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quarta-feira, 8 de setembro de 2010

SOCIOLOGIA DO DISCURSO FICCIONAL

NEUZA MACHADO



SOCIOLOGIA DO DISCURSO FICCIONAL

NEUZA MACHADO


Neste ponto, utilizei as idéias de Lucien Goldmann sobre a sociologia do romance, articulando-as com a minha propedêutica a respeito do narrador em geral e do narrador roseano de A hora e vez de Augusto Matraga (Guimarães Rosa). De ora em diante um estudo decodificador do assunto irá se sobressair, porque, como diz o título do prefácio de Goldmann, os estudos ali inseridos são uma “Introdução aos problemas de uma sociologia do romance” não desenvolvida. O sociólogo da literatura afirma: “O conjunto (os três primeiros capítulos) é um resumo dos resultados de dois anos de pesquisa sobre a sociologia do romance (...)” (Lucien Goldmann). Em virtude desta afirmativa de Goldmann, fica-me difícil resumir o que já é, em si mesmo, um resumo. Assim cada idéia importa para o reconhecimento do assunto, e não é minha intenção deturpá-lo.

As hipóteses de Goldmann têm como base as análises teórico-marxistas de George Lukács, inseridas em seu A teoria do romance, e as de René Girard, encontradas em Mensonge romantique et verité romanesque. As hipóteses sociológicas de Goldmann partem da idéia de que existe, por um lado, uma homologia entre a estrutura romanesca clássica e a estrutura da troca (permutação) na economia liberal (capitalista) e, por outro lado, existem também certos paralelismos entre suas respectivas evoluções posteriores. Utilizando-me de outras palavras, há uma semelhança entre a estrutura do romance clássico e a estrutura da troca na economia liberal, porque existe a relação entre romance como gênero literário e a estrutura do meio social em que esta forma de narrativa se desenvolveu (a moderna sociedade individualista).

Direcionada pelas teses de Goldmann, construí meu pensamento central a respeito do narrador em geral e do narrador roseano de A hora e vez de Augusto Matraga.

Teoricamente, esta narrativa de Guimarães Rosa não se enquadra no que se concebe por romance ou conto. Minha formação de base semiológica (semiologia literária ― centrada na comunicação ― como parte integrante da História) permite-me aproximá-la dos conceitos de Goldmann, porque observo todas as variantes da ficção moderna (da Era Moderna) por uma mesma denominação, ou seja, simplesmente como narrativas ficcionais.

Goldmann teoriza a partir de Lukács e Girard. Reportando-me a Lukács, detenho-me em uma sua assertiva: “O romance é a epopéia de um mundo sem deuses”. O romance moderno se liga, de certa forma (e o autor nos prova tal ligação), à narrativa épica. Pelo postulado da Teoria Literária o romance moderno jamais será considerado como literatura épica, uma vez que foi e será escrito em prosa, mas Lukács tem razão, porque sempre se visualizará nos textos autenticamente ficcionais a inclusão de matéria épica (não me refiro à forma), incluindo também as matérias lírica e dramática. Em verdade o romance é um autêntico fenômeno da Era Moderna, um gênero criado a partir da narrativa em prosa transmutativa. Mas o raciocínio circular-transmutativo impede que se reneguem as contribuições do passado: não há forma literária nova que não tenha suas raízes nas formas que a precederam, e, segundo minhas próprias deduções, não há crítica literária nova que não se estruture a partir dos pensamentos de críticos precedentes.

Para Georg Lukács:

“Entre epopéia e romance — as duas objetivações da grande literatura épica — a diferença não se deve às intenções íntimas do escritor, mas aos dados histórico-filosóficos que se impõe à sua criação”.

“O romance é a epopéia de um tempo em que a totalidade extensiva da vida não é já dada de maneira imediata, de um tempo para o qual a imanência do sentido à vida se tornou problema, mas que, apesar de tudo, não cessou de aspirar à totalidade”.

Em Goldmann, o romance

“É a história de uma investigação degradada (segundo Lukács: demoníaca), pesquisa de valores autênticos num mundo também degradado, mas em nível diversamente adiantado e de modo diferente”.

