Quer se comunicar com a gente? Entre em contato pelo e-mail neumac@oi.com.br. E aproveite para visitar nossos outros blogs, "Neuza Machado 1", "Neuza Machado 2" e "Neuza Machado - Letras".

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

A ESTÉTICA DO PARADOXO

SOBRE ALGUNS SERMÕES (HISTÓRICOS) DE PADRE ANTÔNIO VIEIRA

NEUZA MACHADO

A QUESTÃO TEÓRICA DO MANEIRISMO E DO BARROCO

Penso na questão teórica do Maneirismo e do Barroco como algo que requer muita meditação e que dará margem para muitas futuras discussões, uma vez que o assunto vem motivando, ao longo dos anos, desencontradas teses, hipóteses teórico-históricas ainda não concretamente definidas.

Consciente destas desencontradas opiniões, ou especulações sobre esta questão ainda polêmica, desejo, inicialmente, traçar com objetividade as metas de meu pensamento teórico-crítico sobre a oratória de Padre Antônio Vieira. Assim, a questão que se desenvolve, até os dias de hoje, sobre essas duas correntes estéticas (o Maneirismo e o Barroco), não apresentará, nas primeiras páginas, um caráter inovador, apenas refletirá uma síntese do que busquei e registrei ao longo de minhas leituras sobre a História da Literatura Portuguesa (Cf: SARAIVA & LÓPES, História da Literatura Portuguesa). Reservarei um ponto de vista um pouco mais pessoal (mas, com certeza, não aleatório) para a segunda parte desta proposição, realçando as crenças de Vieira sobre o Encoberto e sobre o Mito do Quinto Império Judaico-Cristão, porque, graças ao reconhecimento do texto, fundamentado na hermenêutica atual, acrescido de conhecimentos sociológicos, históricos e religiosos, terei como interagir com um assunto controverso, sob a proteção do raciocínio interpretativo.

A hermenêutica se adapta aos meus propósitos (para explicar, exclusivamente, a obra de Padre Antônio Vieira), por ter sua origem nos primórdios da história religiosa do homem ocidental. Até há pouco tempo, falou-se muito desta linha de pesquisa nos meios acadêmicos. Atualmente, há a imposição da interdisciplinaridade (a interligação de todas as tendências críticas), ressaltando-se mais a Estética da Recepção (diálogo com o texto). A chamada hermenêutica profana (interpretação de textos literários), mesmo não sendo, no momento, o estudo soberano nos cursos de pós-graduação em Ciência da Literatura, não há, nos cursos de graduação em Letras, um conhecimento correto sobre seus questionamentos de origem, sua ligação com os textos sagrados, as divergências que a marcaram no decorrer de sua história, e, sobretudo, não há um conhecimento sobre a sua posterior incursão nos domínios da Filosofia e da Literatura.

Assim, retomando a história da hermenêutica de base religiosa, o que a preocupou, desde o seu advento, foi o problema da correta interpretação dos Textos Sagrados. É bom lembrar que, no que se refere às interpretações de Vieira, inseridas em seus famosos sermões, uma retomada teórica, a partir do ponto de vista da Hermenêutica, torna-se indispensável. Desejo realçar que os meus conhecimentos sobre o assunto se baseiam em dados oferecidos por Emerich Coreth, no livro Questões fundamentais de Hermenêutica. A proposta inicial de seus estudos [estudos de Emerich Coreth] foi reconhecer a história do problema teológico e a sua ligação com as questões atuais da Hermenêutica da Literatura, em outras palavras, a questão do próprio conhecimento ao se contemplar as obras literárias. Os estudos hermenêuticos, aqui realçados sob a orientação de Coreth, irão proporcionar-me uma abertura que propiciará a defesa de meu objetivo central, o qual opta pelo desenvolvimento de uma reflexão pessoal sobre alguns sermões de Vieira. Esta reflexão, para se livrar dos afamados achismos críticos, se colocará sob a proteção de meus próprios conhecimentos de Ciência da Literatura, Literatura propriamente dita, História e Religião.

A Hermenêutica, como é conhecida hoje, é uma ciência que questiona a correta interpretação dos textos literários. No início da história religiosa da Igreja Ocidental, a questão da interpretação estava restrita aos escribas, intérpretes das mensagens contidas no Antigo Testamento. Emerich Coreth, ao se referir aos escribas, situa-os como os primeiros exegetas que procuraram questionar a importância de uma correta interpretação dos Textos Sagrados. Observe-se que esses textos anunciavam o nascimento do Salvador, e os mesmos eram interpretados por sacerdotes rudes, portanto, interpretações sujeitas a falhas e ambigüidades. Com a instituição do Novo Testamento, as ambigüidades se desfazem, pois quem as esclarece não é outro senão o próprio Filho de Deus, o Salvador esperado. Segundo Coreth, o Novo Testamento se coloca, desde as primeiras páginas, como o único intérprete autêntico das Mensagens Sagradas, e este privilégio se manifesta por intermédio do aval do próprio Jesus Cristo, ao procurar elucidar, para as multidões que o acompanhavam, todas as ambigüidades anteriormente questionadas, algumas que foram incorretamente interpretadas, de acordo com o que nos passa o Novo Testamento.

Baseando-me nas informações de Coreth, foi-me possível compreender porque Vieira, ao desenvolver os temas de seus sermões, sempre procurou interpretar versículos e salmos do Antigo Testamento, referindo-se pouco aos versículos do Novo Testamento. Os textos do Antigo Testamento proporcionavam ao sermonista uma maior capacidade para desenvolver questões paradoxais, sem que, com isto, o sermão se resvalasse para o campo das impossibilidades. Resguardado pela própria ambigüidade dos textos do Antigo Testamento, Vieira pode desenvolver seus argumentos religiosos e sociais, paradoxais, misturando análise etimológica com análise gramatical, desenvolvendo pensamentos analógicos e argumentativos, além de se utilizar, como veremos nos sermões por mim revisitados, de arraigadas superstições, que o acompanharam até a morte. O sermonista, para fundamentar a sua proposta de evangelização, buscava nos textos do Antigo Testamento, principalmente, a matéria que o ajudaria a compor um discurso que estava mais preocupado com os problemas sociais da Corte portuguesa e da Colônia, do que propriamente com os ensinamentos divinos. Desenvolvendo duas propostas de argumentação [uma religiosa e outra profana], misturando conceitos, transmitindo idéias que chegavam ao plano da imaginação fantasiosa, Vieira deu vida literária a sermões que, distantes da técnica ensaística da oratória, enquanto Gênero, assumiram com grandeza a expressão da Literatura-Arte.

