.
[3]PALMER, Richard E. Hermenêutica. Lisboa: Edições 70, 1986.
[4]RICOER, Paul. Interpretação e Ideologias. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977.
[5]CORETH (1977): 6
[6]RICOER (1977): 17
[7] PALMER (1986): cit.
[8] Idem: 19
[9] BAUDRILLARD, Jean. América. Rio de Janeiro: Rocco, 1986.
[10] PORTELLA (1981): 22
[11] Ibidem
[12] ECO, Umberto. Leitura do Texto Literário. Lisboa: Presença, 1983.
[13] Idem: 7
[14] Idem: 9
[15] Idem: 8
[16] Ibidem
[17] ECO, op. cit.: 9
[18] Idem: 11
[19] PORTELLA (1970), op. cit.: 22.
[20] RICOER (1977), op. cit.: 18
[21] RICOER (1970), op. Cit.: 19
[22] PORTELLA (1970), op. cit.: 22.
[23] Idem: 25.
Um comentário:
BELO ENSAIO, DOUTORA!
ROGEL SAMUEL
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