Para Goldmann, o romancista moderno, que é de certa forma um cronista de seu tempo, apreende a problemática social que afeta o seu momento histórico. Cabe ao sociólogo separar as várias tonalidades desta realidade que, por sua vez, está degradada pela ótica do Artista literário (cúmplice involuntário, ou voluntário, de um mundo de aparências). O sociólogo se interioriza, investigando, até descobrir o núcleo problemático da obra, na busca de valores autênticos de um mundo onde esses mesmos valores estão também degradados, camuflados, vendo-se na superfície somente valores falsos. Desse modo, sempre será necessário uma investigação consciente para que se descubra a essência desses valores.

"O romance é um gênero épico caracterizado (...) pela ruptura insuperável entre o herói e o mundo" (Luckács).

Pela ótica dos semiólogos da literatura, o romance moderno não pertence ao gênero épico, adéqua-se ao ficcional; mas esta conceituação surgiu depois de Lukács, portanto, não me vejo impedida de o citar, alertando aos leitores desta minha propedêutica para que façam conscientemente uma revisão do assunto. Entretanto não desejo desmerecer os estudos de Lukács, pois possuo a convicção de que a crítica literária não fica estagnada em um determinado período da história do homem. Os conceitos estão e estarão fadados a modificações; o que hoje se ensina como certo, amanhã poderá ser contestado. Por esta via, tomo a liberdade de substituir a palavra gênero (épico), inserida na citação acima, pela palavra matéria (épica), de acordo com os preceitos semiológicos, ou mesmo substituindo-a pela palavra essência (épica), pelo ponto de vista da fenomenologia, se desenvolvo aqui um estudo interdisciplinar.

De qualquer forma, retomando do ponto de onde parei, depois desta minha digressão não pretendo discordar de Lukács, pois são os seus pensamentos (pioneiros) que me permitem dar continuidade aos pensamentos críticos atuais dos teóricos da literatura. Enfim, de acordo com Goldmann, encontra-se em Lukács uma análise da degradação do herói e da degradação do mundo. Para Luckács, são estas “duas degradações que devem engendrar, simultaneamente, uma oposição constitutiva e uma comunidade suficiente para permitir a existência de uma forma épica”.


MACHADO, Neuza. O Narrador Toma a Vez: Sobre A Hora e Vez de Augusto Matraga de Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: NMachado, 2006 – ISBN 85-904306-2-6

terça-feira, 7 de setembro de 2010

SEMIOLOGIA DO SERTÃO: REVELAÇÃO DO MUNDO FICCIONAL

NEUZA MACHADO


SEMIOLOGIA DO SERTÃO: REVELAÇÃO DO MUNDO FICCIONAL

NEUZA MACHADO


Para revelar o mundo ficcional, o Narrador de A Hora e Vez de Augusto Matraga utiliza-se de seu próprio imaginário-em-aberto; apropria-se de um discurso metafórico, conduz um particular raciocínio de referências sígnicas que possibilita movimentar um ato de narrar tenso e comovido, fazendo o leitor acompanhar (e compartilhar) as peripécias da narrativa com emoção e prazer. Por consequência, o leitor se percebe transportado para uma outra realidade, uma outra diferente realidade que só naquele momento se descortina e lhe traz verdades nunca antes imaginadas. Eis o processo mimético atuando (passado e presente se identificam). Nesse momento, a realidade ficcional é tão ou mais verdadeira do que a realidade histórica. O real mundo das aparências pode assim ser desmascarado por intermédio do processo literário. Nesse momento, o leitor da chamada Ficção-Arte (narrativa paradigmática) descobre o sentido de verdadeira realidade.

Em A hora e vez de Augusto Matraga, de Guimarães Rosa, observa-se esse processo. As narrativas roseanas mimeticamente atingem um plano universal de raras proporções, porque, incomuns e verticais, recriam os problemas do Mundo (não importando o momento histórico). O sertão roseano repete as leis do Mundo e as questiona, possibilitando ao leitor pós-século XX a capacidade de transformar-se e transformar a sua própria realidade. A realidade histórica da Era Moderna até o final do século XX pautou-se por um somatório de fatos degradantes, e, o cotidiano intensificado buscou camuflá-los. O homem daquele momento, submetido à lei da sobrevivência, recusou-se a olhar uma realidade difícil de se aceitar. Houve, por conseguinte, a necessidade do literário-ficcional desmitificador, para que ele pudesse abrir os olhos e desmascarar a insuportável realidade objetiva (e os leitores seguintes também).