Paralelamente aos postulados hermenêuticos, submetida a postulados sociológicos, procurarei ainda identificar o orador sacro Padre Antônio Vieira como um ser social, inserido numa determinada fase da história social de Portugal e do Mundo, identificado com os valores sócio-religiosos de seu momento, mas atuando também como intermediário entre o Histórico e o Divino. Pelo ponto de vista da Sociologia do Texto Literário, os sermões de Vieira impõem-me repensar a realidade histórica de Portugal até o final do século XVII. Repensando os problemas sociais de Portugal, daquela época, por meio dos textos de Vieira, foi-me possível refletir sobre as diretrizes religiosas que pautaram a vida do Homem do período barroco.

Assim, reunirei, aqui, vários pontos de vista teórico-críticos, pela ótica da interdisciplinaridade: Hermenêutica, Sociologia, História e Religião. Entretanto, devo informar, também, o meu conhecimento de cada um deles, em separado. Todos esses direcionamentos críticos estarão aqui a serviço da decodificação de alguns sermões de Padre Antônio Vieira. Firmarei meus pensamentos, notadamente, no Sermão de exéquias do Rei D. João IV e em alguns outros sermões centralizados na família real. Esses sermões estariam evidentemente catalogados como Gênero Ensaístico – literatura técnica, ensaio, oratória – se não fosse o alto teor de ambigüidades detectado nos textos. Graças a essas ambigüidades, tais sermões jamais poderão ser classificados como paraliterários. Há neles, indiscutivelmente, a marca genial de um escritor da estética barroca – estética do paradoxo –, cujos textos já foram classificados como Literatura-Arte.



A QUESTÃO TEÓRICA DO MANEIRISMO E DO BARROCO

No final do século XV, observou-se uma nova formação existencial para o homem europeu. Naquele momento, o homem procurava alargar seus horizontes, rompendo com os valores comunitários, já ultrapassados, da Idade Média. Era o início das grandes navegações que iriam marcar o século seguinte e mudar a História do Mundo. No decorrer do século XVI, os ideais comunitários, religiosos e hierárquicos do período medieval já começavam a ser questionados, e iniciou-se a caminhada solitária do homem em direção a um futuro incerto. Os antigos valores de uso – a troca de um objeto por outro, por exemplo – cederam lugar à mediação do dinheiro, à busca de novas invenções [que iriam permitir o progresso], ao desenvolvimento de conhecimentos técnicos, à patenteação de máquinas industriais [que afastariam, posteriormente, o homem do campo, levando-o em direção à cidade]. Era o momento do capitalismo mercantil, dos ricos empresários capitalistas de origem judaica; era o momento dos valores de troca, valores degradados, mediatizados pelo dinheiro, que fariam dos componentes da classe menos favorecida socialmente míseros assalariados, submetidos às imposições das leis de um novo mundo em aceleradas transformações.

Quanto à Literatura, o século XVI foi o momento da retomada da cultura greco-latina e o abandono das concepções religiosas que predominaram na Idade Média. A Literatura comprazia-se em destacar o lado humano da existência, buscando nos modelos antigos as diretrizes da criação literária. O século XVI foi o momento de Camões e de sua epopéia nacional, na qual, ao evocar as grandezas de Portugal, o Poeta instaurou a idéia de individualismo – povo privilegiado – que marcaria Portugal nos séculos seguintes.

O final do século XVII marcou o momento do Humanismo angustiado, gerando tensão entre duas forças que se opunham e, ao mesmo tempo, se atraiam, fazendo da estética literária, daquele período principalmente, uma estética que se submetia aos valores da vida material [herança renascentista] e, ao mesmo tempo, aos valores da religião, herdados das tradições monásticas da Idade Média [valores estes jamais rejeitados pelo povo português, mesmo antes, quando os valores culturais do mundo ocidental estavam ligados à antiga cultura pagã].

Nas décadas finais do século XVI, aconteceram os graves problemas que marcaram a História de Portugal: o desaparecimento de D. Sebastião (1578) e a submissão da Coroa Portuguesa aos reis espanhóis. Era o momento da Contra-Reforma, tentando restaurar os estragos reformistas de Lutero, procurando um novo equilíbrio para o desequilíbrio religioso gerado pelo Cisma. Era o momento da desesperança e do desengano; do homem em face de uma confusão existencial: o amor aos prazeres mundanos e o medo do castigo de Deus. Era o momento do Maneirismo, estética que registraria a fugacidade da vida, a precariedade dos valores humanos, a idéia de inevitabilidade da morte, da tensão entre a entrega aos prazeres da vida (visão pagã) e a entrega aos prazeres da alma (visão religiosa). Era o momento da estética ligada a elementos tardo-góticos, antitética, refinada e aristocrática: estética da hesitação e da dúvida.

Mas, paralelamente à estética maneirista, surgiu um novo ideal estético: o Barroco. Não ouso destacar um momento preciso para o início do Barroco, uma vez que, historicamente, as duas estéticas se confundem; apenas existe uma tendência em pensar que o Maneirismo tivesse surgido um pouco antes do Barroco. Ao contrário das aristocráticas dúvidas maneiristas, a estética barroca privilegiou a camada popular, comunicando-se facilmente, apesar da concentração de algumas características da estética maneirista [tais como a idéia de inevitabilidade da morte, entrega aos prazeres da vida material, em contraponto com a fugacidade da vida, e outras, e que, na verdade, não eram características exclusivamente estéticas, mas, características também de uma época conturbada, angustiada, submetida a uma dolorosa tensão entre os valores do mundo e os valores religiosos]. Assim, por este ângulo, o Barroco foi também uma estética de ruptura e tensão, ressaltando o aspecto fugaz da vida. A diferença marcante é que, ao contrário do Maneirismo, o Barroco impressionava [e ainda impressiona] todos os sentidos do ouvinte ou leitor, porque provocava um impacto auditivo, sedutor, impedindo-o que parasse para raciocinar, ou apontar as possíveis falhas, ou mesmo constatar os acertos.

