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sábado, 27 de junho de 2009

CRIAÇÃO POÉTICA: TEMA E REFLEXÃO / SOBRE A OBRA POÉTICA DE GILBERTO MENDONÇA TELES

Neuza Machado
























CRIAÇÃO POÉTICA: TEMA E REFLEXÃO

SOBRE A OBRA POÉTICA DE GILBERTO MENDONÇA TELES

Rio de Janeiro, julho de 2005

Neuza Machado, 2005

Todos os direitos reservados e protegidos por lei.Proibida a duplicação e reprodução deste volume ou parte dele, sob quaisquer meios, sem a autorização expressa da autora e/ou herdeiros diretos.

ISBN – 85-904306-4-2

Editor(a)
NEUZA MACHADO

Capa / Foto da Capa
ALEXANDRE MACHADO

Diagramação
ALEXANDRE MACHADO

Revisão
NEUZA MACHADO

CIP-BRASIL - CATALOGAÇÃO NA FONTE
SNEL - SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

Machado, Neuza, 1946 -
M132c Criação Poética: Tema e Reflexão / Sobre a obra poética de Gilberto
Mendonça Teles. 1. ed. – Rio de Janeiro: NMACHADO, 2005. II
Inclui bibliografia
1. GilbertoMendonça Teles, 1931 – Crítica e interpretação. 2. Poesia Brasileira – História e Crítica. Título.

05-2162 CDD 869 91
CDU 821. 134. 3 (81) - 1

07.07.05 13.07.05 010845

JULHO - 2005

PREFIXO EDITORIAL No 904306 – AGÊNCIA BRASILEIRA DO ISBN

NEUZA MACHADO

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E-mail:
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Impresso no Brasil
Printed in Brazil


(...) ninguém conseguirá saber o sem-sentido
destas palavras íntimas que me habitam
nas horas resistentes do anoitecer,
quando as barreiras deslizam para o meio

das estradas e quando os caminhos
se voltam para dentro de si mesmos,
para o centro real dessa planície
fechada no alfaberto.

Gilberto Mendonça Teles*


LUDUS

Toma a palavra, e principia. Tudo
tem um pouco de ti: um sol, um sema.
No fundo, teu desejo:
lodo e ludo,
jogo de truque e blefe de poema.

Toma este livro, toma e lê (ou lege);
não só o tomo, a obra inteira soma
à solidão maior que te protege
como um corpo de baile no idioma.

E toma ao pé da letra o que combina
com teu gosto e prazer:
o cimo, a suma
de todos os sabores,
vitamina,
quintessência final de coisa alguma.

Gilberto Mendonça Teles**


1 - APRESENTAÇÃO

Como apresentação deste livro, desejo informar aos leitores que ao iniciar estes estudos analítico-interpretativos sobre a obra de Gilberto Mendonça Teles depreendi o chamado bom comportamento retórico, destacado por Mário Chamie ao se referir aos poetas do Grupo de 45. Não sendo propriamente dessa geração, GMT tem a seu favor o fato de ter convivido com os regulamentos formais do referido grupo, o qual, até bem pouco tempo, ocupou-se em perpetuar as mesmas propostas estéticas da fase inicial. No decorrer de sua atividade literária, destacou-se em seus poemas uma enunciação lírica voltada para as diretivas de uma linguagem formal, experiente e consciente; talvez, em princípio, um retorno aos regulamentos estéticos do estilo clássico. Por estas razões, sua expressão lírica materializa-se, em suas várias etapas criativas, como representação máxima do fazer poético, em outras palavras, como forma que a diferencia de um texto em prosa, mesmo que se apreenda na prosa a poesia.


Em um poema argumentativo (argumento ad hominem), publicado no livro Arte de Armar (1977), Gilberto, consciente das afirmações da crítica, quanto à sua identificação com o Grupo de 45, e naturalmente repto, criativamente provocador, apresenta a seus leitores, em forma de poesia, a sua opinião a respeito do assunto.


45

Sou da geração
de quarenta e cinco
ou tenho na mão
a porta sem trinco?

(Nem sei quantas são
as telhas de zinco
que cobrem meu chão
de quarenta e cinco.)

Semeei meu grão?
fui ao fim do afinco?
pesquei a paixão
de quarenta e cinco?

Tudo é sim e não
em quarenta e cinco.
E a melhor lição
forma sempre um vinco
de interrogação
no tempo, onde brinco
procurando um vão
entre o 4 e o 5.