Assim, tudo o que se observa hoje na narrativa roseana faz parte do plano histórico; tudo isto aconteceu e ainda acontece (e se detecta) nos sertões brasileiros e mesmo nas grandes cidades: o poder patriarcal da pequena classe dominante (e sua violência), a tentativa de subjugação aos menos favorecidos (a opulência em oposição à miséria).

Em A hora e vez de Augusto Matraga, narrativa ficcional de meados do século XX, há matéria mítica ainda em estado bruto: (naquele momento) o sertão mineiro visto como um pequeno espaço primitivo e original; há exploração de algumas frases rítmicas e a utilização de recursos sonoros; o plano sócio-substancial e o mítico-substancial encontram-se amalgamados ao histórico de meados do século XX, portanto, há uma fusão das dimensões do real e do mito, ou seja, há a matéria épica realizada sob a égide da narrativa ficcional.


(Atenção: matéria épica ≠ gênero épico /// gênero épico ≠ gênero ficcional).


MACHADO, Neuza. O Narrador Toma a Vez: Sobre A Hora e Vez de Augusto Matraga de Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: NMachado, 2006 – ISBN 85-904306-2-6

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

SEMIOLOGIA DO SERTÃO: UM DEMIURGO QUE GARANTE TUDO

NEUZA MACHADO


SEMIOLOGIA DO SERTÃO: UM DEMIURGO QUE GARANTE TUDO

NEUZA MACHADO


“Então, tudo estava mesmo muito mudado, e Nhô Augusto, de repente, pensou com a idéia muito fácil, e o corpo muito bom. Quis se assustar, mas se riu: — Deus está tirando o saco das minhas costas, mãe Quitéria! Agora eu sei que ele está se lembrando de mim...” (A Hora e Vez de Augusto Matraga)

Ao lado da diegésis com todas as suas noções referenciais (personagens, o posicionamento destes no espaço da narrativa, o enredar-se em acontecimentos esperados ou inesperados), há as imagens do texto: imagens imitativas e imagens conotativas. As imagens imitativas não se ligariam propriamente ao texto-objeto ― cópia da natureza ―, seriam uma representação da natureza por meio de uma imaginação rica e particular. Essas imagens imitativas, apreendidas na narrativa roseana, possuem um poder todo especial: colocam-se como representação — função exclusiva do texto como cópia da natureza —, trazendo em si o poder de invenção. As imagens conotativas formam a realidade estética propriamente dita, espaço opaco, no qual se vislumbram todos os questionamentos burgueses, o espanto existencial do narrador, sua atitude paradoxal transferindo para o personagem Nhô Augusto sua face problemática, porque, narrando as transformações de vida do personagem principal, revela suas próprias transformações existenciais. O alter ego do Artista Ficcional retoma o passado e recria o personagem, assim revela suas próprias transformações na vida e na arte. O alter ego do Artista Ficcional retoma o passado e recria o personagem à sua imagem e semelhança. Por intermédio do personagem recompõe a sua face sertaneja, o que ele possivelmente teria sido se permanecesse no sertão de Minas Gerais. O personagem representa as suas raízes sertanejas, é um fragmento de seu íntimo existencial, ou melhor, o painel de vários fragmentos de seu ser. O personagem representa um trecho de uma história pessoal que não foi significado racionalmente, mas que está devidamente registrado no universo das probabilidades.

Evidentemente, no início da narrativa há imposições ideológicas — sociais e religiosas — direcionando o ato de narrar, mas, graças aos questionamentos burgueses, o narrador roseano modifica sua forma de criar o ficcional. Revigorado por um novíssimo juízo (Bachelard: juízo de descoberta), poetiza as recordações do sertão, inventa uma nova face para Nhô Augusto quando este procura acertar o caminho do retorno ao arraial do Murici, “caminho do que houve e do que não houve”, como o Artista diria mais tarde em Grande Sertão: Veredas por intermédio de Riobaldo. O ato de narrar necessita objetividade, e a realidade estética se estrutura a partir da ambiguidade e do subjetivismo. O narrador roseano, descrevendo o retorno de Nhô Augusto, deixa-se enredar pelo fluxo da memória. Não há muita coerência na descrição do sertão nas sequências finais porque o narrador vivenciou o sertão. E por ser nato do sertão, suas lembranças estão replenas de sentimentos desencontrados. “Tudo miúdo, recruzado”, como diria mais tarde o já citado Riobaldo, outro duplo do Artista de origem sertaneja. As lembranças do puro passado vêm chegando aos arrancos, fazendo-o caminhar em ziguezague, como caminha Nhô Augusto, levado pelo instinto de direção do burrico. Esse caminhar desencontrado distingue-se pelo registro das impressões do sertão, impressões marcantes, descrições miúdas da natureza; sertão metafísico captado no entrecruzar das recordações. O dito sertão roseano é um mundo repleto de experiências, mas, também, se vale dos amplos domínios da realidade poético-ficcional.