O Barroco se desenvolveu em torno dos ideais místicos da Contra-Reforma, não obstante o maneirismo estar mais próximo dela historicamente. Segundo Miguel de Unamuno, o Barroco foi um movimento pendular entre o espírito e a carne, sendo que a literatura calcada nos ideais do espírito destacou-se mais, já que estava relacionada ao movimento jesuítico da expansão da fé. Enquanto o Maneirismo se posicionava como a estética que privilegiava a antítese, o Barroco colocou-se como a estética do paradoxo, do espectaculoso, do redundante. Foi principalmente a estética que propiciou o surgimento de uma das figuras mais notáveis, no âmbito da Literatura Portuguesa e Brasileira: Padre Antônio Vieira.

É sobre esse gênio da oratória barroca que falarei daqui para frente, acentuando que foi instigante, durante o período de pesquisa, penetrar nos meandros de sua mente argumentadora e geométrica, acompanhar o movimento de perguntas e respostas, habilmente interligadas e desenvolvidas, obrigando-me a acompanhar a sua oratória com o sentimento de respeito e admiração [além do meu ponto de vista teórico]. Vieira impôs-me [ficcionalmente] acreditar em suas crenças mais irracionais e, ao fim destas minhas reflexões, vislumbrarei meu próprio sentimento de perda, porque suas predições não se realizaram.



A PALAVRA SAGRADA E SEU MISTÉRIO

No sermão das exéquias do Rei D. João IV, Vieira dá início ao seu discurso, utilizando-se de dois versículos, retirados do Salmo 89(88), considerados pelos exegetas um dos mais belos hinos ao Criador. O Salmo relembra a aliança entre Deus e o Rei Davi, aliança na qual Deus prometia permanente proteção aos descendentes do Rei.

Fiz uma aliança com meu eleito,
Eu jurei ao meu servo Davi:
Estabeleci a tua descendência para sempre,
De geração em geração construo um trono para ti.
(Salmo 89(88), 4-5)

Nos versículos seguintes, o Poeta bíblico Etã, o ezraíta, desenvolve um hino de louvor ao Criador (vv. 6-19), introduzindo logo a seguir um oráculo messiânico (vv. 20-38), contrapondo-o à evocação dos sofrimentos e humilhações infringidos, pelo próprio Deus, aos descendentes do ungido. No final do Salmo, o Poeta Etã se dirige inquisidoramente ao Criador, intimando-O a cumprir o prometido ao Rei Davi, mas desenvolvendo um tom mais brando no final, concluindo com uma prece em louvor ao Deus de seu povo, aquele que prometera, mas não estava cumprindo a promessa.

Vieira reelaborou a temática do Salmo, nesse Sermão de exéquias, construindo um raciocínio que reequilibrasse todas as anteriores afirmativas, malogradas, nas quais visualizava em D. João IV a encarnação do rei encoberto, tão esperado pelos portugueses desde o desaparecimento de D. Sebastião em terras africanas. Assim, Vieira se utilizou desse Salmo para reafirmar o que havia dito anteriormente, em outro sermão, quando da ascensão do Duque de Bragança ao trono de Portugal, no qual havia predito que D. João era o escolhido por Deus para restaurar o reino de Portugal. A reafirmação, ao longo do sermão, se fazia necessária porque, mesmo com o Rei já morto, Vieira ainda acreditava que Portugal seria o Quinto Império, visualizado por Bandarra. D. João, quando de sua ascensão ao trono, foi apontado, pelo mesmo Vieira, como o Rei Encoberto, previsto pelo sapateiro-profeta de Trancoso. Com a morte do Rei, e consciente de que Portugal ainda não havia se convertido no Quinto Império, Vieira procurou reafirmar a profecia, transferindo-a para D. Afonso VI. O orador, para revalidar suas anteriores afirmações, buscou no Salmo 89(88) os elementos necessários que reforçariam a sua argumentação. Vieira comparou D. João a Davi, aquele Rei bíblico que fora ungido com óleo santo, pelas mãos do profeta Samuel, a mando do Deus dos hebreus.

Encontrei meu servo Davi
E o ungi com meu óleo santo;
É a ele que minha mão estabeleceu,
E o meu braço ainda mais o fortificou.
(Salmo 89[88], vv. 21-22)

Para que se entenda esta comparação, faz-se necessário recordar que D. João IV enfrentou inúmeros problemas no início de seu reinado. Existia, por exemplo, uma guerra com a Espanha, porque esta não se conformava evidentemente com a perda do reino português. Houve uma restauração, mas essa restauração não foi pacífica. Outro grande problema enfrentado pelo novo rei foi o econômico, já que o tesouro real encontrava-se abalado, por ter sido administrado, até então, pelos reis espanhóis, e também pelos gastos na guerra. Além desses dois graves problemas – a guerra com a Espanha e as dificuldades econômicas – havia a possibilidade de uma nova guerra com os holandeses, já que estes ambicionavam o domínio das terras do Brasil. Para culminar, existiam também as brigas internas, os desacordos políticos, e uma série de problemas menores ligados à administração do reino.

Vieira vivenciou todos esses importantes momentos da História de Portugal, desde o reinado de Filipe IV de Espanha. Nasceu durante o domínio espanhol; ordenou-se sacerdote da Companhia de Jesus ainda no reinado de Felipe IV; lutou no púlpito contra as intenções dos holandeses; presenciou historicamente a recuperação do trono – a restauração –; sensibilizou-se com os problemas enfrentados pelo novo rei e viu-se historicamente como defensor da Coroa de Portugal. Para defendê-la, valeu-se de sua condição de orador sacro, não medindo esforços e palavras para realizar tão importante tarefa. Buscou na História de Portugal e nos Textos Sagrados a matéria que comporia a defesa; interpretou a Bíblia, transformando-a, para que se ajustasse às necessidades de sua argumentação defensiva. Inverteu magnificamente o comentário da palavra sagrada, fazendo do sermão – tema religioso – comentário dos assuntos ligados à movimentação social da Colônia e do Reino. Assim, estava escrito – e Vieira acreditava em predestinações – que ele seria aquele que daria crédito a todas as profecias sobre Portugal, desde os sonhos proféticos de Afonso Henriques até às predições do sapateiro Bandarra.

