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quinta-feira, 2 de setembro de 2010

A FICÇÃO DO SÉCULO XX

NEUZA MACHADO



A FICÇÃO DO SÉCULO XX

NEUZA MACHADO


No plano da realidade histórica do anterior século XX, a sociedade moderna (já em momento de transição para a pós-modernidade) se viu às voltas com um desenvolvimento tecnológico que ultrapassava a sua própria capacidade de sustentação. (Esta situação ainda permanece neste início de século XXI). O Homem foi tragado pela mola propulsora do progresso, por não estar devidamente preparado para tal evento. Instaurou-se, portanto, o conflito, a busca por soluções pacíficas, o medo de catástrofes nucleares. Por este ângulo, nas narrativas do século XX apreende-se uma dimensão subjetiva do Homem — seus medos e temores, experiências de vida — e uma dimensão objetiva do Mundo — suas ideologias, seus códigos.

Na dimensão da chamada literatura paradigmática, o Artista se apropria de um determinado fato da realidade histórica (ou fatos), transporta-o para o texto por intermédio de uma focalização pessoal ou grupal ou até mesmo universal, dá-lhe a forma literária adequada e, segundo suas próprias características, eleva a sua criação a um patamar em que esta mesma realidade se transforma em um outro tipo de realidade, que chamamos de ficcional (ficcão-arte ou ficção-vertical). Isto se processa por meio do discurso metafórico (refletor de uma realidade transformada) em conflito com o discurso metonímico como refletor do mundo concreto (mundo dos significados ou realidade linear ou realidade sintagmática).

Se o Artista apenas transcrevesse suas impressões da realidade, não estaria desenvolvendo um texto-obra (texto-arte), apenas copiaria a realidade; a mimésis literária conforme a entendemos hoje não seria realizada. Sobressaiu-se, em um determinado momento do percurso ficcional do século XX, a necessidade de o processo literário (criação) converter-se em discurso, em nível de elaboração artístico/literária, para que o personagem se relacionasse com seu espaço e, assim, produzisse o ficcional.

Guimarães Rosa, em A Hora e Vez de Augusto Matraga, desenvolve todo esse processo criador ao converter em discurso ficcional a vivência do homem do sertão. A mimésis, em suas propostas ficcionais, é realizada dentro do texto enquanto camada visível — os sinais tipográficos formadores de palavras e expressões idiomáticas que transgridem as imposições dos códigos usuais. O texto ficcional roseano é característico da linguagem original (linguagem primitiva, linguagem primeira), é a língua como elemento metafísico, é a “dualidade das palavras, de acordo com as próprias palavras de Rosa ditas em uma entrevista a Günter Lorenz em 1965.

A narrativa ficcional A Hora e Vez de Augusto Matraga, de Guimarães Rosa, propõe-se a estruturar a realidade do sertão mineiro do século XX a partir de personagens típicos, refletindo, em seus contornos, a figura do rudimentar homem sertanejo daquele momento histórico e a sua maneira de se apresentar dentro de seu espaço social, espaço social esse já em fase de transição para os apelos capitalistas da modernidade.


MACHADO, Neuza. O Narrador Toma a Vez: Sobre A Hora e Vez de Augusto Matraga de Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: NMachado, 2006 – ISBN 85-904306-2-6

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