"A narrativa estrutura uma proposição de realidade, no entanto não cria a realidade objetiva. A criação da proposição de realidade da existencialidade humana é privilégio da dinâmica do real (natureza, Deus), por isso, a narrativa se contenta em estruturar, por um processo mimético, uma proposição de realidade ficcional” (Anazildo Vasconcelos).

A narrativa estrutura “uma proposição de realidade”, mas "não cria a realidade objetiva". Já se encontra convencionado que toda narrativa quer-se verdadeira, almeja refletir o mundo em todas as gradações possíveis, e, no entanto, o mundo representado será sempre ficcional. Neste paradoxo instaura-se a grandeza do literário. A narrativa ficcional-arte, ao passar pelo processo de criação, passa também por um processo seletivo, ou seja, o narrador transmite somente as diretrizes narrativas do plenipotenciário do ato de narrar, demiurgo de um mundo feito à sua imagem e semelhança; mundo que ultrapassa as barreiras da História, alcançando as dimensões do Absoluto.

Em uma notável ENTREVISTA, diz Guimarães Rosa ao crítico alemão Günter Lorenz:

“Escrevendo, descubro sempre um novo pedaço de infinito. Vivo no infinito; o momento não conta”.

“Sou escritor e penso em eternidades”.

“Como já lhe revelei, estou buscando o impossível, o infinito”.

Para revelar o mundo ficcional, o Narrador roseano (meados do século XX) utiliza-se de seu próprio imaginário; apropria-se de um discurso metafórico, de referências sígnicas, conduzindo um discurso tenso e comovido, fazendo o leitor acompanhar (e compartilhar) as peripécias da narrativa com emoção e prazer. Este se sente transportado para uma outra realidade, que só naquele momento se descortina e lhe traz verdades nunca antes imaginadas. Eis o processo mimético atuando. Nesse momento, a realidade ficcional é tão ou mais verdadeira do que a realidade histórica. O mundo das aparências é desmascarado por meio do processo literário. Nesse momento, o leitor descobre o verdadeiro real da realidade. Agora não se percebe mais a emoção do leitor atuando, é a razão do leitor que se evidencia; é o intelecto do leitor que apreende a(s) mensagem(s) do Artista. Adorno afirma que a Arte, além de reproduzir a realidade, dá forma a um outro tipo de realidade. Por intermédio desse processo, mimético, compreende-se a proposta de realidade ficcional.


MACHADO, Neuza. O Narrador Toma a Vez: Sobre A Hora e Vez de Augusto Matraga de Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: NMachado, 2006 – ISBN 85-904306-2-6

domingo, 5 de setembro de 2010

SEMIOLOGIA DO SERTÃO: O PLANO SUBJETIVO

NEUZA MACHADO


SEMIOLOGIA DO SERTÃO: O PLANO SUBJETIVO

NEUZA MACHADO


A Hora e Vez de Augusto Matraga de Guimarães Rosa, enquanto texto demonstrativo de arte ficcional, desenvolve criativamente o plano subjetivo: há um narrador-personagem que vivencia profundamente todos os acontecimentos. Este ser assinalado não se encontra distanciado de seu narrar. Se no início da narrativa se observa este distanciamento, quase ao estilo épico, apreende-se, posteriormente, a sua transmutação apoderando-se da matéria mítica, deixando transparecer seus questionamentos, sua fragmentação interior, seu ponto de vista em relação ao sertão. Há características líricas, poéticas, difíceis de serem desapartadas do texto ficcional. Portanto, além do narrar sintagmático, linear, em prosa, há, em A hora e vez de Augusto Matraga, o ficcional paradigmático, intermediando, o plano discursivo (o texto propriamente dito), nos quais se detectam características do discurso poético, características líricas: universos fragmentados, subjetivos, singulares, em que o narrador se afasta, por diversas vezes, da diegésis, para enredar-se em seus próprios devaneios e circunlóquios (alheio à matéria enfocada, observando o sertão pelo ponto de vista mágico do Poeta). Todas estas características formalizam um sertão poético, em que as recordações suplantam a objetividade da memória.