Supposto, pois, que o meu rei e senhor D. João se me não quer representar morto, senão vivo, préguem-lhe outros as exequias de defunto, que eu não quero nem posso. O que só farei hoje será uma narração panegyrica das reaes acções de sua vida. Toda está admiravelmente recopilada nas palavras que propuz, que são do Psalmo oitenta e oito. Vamol-as explicando, ou aplicando cada uma de per si, que todas tèm mysterio.
[Vieira. Sermões. Porto: Livraria Chardron, 1909, vol. XV: 282]

Para Vieira, aceitar a morte do rei, seria destruir todas as profecias messiânicas, por ele revitalizadas. Portanto, era necessário, ao longo do sermão das exéquias de D. João IV, reafirmar tudo o que já predissera, anteriormente, quando da coroação daquele mesmo rei, naquele momento, morto. O seu discurso era de pesar – aquele que fora seu amigo pessoal estava morto –, mas Vieira acreditava na ressurreição em outros corpos vivos – metempsicose –, e o candidato para tal ressurreição era o infante D. Afonso, aquele que seria o novo rei de Portugal. Por essas razões, buscou nas promessas do Deus dos hebreus – Deus próximo, Deus quase tangível –, feitas ao Rei Davi, a matéria que reforçaria as suas crenças sobre o Rei Encoberto. Antes, ele já havia ressuscitado o Rei D. Sebastião, afirmando que D. João IV era o Encoberto tão esperado pelo povo português. Com essa afirmação, conquistara o Rei, a Rainha e toda a Corte, quando de sua viagem à Portugal. Agora, aquele que fora escolhido por Deus para transformar Portugal no Quinto Império Judaico/Cristão – ou o Império de Cristo – estava morto e, apesar do forte sentimento de perda, Vieira não desiste da profecia e a transfere para D. Afonso.

Ainda, segundo Vieira, D. João IV, assim como acontecera com o Rei Davi, era o procurado por Deus, para salvar Portugal das mãos dos estrangeiros. Inveni: achei, encontrei: Assim como Davi fora procurado por Samuel na casa de Jessé, o belemita, a mando de Deus, da mesma forma D. João foi procurado na Casa de Bragança, entre vários candidatos ao trono. O sermonista se apoiou nos versículos 21 e 22 do Salmo 89(88), porque eles agiriam como auxiliares da idéia central, que era, no caso, reafirmar a crença na reencarnação do Rei Encoberto. Revitalizando cada palavra dos versículos escolhidos, foi construindo seu raciocínio sobre a predição, formando duplos e simultâneos pensamentos, cismando, pensando e imaginando a forma certa para impor a sua verdade e, com isto, convencer seus ouvintes/leitores, os súditos da Coroa Portuguesa, da grandiosidade de Portugal ante o mundo que o cercava na época. Já que o reino se encontrava abalado por disputas internas e externas, havia a necessidade de um orador convincente, que inspirasse ânimo ao povo e confiança no futuro. D. João fora o escolhido, segundo Vieira, pelo próprio Deus, e, a partir dessa afirmativa, o sermonista foi reconstruindo a histórica trajetória da ascensão do Rei ao trono, tecendo complexos pensamentos, inspirados na Bíblia, sobre o motivo da escolha.

Evidentemente, ao desenvolver o sermão de exéquias, Vieira estava reelaborando tudo o que já dissera antes, com outras palavras e sob a inspiração de outros textos bíblicos. Para reafirmar a predestinação, daquele que estava morto, iniciou uma nova abertura de raciocínio, transferindo o privilégio de escolha ao tronco familiar do rei morto. Consciente de que, a partir dali, teria meios de revitalizar suas idéias premonitórias, colocou a responsabilidade de concretização do Quinto Império nas mãos do herdeiro. Conhecedor profundo dos Textos Sagrados buscou em Macabeus, capítulo 5, versículo 62, o motivo da escolha de Deus recair em D. João, em detrimento dos outros candidatos: Ipsi autem non erant de semine virorum illorum, per quos salus facta est in Israel (Op. cit., p.238), ou seja, (Mas) eles não pertenciam à estirpe desses homens aos quais fora dado libertar Israel. D. João – e, naquele momento, também a sua descendência – havia sido escolhido por direito divino.

Ao longo do sermão, recordou a História de Portugal, as freqüentes ameaças de Castela, a defesa de D. João I, Mestre de Avis, a ligação familiar que uniu o então rei ao Conde D. Nuno Álvares, por intermédio do casamento de seus filhos, e, a partir daí, se apoiou na frase bíblica, para dignificar a estirpe do novo restaurador da Coroa. Cabia à geração de D. João IV – nova geração de restauradores –, realizar as profecias.

Et unxit eum Samuel in medio fratum ejus (op. cit.: 284): Samuel apanhou o vaso de azeite e ungiu-o (Davi) na presença dos irmãos. Davi e D. João IV, Israel e Portugal, Samuel e Vieira: para que vendo Samuel quão grandes eram os homens que Deus deixava, entendesse quão grande devia ser o que Deus escolhia. Desta forma, não apenas D. João era o escolhido; também ele – Vieira – fora escolhido por Deus para ser o revitalizador da crença na reencarnação do Rei Encoberto. Muito achou Deus nelle, quando buscando rei entre tantos príncipes, deixando a todos, só a elle elegeu, e só a elle achou: Inveni.