[30-jun.-1976]***


Seguindo em minhas deduções, poderei afirmar que, mesmo pautado por normas estéticas exemplares, no que se relacione à forma do texto poético, GMT demonstrou, em seus quarenta e nove anos de poesia [comemorados neste ano de 2005], a particular capacidade de estar aberto às transformações sócio-culturais da segunda metade do século XX, intuindo criativamente novos caminhos ou, como ele mesmo afirma em seu poema, seguindo a melhor lição dos mestres de 45: a consciência daquele vinco de interrogação no tempo, a procura de um vão entre o 4 e o 5. As novas formas sócio-culturais que ocorreram no Brasil e no Mundo, indícios seguros de uma mudança de Eras [e as suas fases poéticas também representantes de um momento histórico desconcertado], não impediram o poeta goiano de continuar fiel às suas primeiras manifestações líricas (anos 50), uma vez que se observa uma intermitente retomada criadora dos temas lírico-amorosos daquela fase. Conservador, não obstante o abandono da métrica e das rimas na maior parte de seus poemas atuais, ele presenciou as posteriores etapas de outras propostas estéticas, desde a Poesia Concreta dos anos 50, com seus dois ciclos evolutivos, até a chamada Poesia de Mimeógrafo, fenômeno dos anos 70, mas não se filiou a nenhum deles, exercendo a sua criatividade individualmente. Como sujeito preso a uma determinada realidade social, presenciou essas modificações literárias, mas isto não quer dizer que, como indivíduo consciente de seu poder de criação, tivesse aderido às determinações estéticas das mesmas. Com habilidade, assimilou as virtudes desses movimentos em detrimento das falhas e elaborou novas experimentações sem, contudo, abdicar-se de suas raízes conservadoras. &Cone de Sombras, uma coletânea de poemas de sua terceira fase, por exemplo, é uma espécie de reafirmação desse início, uma reformulação de sua arte poética.

Não é demais lembrar que pretendi analisar e refletir nestas minhas indagações preliminares, que serão apresentadas nos próximos capítulos, essencialmente, alguns poemas da terceira fase de sua produção literária (décadas de 70 e 80), mas não deixei de considerar as fases iniciais, como, também, refleti sobre a sua atual produção, já que Gilberto Teles continua em plena atividade criadora.

No entanto, antes de iniciar minhas reflexões prioritárias – analisar e, posteriormente, repensar alguns poemas dos livros &Cone de Sombras e Hora Aberta –, posso adiantar que, em sua segunda fase, Gilberto se concentrou mais na sintaxe, construindo e organizando sua expressão poética, mas não deixou de assinalar um certo saudosismo das formas líricas antigas, evidenciado ao lamentar a ausência da linguagem primordial – forma primitiva das coisas (linguagem como porta para o infinito) – dispersa momentaneamente.

Tão justa e essencial, a trajetória
da noite se organiza, fabulosa.
Crescem cactos de fogo no silêncio
da linguagem perdida.

Só o material de espuma, a forma
primitiva das coisas permanece
girando sobre si, anterior
à descoberta.

(p. 407, op. cit.)

No início de sua trajetória poética, como já assinalei, ele circunscreveu-se à forma lírica determinada pelos poetas da segunda metade dos anos quarenta, elaborando sua arte animado pelos preceitos estéticos do Grupo de 45. No segundo estágio, procurou questionar as transformações vanguardistas, as diferentes formas de estruturação da linguagem poética, o método, a clareza suplantando o enigma, a falta de liberdade, as limitações lingüísticas e, por estas razões, surpreendeu-se raciocinando e criticando a sua própria atuação e, implicitamente, a de alguns poetas sentenciosos de seu momento histórico-estético. (Se havia tanto silêncio necessitando de decodificação, por que uma imposição conceitual de caminhar, deslizante[s], sobre flores e feltros disponíveis?). E eis Gilberto reclamando o seu direito de singularidade poética:


DESCOBRIMENTO

Há demasiado silêncio nesta noite
e os nossos pés caminham, deslizantes,
sobre flores e feltros disponíveis.

E há também demasiada pureza neste luar oblíquo,
demasiada claridade nesta noite sem fundo.
Entre formas que se movem absurdas
os nossos pés flutuam, deslizando-se,
e a poesia irrompe das sombras
como um corpo livre de túnel, túmulo
e tudo que retém seu mais obscuro
poder de liberdade e movimento.