Nhô Augusto deixa de ter importância no esquema narrativo, torna-se apenas um pretexto ficcional para que o narrador recupere suas lembranças e possa trazer para seu presente uma realidade já modificada pelo crivo dos sentimentos interiorizados, pessoais. A história do personagem, como representante da ideologia dominante, perde seu narrador memorialista, porque o verdadeiro narrador é um cidadão burguês capitalista (e, aqui, é importante ressaltar, não há nenhum desmerecimento para com o escritor), e não há como modificar sua história pessoal e a História do Mundo. Não é possível valer-se agora de um discurso objetivo, linear, para fazer-se entender; há a necessidade de se valer de sua criatividade ficcional especialíssima, e esta não faz parte do universo diegético. Nesse momento, o narrador se transforma, mimetiza o passado, visualiza o sertão através da recordação (característica do lírico), através de um estado anímico que, segundo Staiger, faz parte de um remanescente da existência paradisíaca. A linguagem sertaneja (mineira) possui musicalidade, entoação, criatividade, que escapam às diretrizes linguísticas usuais. E o Artista explora com maestria estas características. Não se presta atenção ao conteúdo da frase, os volteios melódicos (mentais) do narrador são mais instigantes. Por isto, sua narrativa, em princípio aparentemente tão simples, passa a apresentar um alto grau de complexidade: há a lógica da ficção, isto é certo, mas, dentro de um singular ilogismo poético. O discurso poético associado ao discurso ficcional é apreendido nas últimas sequências, e permanece até a sequência final como um perfume sutil. O Artista, no final apoteótico, é poderosamente o dono de seu narrar. É aquele cantor lírico de que nos fala Staiger, travestido de narrador exemplar, perdido na contemplação de seu inesquecível passado ― e seu passado é o sertão. Segue o curso ondulatório de seus pensamentos cantando/narrando despreocupadamente — assim como Nhô Augusto segue o instinto de direção do jegue —, perfeitamente integrado no todo de seu cantar/narrar. A atitude do personagem-narrador, como conselheiro preso às imposições ideológicas, perdeu sua razão de ser. Não lhe interessa mais ser entendido, ou não; narra as aventuras de Nhô Augusto para si mesmo; recria o sertão, que está vivo em seu imaginário-em-aberto, traz novamente ao coração as recordações de um passado no qual que se misturam verdades e fantasias.

“Até que, pouco a pouco, devagarinho, imperceptível, alguma cousa pegou a querer voltar para ele, a crescer-lhe do fundo para fora, sorrateira como a chegada do tempo das águas, que vinha paralela: com o calor dos dias aumentando, e os dias cada vez maiores, e o joão-de-barro construindo casa nova, e as sementinhas, que hibernavam na poeira, esperando na poeira, em misteriosas incubações. Nhô Augusto agora tinha muita fome e muito sono. O trabalho entusiasmava e era leve. Não tinha precisão de enxotar as tristezas. Não pensava nada. E as mariposas e os cupins-de-asas vinham voar ao redor da lamparina... Círculo rodeando a lua cheia, sem se encostar... E começaram os cantos. Primeiro, os sapos: — “Sapo na seca coaxando, chuva beirando”, mãe Quitéria!... — Apareceu uma jia na horta, e pererecas dentro de casa, pelas paredes... E os escorpiões e as minhocas pulavam no terreiro, perseguidos pela correição de lava-pés, em préstitos atarefados e compridos... No céu sul, houve nuvens maiores, mais escuras. Aí, o peixe-frito pegou a cantar de noite. A casca de lua, de bico para baixo, “despejando”... Um vento frio, no fim do calor do dia... Na orilha do atoleiro, a saracura fêmea gritou, pedindo três potes, três potes, três potes para apanhar água... Choveu.

Então, tudo estava mesmo muito mudado, e Nhô Augusto, de repente, pensou com a idéia muito fácil, e o corpo muito bom. Quis se assustar, mas se riu:

— Deus está tirando o saco das minhas costas, mãe Quitéria! Agora eu sei que ele está se lembrando de mim...” (A Hora e Vez de Augusto Matraga).