David. David se chama El-rei D. João nestas palavras que lhe aplicamos: mas com que propriedade? (op. cit.: 285). A partir do nome Davi, Vieira recomeçou a reconstrução de seus pensamentos, fazendo perguntas e oferecendo respostas, aproveitando-se da afirmativa que fizera no início do sermão: todas as palavras têm mistérios. Vieira analisou as palavras do trecho bíblico escolhido, sob os ditames barrocos do mistério e descoberta das palavras. Usou, assim, o que Saraiva chama de “geometria decorativa”, para caracterizar o estilo barroco, ou seja, estilo catedral, de acordo com os ensinamentos do Professor Dr. Leodegário A. de Azevedo Filho. Desenvolvendo um discurso centrado em perguntas e respostas, Vieira construiu pensamentos convergentes e, ao mesmo tempo, díspares, em que as semelhanças e oposições, entre o texto bíblico e a História de Portugal em ação se uniram, sem, com isto, destruir a convicção discursiva do orador. Assim, D. João IV foi comparado a Davi. Existiam tantas semelhanças entre os dois, segundo Vieira. Ambos, afeiçoados à música; ambos, domadores de feras; ambos, tendo um filho Salomão; ambos, prudentes, vigilantes, piedosos, justos; humildes e, ao mesmo tempo, majestosos; mas, principalmente, eram semelhantes, por terem vencido o Gigante. D. João vencera a monarquia espanhola e, de acordo com Vieira, fora em tudo semelhante a Davi.

Depois de analisar as semelhanças, o sermonista recuperou a história da batalha travada entre Portugal e Espanha, mostrando as dificuldades de tal empresa, já que Portugal era militarmente inferior. Mesmo com tantas dificuldades, Davi/D. João IV derrubou o gigante espanhol. Inveni David.

“Servum meum: Meu servo” (op. cit.: 287). Davi, antes de ser rei, era um fiel servo de Deus: destruiu ídolos, cultuou a grandeza do Deus de Israel, curvou-se ante a Majestade Divina. Assim, também, agiu D. João IV: propagou a fé, aumentou as missões da Índia, da China, da Guiné, do Congo, de Angola e, também, a do Maranhão, onde Vieira se encontrava à época das exéquias. D. João, segundo Vieira, era um obedientíssimo servo de Deus.

Oleo sancto meo unxi eum. Ungi-o a elle com o meu oleo santo: Oleo sancto. (op. cit.: 291)

Na concepção premonitória de Vieira, D. João fora ungido com óleo santo, exatamente como ocorrera com o Rei Davi. O rei bíblico suplicou a Deus, no Salmo 141(140): “Que o justo me bata, que o bom me corrija, que o óleo do ímpio não me perfume a cabeça, pois eu iria comprometer-me com suas maldades”; Vieira reafirmou estes versículos, ajustando-os a D. João. O rei português da nova geração de restauradores fora ungido com óleo santo, e isto era determinante para Vieira. Todos os outros reis, excetuando Davi, foram ungidos com óleo pecador.

“Que o óleo do ímpio não me perfume a cabeça”. O sermonista fez a apologia das virtudes do rei morto, relembrou suas palavras de resignada aceitação, ao receber uma coroa que não fora ambicionada, justificando assim as semelhanças entre os dois reis. Mas, ao desvelar as inegáveis qualidades de D. João IV, Vieira, sutilmente, procurou diferenciá-lo do rei bíblico. Se o salmista do Salmo 141(140) [que não é outro senão o próprio Davi], tivera consciência de que o óleo do ímpio poderia seduzi-lo e implorou a Deus que o salvasse de tão terrível destino, Vieira, ao contrário, assegurou o caráter puro e intocável do rei português. O salmista Davi revelou a sua necessidade de proteção, reconheceu-se fraco e propenso a ser seduzido; o rei português, segundo Vieira, foi, ao longo da vida, um homem virtuoso, imune às seduções do mal. Aceitara ser rei, ainda segundo Vieira, porque o povo necessitava de um soberano; não que, particularmente, almejasse tal posição.

Buscando um novo reforço para suas afirmações, o sermonista retirou do Primeiro Livro de Samuel – na Vulgata do século XVII, consta como 1o Livro dos Reis –, capítulo 9, versículo 24, novas idéias que demonstrassem o caráter íntegro do Rei e sua grande capacidade de trabalho: “Comede, quia de industria servatum est tibi. Come, aqui está diante de ti o que se separou”.

Para o rei escolhido (o rei bíblico aludido por Vieira, nesta passagem, é Saul, primeiro rei de Israel, anterior a Davi, ungido também com óleo santo), Samuel ofereceu um banquete, em que foi servido, segundo Vieira, o ombro direito de uma rês. Esta parte do animal fora guardada especialmente para Saul, que seria coroado rei a pedido do povo de Israel. O povo de Israel queria um rei como os outros povos que o cercavam. O rei de Israel, até então, era o próprio Deus. O povo israelita já não aceitava a idéia de ter por rei apenas uma divindade. Mesmo magoado com seu povo – povo escolhido –, Deus elegeu um rei para Israel, por intermédio do profeta Samuel. Vieira explicou, aos leitores da época, porque fora reservado para Saul o ombro direito da rês. “Os reis ungidos com o óleo de Deus coroam os ombros, e não a cabeça; porque o ombro é o lugar do trabalho, e a cabeça é o lugar da dignidade” (op. cit.: 292). Esta passagem do Antigo Testamento foi ressaltada apenas para demonstrar a face de trabalhador do rei português. “Senhor, se sou necessário para meu povo, não recuso trabalho”. Esta frase, evidentemente bíblica, ou de inspiração bíblica, foi atribuída, por Vieira, a D. João. O rei aceitara a coroa porque o povo necessitava de um líder. Assim, aceitava a dignidade da coroa – a coroa sobre sua cabeça –, mas oferecia seu ombro ao trabalho, ao pesado ofício de reinar. Não recusava o trabalho, porque fora ungido com óleo santo.

“Unxi eum: Ungi-o a elle” (op. cit.: 293). Neste trecho, Vieira aludiu, ironizando, aos reis dos outros reinos da Europa, à época de D. João VI. Deus ungiu com óleo santo somente ao rei português; aos outros reis ofereceu apenas a coroa, os verdadeiros ungidos foram os criados e os validos, porque esses sim possuíam o poder.