A profusão de luzes destrói
qualquer tentativa de descobrimento.
E a beleza de ver corrompe o possível encantamento
das estrelas.

Todas as coisas lindas e amoráveis
são noturnas e crescem à flor de lagos
subterrâneos.

Todas as coisas lindas e livres
se organizam no secreto rumor da angústia do tempo.

Há demasiada pureza neste luar
e nos dói tanta certeza para o amor.
Na transparência dessas formas puras nos deitamos
e nossos pés flutuam
no absoluto clarão do chão inútil.

(p. 406, op. cit.)

[Há] demasiada pureza neste luar oblíquo, demasiada claridade nesta noite sem fundo. Para Gilberto, submetido a um novo estágio de raciocínio e crítica, sobre as normas do fazer poético daquele período da história literária brasileira, a poesia verdadeiramente valiosa seria aquela que se irrompe[ria] das sombras / como um corpo livre de túnel, livre de túmulo e tudo que [retivesse] seu mais obscuro / poder de liberdade e movimento. As normas estéticas que se propagavam, naquele momento de sua primeira fase criadora, estavam presas aos modelos, às regras, aos limites preestabelecidos pela elite intelectual da terceira fase do modernismo brasileiro. Nesse segundo estágio, compreende a necessidade de reformular seus conceitos poéticos, objetivando alcançar o mundo amorfo das sombras, as imponderáveis sombras visualizadas pelos grandes líricos atemporais, provenientes de insólitas noites sem fundo. Naquele momento, havia muita luz (regras, conceitos, críticas explícitas, imposições) nos inúmeros textos poéticos que se sobressaíram, notabilizando seus criadores, os quais se prendiam às diretrizes estético-substanciais impostas pelo grupo que se autoproclamava depositário da forma correta de se fazer poesia. E eis Gilberto contestando-os interlinearmente, sabiamente resguardado na forma poética: as coisas lindas e amoráveis / são noturnas e crescem à flor de lagos subterrâneos. Nestes versos, o poeta lamenta a perda (momentânea) da Poesia enquanto sentimento, lamenta a perda da sensível e poderosa linguagem transgressora, dinâmica, produtora de novíssimos juízos, juízos de descoberta**** , único meio de se alcançar os mais remotos estágios do Absoluto. Como detectar o lado oblíquo do luar? Como sentir o mistério da noite sem fundo? Como perceber a sintaxe invisível, se os Poetas, preocupados em construir palavras em páginas desertas? (p. 392, op. cit.), páginas que não continham vestígios da já distinguida (misteriosa) sintaxe invisível.

Nesta minha propedêutica, para reconhecer a terceira fase de Gilberto, pré-anunciada em sua poética da segunda fase, reclamando uma nova ordem estética – tal reivindicação subentendida no espaço invisível de sua criação lírica –, submeto-me, inicialmente, a um estudo analítico de alguns poemas, sob a proteção da Semiologia da Literatura de Segunda Geração. Entretanto, posteriormente, passarei a privilegiar a interpretação fenomenológica, reconhecendo que os estudos reflexivos, realçados pela compreensão do leitor-intérprete, são os mais adequados ao desvelamento da obra lírica paradigmática.

Aceitando a contribuição de um postulado crítico-analítico complementar, e reconhecendo o próprio texto literário como caminho seguro para inovadoras inferências teóricas, posso arriscar-me a confirmar que os questionamentos deste Poeta singular estão subentendidos no espaço oblíquo e misterioso de seu pergaminho poético, em sua sintaxe invisível. O exame acurado, a contemplação e a meditação proporcionaram-me seguir pistas seguras para o desvelamento das entrelinhas dos textos analisados, sob o aval dos próprios versos de Gilberto. A partir do meu envolvimento reflexivo com a sua poesia – compreensão das camadas ocultas –, pude deduzir que, em sua segunda fase, o poeta goiano realçou suas indagações particulares, questionou e esquadrinhou ludicamente as tendências estético-poéticas de seu momento histórico. Posteriormente, já na terceira fase, convenceu-se de que a legítima Poesia – enquanto intuição de novíssimos juízos, os quais impulsionam a realização de novas experimentações poéticas – independe de dogmas e formas preestabelecidas.