MACHADO, Neuza. O Narrador Toma a Vez: Sobre A Hora e Vez de Augusto Matraga de Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: NMachado, 2006 – ISBN 85-904306-2-6

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

OS PLANOS DA FICÇÃO

NEUZA MACHADO


OS PLANOS DA FICÇÃO

NEUZA MACHADO


Analisando a estrutura da narrativa de A hora e vez de Augusto Matraga, de Guimarães Rosa, observei que esta se apoia em dois planos: um plano objetivo, sócio-substancial, em que se apreende o espaço do sertão como um reduto de conflitos exteriores (disputas, peregrinações); e um plano subjetivo, mítico-substancial, no qual encontramos o narrador às voltas com seu espírito místico, questionador, transferindo para o personagem central (representante de um mundo imaculado) seus próprios conflitos existenciais, representante que é da burguesia brasileira, ainda que sertaneja.

Nesse plano há a retomada do mítico-pagão (primeira sequência da narrativa), há a preocupação com Deus, a consciência de sua existência, mas, também, há a certeza de que Este se encontra distanciado. “E ele chama por Deus, na hora da dor mais forte, e Deus não atende, nem para um fôlego, assim num desamparo como eu nunca vi” (palavras de Mãe Quitéria, a preta que o salvou). Há também a preocupação em confirmar a existência de um outro deus, este sim, muito próximo, "um deus solerte, deus que garante tudo", o qual modificará definitivamente a estrutura ficcional, posicionando o narrador como personagem atuante.

“Narrativa é uma estrutura plural e objetiva, criada por uma outra instância literária, o narrador, que elabora uma proposição de realidade. A narrativa estrutura uma proposição de realidade pela referencialidade sígnica” (SILVA, Anazildo Vasconcelos).

À narrativa (diegésis) pura e simples não interessa o subjetivismo. Para que seja elaborada linearmente, há a necessidade de um narrador, e este não deseja mais nada senão um ouvinte atento, que compartilhe de seu prazer em narrar, ouvindo também com prazer. O narrador roseano de A Hora e Vez de Augusto Matraga (tradicional, experiente) propõe-se a relatar fatos, apenas fatos: não há conotações e sim denotações (quando muito, conotações em nível de linguagem cotidiana).

Se me detenho a observar a narrativa aqui assinalada (A Hora e Vez de Augusto Matraga) apenas pela perspectiva objetiva (análise pura impedindo uma interação reflexiva com as camadas ocultas do texto narrativo em prosa), verei que o Ficcionista soube apreender todas as questões e situações que envolvem o sertanejo e seu espaço ideológico. É fácil recontar as peripécias de Nhô Augusto; é fácil traçar uma linha horizontal, sintagmática, e recuperar a sua trajetória existencial, desde a sua atuação como refletor do Poder patriarcal, a sua queda (refletindo os desmandos deste mesmo Poder) e a sua recuperação (refletindo os ditames do Poder carismático), até à subjugação aos desígnios do narrador (aliado daquele deus que garante tudo), que o transforma em personagem ficcional.


MACHADO, Neuza. O Narrador Toma a Vez: Sobre A Hora e Vez de Augusto Matraga de Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: NMachado, 2006 – ISBN 85-904306-2-6

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

A FICÇÃO DO SÉCULO XX

NEUZA MACHADO



A FICÇÃO DO SÉCULO XX

NEUZA MACHADO


No plano da realidade histórica do anterior século XX, a sociedade moderna (já em momento de transição para a pós-modernidade) se viu às voltas com um desenvolvimento tecnológico que ultrapassava a sua própria capacidade de sustentação. (Esta situação ainda permanece neste início de século XXI). O Homem foi tragado pela mola propulsora do progresso, por não estar devidamente preparado para tal evento. Instaurou-se, portanto, o conflito, a busca por soluções pacíficas, o medo de catástrofes nucleares. Por este ângulo, nas narrativas do século XX apreende-se uma dimensão subjetiva do Homem — seus medos e temores, experiências de vida — e uma dimensão objetiva do Mundo — suas ideologias, seus códigos.

Na dimensão da chamada literatura paradigmática, o Artista se apropria de um determinado fato da realidade histórica (ou fatos), transporta-o para o texto por intermédio de uma focalização pessoal ou grupal ou até mesmo universal, dá-lhe a forma literária adequada e, segundo suas próprias características, eleva a sua criação a um patamar em que esta mesma realidade se transforma em um outro tipo de realidade, que chamamos de ficcional (ficcão-arte ou ficção-vertical). Isto se processa por meio do discurso metafórico (refletor de uma realidade transformada) em conflito com o discurso metonímico como refletor do mundo concreto (mundo dos significados ou realidade linear ou realidade sintagmática).