Há reis que nem reinam, nem sabem: elles são os reis, e os seus validos são os que reinam; porque os validos são os que põem e os que dispõem, e os que fazem o que querem; e assim como não reinam, também não sabem; porque nem sabem a quem se dão os prêmios, nem sabem a quem se dão os castigos, nem sabem porque culpas. (Op. cit.: 293)

Observando este trecho do sermão, não é demais lembrar que durante dezoito anos, até 1642, o reino de França foi governado pelo Cardeal Richelieu, primeiro ministro de Luís XIII. Na verdade, Vieira pôs em destaque o fato, comentando que em França “quem tinha o governo era o Cardeal Richelieu” (op. cit.: 293). Também em Espanha quem governava de fato era o valido de Filipe IV, o Conde Duque de Olivares. Depois destas certeiras críticas, o sermonista realçou a figura do falecido rei, afirmando que ele possuía a coroa e o poder de fato, reinando sobre todos, assinando os papéis com a própria mão, analisando severamente cada papel, antes de colocar-lhe a sua assinatura. De acordo com as palavras de Vieira, o rei trabalhara arduamente durante o seu reinado. Até mesmo a música era ouvida à hora da sesta e pela madrugada, para não perturbar o seu ritmo de trabalho.

Manus enim mea auxiliabitur ei, et brachium meum confortabit eum: A minha mão o ajudará, e o meu braço o esforçará. (Op. cit.: 294)

Aproveitando-se deste versículo bíblico, Vieira aludiu a um fato premonitório, quando da coroação de D. João IV. Quando o novo rei estava sendo aclamado, diante da Igreja de Santo Antônio, o braço da imagem de Cristo crucificado despregou-se e ficou estendido diante dos aclamadores. Todos viram nesse episódio uma clara demonstração do apoio de Deus para com a nova dinastia real que se iniciava. “Manus mea auxiliabitur ei”. Depois de recordar o episódio, Vieira passa a relatar os vários momentos em que Deus auxiliou as empresas do rei, como, por exemplo, a vitória sobre Castela. Novamente, busca nas palavras da Bíblia o reforço para o que tem a dizer. No Segundo Livro dos Reis, capítulo 6, versículo 18 – na Vulgata está assinalado como 4o Livro dos Reis – o profeta Eliseu, sucessor de Elias, quando percebeu que os arameus ameaçavam investir contra Israel, orou a Deus, implorando proteção para os israelitas: “Digna-te ferir essa gente de belida”, ou seja, cegá-los momentaneamente. E Deus acatou a sugestão de Eliseu que, assim, pode levá-los aos israelitas. Depois, o profeta pede a Deus que os faça novamente enxergar e Deus atende o pedido de Eliseu. O perigo passara e os arameus estavam agora sob o poder do reino de Israel. O Rei pergunta ao Profeta se deve massacrar os arameus, recebendo resposta negativa, já que era costume entre os israelitas o massacre de prisioneiros de guerra. Ao invés de massacre, os prisioneiros recebem bom tratamento e são repatriados, depois de um grande banquete oferecido pelo rei. Algo parecido, segundo Vieira, fizera Deus aos castelhanos, impedindo assim que dominassem novamente o reino português. Deus socorrera Portugal e, para reforçar esse socorro, Vieira não hesitou em reproduzir mais um versículo bíblico, agora apoiado no Novo Testamento, em Mateus, capítulo 26, versículo 47, buscando na atitude de São Pedro, defendendo o Horto, o raciocínio certo para compor o seu discurso. Deus socorrera Portugal, como havia socorrido o povo israelita da invasão dos arameus, sem lutas. São Pedro defendeu o Horto, usando sua espada; com a espada, cortou a orelha de um soldado e foi energicamente repreendido pelo Mestre: “Guarda tua espada no seu lugar, pois todos os que pegam a espada pela espada perecerão” (Mateus, 26, 52). Deus socorrera Portugal, atrapalhando os “conselhos” do Conde de Onhate: “O Onhate allumiava bem: mas Deus, porque amava a David, infatuou o conselho de Achitofel” (op.cit.: 294); o Conde era um bom conselheiro de guerra, mas Deus estava com D. João IV. Vieira compara o Conde de Onhate a Achitofel, e o rei de Portugal a David. Aquitofel, no Segundo Livro de Samuel – na Vulgata, 2o Livro dos Reis – é o conselheiro de Absalão, filho de David, que pretendia destronar seu pai. “Mas Deus, porque amava a David, infatuou o conselho de Achitofel”, ou seja, não permitiu que se realizasse a vitória de Absalão.

Usando frases bíblicas – às vezes, destorcendo o sentido correto, como é o caso do versículo 47, capítulo 26, de Mateus, “cum gladiis, et fustibus”, aplicado à atitude do discípulo de Cristo que cortou a orelha do soldado, quando, na verdade, a frase se liga aos que vieram prender Jesus, sob a orientação de Judas –, Vieira foi compondo seu raciocínio, cujo objetivo era abrir caminho para as futuras transferências visionárias, já que o mito do Quinto Império era algo arraigado em seu espírito. Portanto, não era demais usar também um versículo de São Lucas, em que o evangelista, referindo-se ao nascimento de São João, diz: “E a mão do Senhor estava com ele” (Lucas, 1, 66). A mão do Senhor também estava com D. João, segundo Vieira, e usando a palavra mão, ligando-a à mão de Deus, foi encadeando os próprios pensamentos e impondo ao ouvinte e/ou leitor a sua verdade dos fatos que estavam ocorrendo. “E a mão do Senhor estava com ele”. Segundo Vieira, desde o início do reinado da reconquista, Deus foi um aliado do rei. Vieira, ao longo do sermão foi/vai apontando os momentos importantes que afiançaram a proteção.

“Et brachium meum confortabit eum: E o meu braço ainda mais o fortificou” (op. cit.: 296). A palavra sagrada e seu mistério. A palavra sagrada não possuía mistério para Vieira, porque estava a serviço de sua engenhosidade e genialidade.

Deus não usou somente as mãos para orientar o rei de Portugal, usou também o braço, para o proteger nos momentos difíceis. Segundo Vieira, o rei não andava armado, não levava guardas quando viajava, enfim, não se protegia convenientemente. Esses cuidados, tão necessários, vinham de Deus, já que o braço de Deus o protegia. No entanto, o perigo o espreitava sob a forma do exército de Castela.

Todos estes excessos de valor destemido fazia aquelle grande coração, constatando-lhe das grandes diligencias que Castella fazia por lhe tirar a vida nas acções e nos logares mais sagrados. Ah, que se me perde aqui a minha similhança de David! Mas eu a dou por bem perdida. (op. cit.: 297)

“Ah, que se me perde aqui a minha similhança de David”, ou seja, David não agiu como agiu D. João e, muitas vezes, procurou proteger-se dos inimigos. Vieira relata um episódio em que David fugiu do exército do rei Saul, subindo com seus homens para um lugar seguro. “Ascenderunt ad tutiora loca”: Subiram para o refúgio, 1o Livro de Samuel (na Vulgata do século XVII, 1o Livro dos Reis), capítulo 24, versículo 23. O sermonista, nesse trecho, procurou valorizar a coragem do rei português, diminuindo habilmente o valor de David.

O sermão das exéquias do rei D. João IV só foi encontrado depois da morte de Vieira e, segundo os apreciadores de sua obra, possui muitas falhas e lacunas, uma vez que o seu autor morreu antes de realizar a correção final. Mas, para mim, vale como documento de uma época, além de se detectar nele a face de um sacerdote de Cristo que acreditava em premonições, reencarnações, astrologia, e outras crendices censuradas pela Igreja Católica. Mas, de acordo com Antônio José Saraiva e Óscar Lopes – História da Literatura Portuguesa – a crença na reencarnação era algo muito difundido no século XVII e, assim, as crendices de Vieira não eram anormais.

O tratamento a que Vieira sujeita as Trovas do Bandarra para apontar em D. João IV o “Rei Encoberto”; para demonstrar a sua futura ressurreição, uma vez que morreu sem se cumprir o Quinto Império; para transferir depois o Quinto Império para D. Afonso VI, para D. Pedro II, para seu gorado primogênito e finalmente para seu segundo, põem, é certo, o problema da sua sinceridade. Mas devemos talvez relacioná-lo com a crença cabalística na reencarnação, ou metempsicose, muito difundida entre os Judeus da época, e que já fora expressa pelo cristão-novo Manuel Bocarro Francês. Além disso, bem sabemos como o princípio lógico da não-contradição, o senso do absurdo pouco afeta as ideologias enraizadas. (Saraiva & Lopes [1979], op. cit.: 556)

Desenvolvo um estudo do texto das exéquias de D. João IV porque, a partir dele, pude constatar a habilidade de Vieira em transferir para os sucessores do rei a sua crença na reencarnação do Rei Encoberto, aquele que cumpriria a profecia sobre o Quinto Império. Assim, revisitando também outros sermões, pude observar os volteios mentais do grande sermonista para dar concretude às suas visões messiânicas. Por exemplo, no sermão oferecido secretamente à Dona Maria Francisca Isabel de Saboya, primeira esposa do rei D. Pedro II de Portugal, Vieira não escondeu seu desapontamento pelo falecimento do primogênito. Iniciou, assim, seu discurso, enviando queixas a Deus, que não estava cumprindo suas promessas, uma vez que o prometido herdeiro varão nascera, mas não sobrevivera. O pregador empenhara sua palavra, valendo-se das visionárias promessas de Deus, garantindo um filho varão para o rei D. Pedro II. Antes, suas outras afirmações não se realizaram: D. Afonso VI, predito por Vieira como a nova reencarnação do Rei Encoberto, não conseguiu terminar o seu reinado, submetendo-se ao poderio do irmão. Este, também assinalado por Vieira, por sua vez, não estava realizando o sonho do Quinto Império. Tornou-se urgente, portanto, transferir a ressurreição para o provável herdeiro varão do trono de Portugal. O herdeiro nasceu, mas, talvez, em virtude da anterior ligação, ilícita e pecaminosa, dos pais, logo depois, morreu.

Vieira recordou, ao longo do texto de pêsames, o discurso do nascimento:

Dividi aquele sermão em duas partes: uma em que desempenhei a palavra de Deus, e outra em que empenhei a minha: e a ambos estes empenhos cortou o cumprimento, e a esperança a morte. O empenho da palavra de Deus era, que na prole atenuada da décima-Sexta geração dos nossos reis havia ele de olhar e ver; isto é, lhe havia de dar um filho varão: mas como o deu e levou tão arrebatadamente, para nós o mesmo foi dá-lo, como se o não dera; e para ele o mesmo foi ser, como se não fora. (op. cit.: 37)

Para não ser condenado por seus ouvintes/leitores, como de hábito, Vieira buscou nos Textos Sagrados o material de sua defesa, e refez novamente a promessa, contando com a juventude da rainha, para uma outra e certa gravidez. “Bastava, torno a dizer, para que a soberana liberalidade do mesmo Senhor, depois de lhe tirar o primeiro, não haja de faltar em lhe dar o segundo” (op. cit., p. 51). Para desgosto de Vieira, com o passar dos anos, depois do nascimento de uma filha, ficou patenteada a esterilidade da rainha.

Os sonhos de Vieira retomaram força com a morte da rainha, alguns anos depois. No sermão de exéquias, pregado em setembro de 1684, o sermonista não conseguiu disfarçar o seu contentamento. Habilmente, misturou protestos de tristeza com cânticos de confiança em relação ao futuro, já que a morte da rainha permitiria um novo casamento ao rei, ainda em condições físicas para se tornar pai. Ainda havia uma forte possibilidade de realização das antigas promessas messiânicas. E aconteceu realmente o novo casamento do rei D. Pedro com Maria Sophia Isabella, “a augustíssima de Áustria” (op. cit.: 166), proporcionando, posteriormente, o nascimento do príncipe D. João, aquele futuro rei de Portugal, que marcaria tão tristemente a História do Brasil com sua ambição desmedida.

No sermão de ação de graças pelo nascimento do novo herdeiro da coroa portuguesa, a primeira linha de raciocínio de Vieira se valeu, como de hábito, de trechos da Bíblia. O sermão sempre foi [e continua sendo], obrigatoriamente, um raciocínio que tem como tema central um pensamento bíblico, mas é evidente que a segunda premissa – a linha de raciocínio ligada aos acontecimentos sociais da família real e de Portugal – era mais importante, em virtude do orador preferir colocar em destaque a história de Portugal, que estava acontecendo, contrapondo-a com os fatos do passado e com as visões do futuro. Vieira sentiu o desenrolar dos acontecimentos históricos que envolviam Portugal no século XVII; sentiu em profundidade o seu próprio momento, ligado ao momento do reino, reconhecendo-o parte importante da História. D. João IV, o restaurador, havia retomado os poderes reais cedidos ao reino de Espanha desde a morte de D. Henrique e, isto, aconteceu no apogeu da fama do Padre Antônio Vieira como orador sacro. Assim, no sermão de ação de graças pelo nascimento do príncipe D. João, Vieira continuou não abandonando a idéia de que Portugal se destacaria como o Quinto Império e viu, nesse nascimento, a possibilidade de concretizar a sua crença, tantas vezes malograda, desde D. João IV, de que naquele Infante Deus selaria a promessa de nomear o rei de Portugal como Imperador do Quinto Império Judeu-Cristão.