Se o Artista apenas transcrevesse suas impressões da realidade, não estaria desenvolvendo um texto-obra (texto-arte), apenas copiaria a realidade; a mimésis literária conforme a entendemos hoje não seria realizada. Sobressaiu-se, em um determinado momento do percurso ficcional do século XX, a necessidade de o processo literário (criação) converter-se em discurso, em nível de elaboração artístico/literária, para que o personagem se relacionasse com seu espaço e, assim, produzisse o ficcional.

Guimarães Rosa, em A Hora e Vez de Augusto Matraga, desenvolve todo esse processo criador ao converter em discurso ficcional a vivência do homem do sertão. A mimésis, em suas propostas ficcionais, é realizada dentro do texto enquanto camada visível — os sinais tipográficos formadores de palavras e expressões idiomáticas que transgridem as imposições dos códigos usuais. O texto ficcional roseano é característico da linguagem original (linguagem primitiva, linguagem primeira), é a língua como elemento metafísico, é a “dualidade das palavras, de acordo com as próprias palavras de Rosa ditas em uma entrevista a Günter Lorenz em 1965.

A narrativa ficcional A Hora e Vez de Augusto Matraga, de Guimarães Rosa, propõe-se a estruturar a realidade do sertão mineiro do século XX a partir de personagens típicos, refletindo, em seus contornos, a figura do rudimentar homem sertanejo daquele momento histórico e a sua maneira de se apresentar dentro de seu espaço social, espaço social esse já em fase de transição para os apelos capitalistas da modernidade.


MACHADO, Neuza. O Narrador Toma a Vez: Sobre A Hora e Vez de Augusto Matraga de Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: NMachado, 2006 – ISBN 85-904306-2-6

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

SEMIOLOGIA DO SERTÃO

NEUZA MACHADO


SEMIOLOGIA DO SERTÃO

NEUZA MACHADO


O discurso narrativo - ficcional -
de A hora e vez de Augusto Matraga estrutura-se como “instância fundadora do processo literário de criação
” (Anazildo Vasconcelos da Silva) a partir das vastas estepes do sertão mineiro, sobressaindo-se o modo de vida do sertanejo, seu linguajar aparentemente deturpado, os combates entre jagunços, as disputas políticas, enfim, todo um pequeno espaço sócio-substancial, miniatural, mas que reflete, em nível de interpretação, o próprio Mundo. Posso afirmar que a narrativa de Guimarães Rosa só poderia mesmo se estruturar em seu momento histórico, isto é, refletir toda a problemática existencial que envolveu o homem do século XX, fragmentado, levado pela aceleração dos acontecimentos, sujeito às imposições de poder e de dominação.

Evidentemente, só posso afirmar meus pensamentos sob o aval da Semiologia de Segunda Geração, entretanto teria de ressaltar o paradoxo da narrativa roseana: o mundo recriado possui todas as características apontadas acima, mas possui, também, matéria mítica ainda em fase embrionária. O sertão mineiro apreendido pelo Ficcionista Guimarães Rosa é ainda aquele espaço primitivo, no qual se mesclam as Idades Antiga e Medieval. Este sertão é uma bolha especialíssima flutuando no Caos da modernidade, ainda conservando a pureza de um mundo original. O complexo (o insólito) é o narrador refletir a pureza do homem primitivo em conflito com o mundo moderno. O diabo não existe”, reflete Riobaldo em Grande Sertão: Veredas. O “diabo” assinalado na narrativa de Guimarães Rosa é este desejo do homem atual de recompor sua identidade fragmentada. O “diabo” é esta busca incessante de valores de uso em um mundo onde esses valores já não existem. No entanto no sertão mineiro esses valores ainda existem como herança de antigas normas de vida comunitária. O narrador roseano de A Hora e Vez de Augusto Matraga
ultrapassa seus limites: enquanto criatura romanesca reflete seu criador.


MACHADO, Neuza. O Narrador Toma a Vez: Sobre A Hora e Vez de Augusto Matraga
de Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: NMachado, 2006 – ISBN 85-904306-2-6