Segura já a décima Sexta geração, e a promessa dela, resta só a da prole, e prole atenuada. Aqui tem os olhos divinos mais que desfazer do que fazer. Porque a prole d’El-rei D. João o quarto não foi atenuada, senão multiplicada. Diz Salomão que o fio, ou o cordão de três ramais dificultosamente se rompe: Funiculus triplex difficilè rumpitur; e tal foi a prole d’El-rei D. João, multiplicada ou triplicada em três filhos: em D. Theodosio, em D. Affonso, em D. Pedro. Destes três havia de desfazer a Providência Divina dois deles, para que ficasse a prole atenuada em um só. (op. cit.: 177)

Neste trecho, reafirmou o que já afirmara antes em relação ao avô, ao tio, ao pai e ao meio-irmão do Infante recém-nascido. Como já foi dito, depois da morte de D. João, sem a concretização das profecias, Vieira transferiu para D. Afonso a honra da reencarnação, quando demonstrou, num discurso persuasivo, que no novo rei se realizariam as promessas de Deus. As afirmações de Vieira, sempre apoiadas em suas premonições, foram todas desmentidas, até então, pelos acontecimentos reais da trajetória de vida dos assinalados. Mas, com o nascimento do Infante, surgia uma nova esperança para o velho sermonista.

A vossos olhos (todo poderoso, e todo misericordioso Senhor) a vossos olhos, posto que debaixo dessa cortina encobertos aos nossos: a vossos olhos vem hoje esta grande e nobilíssima parte de Portugal render as devidas graças pelo fidelíssimo desempenho de vossas promessas. Prometeste que havieis de olhar, e ver: Ipse respiciet, et videbit: e já temos nova certa, de que olhaste, e vistes.

Quatro anos, e mais, se contam hoje, em que pregando eu as exéquias da rainha, que está no céu, fiz dois discursos muito encontrados, um de dor, outro de consolação; um de sentimento, outro de alívio; um triste, outro alegre; um com os olhos no passado, outro com as esperanças no futuro. (op. cit.: 166)

Utilizando-se do estilo cultista, no início deste segundo parágrafo do sermão, usando das oposições, mas nem por isto diminuindo o valor do texto, Vieira se refaz de sua longa decepção. Depois, para provar a recuperação de suas idéias, buscou na Bíblia vários trechos que comprovariam o desempenho da palavra de Deus. Recordou a História de Portugal, recordou as visões de Afonso Henriques, que sob inspiração divina previu uma desgraça para o reino de Portugal, mas previu também que na décima sexta geração se atenuaria a prole, ou seja, diminuiria os sofrimentos do reino, por meio de uma nova dinastia. A profecia se realizou com o desaparecimento de D. Sebastião, sem deixar herdeiros, com o curto reinado de D. Henriques, rei-sacerdote, que também não deixou herdeiros, e com a submissão da Coroa Portuguesa à Coroa Espanhola.

Diz Vieira:

Vejamos agora quem foi a décima-Sexta geração d’El-rei D. Afonso I, e quem foi, ou é a prole atenuada da mesma geração décima Sexta. A décima Sexta geração d’El-rei D. Afonso o primeiro, ninguém duvida, que foi El-rei D. João o quarto de eterna memória: e a prole atenuada d’El-rei D. João o quarto também não se pode duvidar, que é El-rei D. Pedro nosso senhor, que Deus guarde; porque depois do falecimento de seus irmãos, nele ficou a décima Sexta geração em um só filho, e por um fio. Segue-se logo com evidência, que na pessoa d’El-rei D. Pedro se cumpriu a atenuação da prole, e que à mesma pessoa d’El-rei D. Pedro prometeu Deus o olhar e ver de seus olhos. (op. cit.: 167)

Além das previsões de Afonso Henriques, havia as predições messiânicas de Bandarra, nas quais o sermonista depositava inegável crédito, mesmo colocando em risco o fiel cumprimento da Doutrina Cristã.

O chamado “Império Consumado de Cristo” era um antigo ideal dos portugueses e Vieira muito contribuiu para a sua propagação. Esse mito, segundo Antônio José Saraiva e Óscar Lopes, era baseado numa mistura de messianismo nacional (sebastianismo e bandarrismo), missionarismo sem fronteiras e do messianismo judaico, que estava (e está) à espera do Salvador.

Vieira acreditou nessas profecias com sinceridade e, por isto, conseguiu dar sentido aos seus vários discursos paradoxais sobre o assunto. Graças também à habilidade discursiva, e as proteções externas, conseguiu livrar-se da Inquisição, que o perseguia, por ver nele uma ameaça para com a ortodoxia cristã.

Vieira acreditou até o fim de sua vida na possibilidade de ver realizada a profecia do Quinto Império Judaico-Cristão, o qual, de acordo com suas crenças, seria edificado pelos portugueses (povo escolhido por Deus). Infelizmente, morreu sem ver realizado seu sonho, mas as verdades momentâneas, que o animaram a acreditar até o fim, estão registradas em seus sermões, e são, hoje, um precioso material que revela, por um ângulo particular (o ponto de vista de um supersticioso e sonhador sacerdote do século XVII), um longo trecho da História de Portugal.

Este ensaio teórico-crítico (sobre os sermões históricos de Padre Antônio Vieira) está registrado no Ministério de Educação e Cultura (MEC) / Biblioteca Nacional - Registro de Direitos Autorais - e será publicado, em breve, na coletânea de Ensaios de Teoria Literária de Neuza Machado, Editora NMACHADO (Editora da Autora).

Um comentário:

ROGEL DE SOUZA SAMUEL disse...

seu famoso ensaio,
muito bom,
rogel samuel