Neuza Machado
Doutora em Ciência da Literatura / Teoria Literária - UFRJ
Mestre em Ciência da Literatura / Teoria Literária - UFRJ

Rio de Janeiro, Julho de 2005



ANTES DO NOME

No princípio, quando o nome soprava
da boca das crateras e o hálito
de fogo fundia os horizontes vazios,
nenhum sinal cortava o deserto do tempo
e apenas a sombra se movia monótona
sobre a fauce das águas.

Antes do nome, os seres se dispersavam
incógnitos nos abismos do Gênese.
Os elementos resistiam no caos
à natural elocução das intempéries.
E só o amor circulava difuso por entre
as árvores do bem e do mal.

Um dia, todos os seres viventes amanheceram
sur-presos nas malhas do nome.
Menos as coisas: essas permaneceram
livres e continuam noturnas, à espera
de outro momento da criação.

Gilberto Mendonça Teles*****


2 – O POETA SINGULAR

2.1 - Análise do poema “A Pedra”

No princípio e no fim, no vão do meio,
uma pedra nomeia o meu caminho:
dormi como uma pedra ou alguém veio
deixar os meus lençóis em desalinho?

Quem foi que andou pisando a minha vida
e me deixou assim meio de fora,
oscilando em mim mesmo, na medida
em que nomeio o amor, aqui e agora?

No princípio era a pedra e seu instante
de existência sem nome, realidade
carente de sintaxe e vacilante
no seu jeito de ser pela metade.

No meio, além da pedra, a poesia
dessas coisas sem forma, na ante-sala,
onde nomeio a musa que existia
no chão do nome e no colchão da fala.

No fim, tudo é princípio e o meio é meio
de alguém cavar no pó do pergaminho
um sentido final, talvez um veio
na pedra que nomeia o meu caminho.

(p. 100, op. cit.)

Neste poema, o sujeito poético transgride a idéia referencial da palavra pedra, enquanto elemento característico do discurso lingüístico, para nos oferecer um novo sentido – conotações próprias do discurso poético – que o faz perceber a pedra como símbolo do processo evolutivo de realização da poesia.

Para facilitar a explanação, o poema foi dividido em três movimentos: o primeiro é o somatório das duas estrofes iniciais, o segundo é formado pelas estrofes três e quatro e o terceiro movimento se situa na quinta estrofe.

Analisando o primeiro movimento, observa-se que há somente um referente como elemento estruturador. Este referente está desdobrado em três significações e remete à idéia de que a pedra passou por um processo de lapidação até se converter em pedra preciosa. Depois da organização da tripartição conotativa, já se torna possível detectar alguns sememas e semas, autorizando-me a definir conscientemente o que o sujeito poético quis expressar. Assim, seguindo os preceitos da semiologia poética de segunda geração, os sememas, que induzem a pensar em pedra como elemento referencial tripartido (no caso específico da criação poética de GMT, desdobramento evolutivo de apreensão da Poesia), se apoiam nas palavras princípio, meio e fim.

No princípio e no fim, no vão do meio,
uma pedra nomeia o meu caminho:

O sujeito da enunciação sobressai-se: é ele o elemento de ligação que atuará em todos os campos semânticos do poema. Graças a esta interferência, este eu lírico – eu lírico do século XX – racionaliza o subjetivo, questiona, indaga, procura significar, de acordo com o que Greimas denomina como signo lingüístico complexo1, seu próprio labor poético.

Ainda, em relação ao referente pedra, observa-se, no terceiro verso da primeira estrofe, a palavra sob uma significação que difere dos sentidos conotativos anteriores. Neste verso, a expressão popular dormi como uma pedra ganha foros de irrealidade e passa a fazer parte de um universo singular, acessível somente a uma minoria privilegiada. Por intermédio de um ludismo semântico, o sujeito poético sintetiza o seu papel de Ser marginalizado, enquanto Criador, enquanto habitante de um espaço recôndito, em confronto com seu outro duplo social, vivenciador de um mundo limitado, no qual imperam regras e conceitos. É bom lembrar que, agora, estou posicionando-me como intérprete, ou seja, interpretando a mensagem poética; não há nada no poema que me autorize uma tal afirmativa, a não ser a sugestão extratexto da expressão dormi como uma pedra inserida no discurso poético, caracterizado por diversos graus de opacidade.

Dormi como uma pedra ou alguém veio
deixar os meus lençóis em desalinho?

Estes dois versos, seguidos da segunda estrofe do primeiro movimento, fazem parte de um submovimento, o qual não foi esquematizado, por não afetar a estrutura fundamental do poema. Por tal motivo, os questionamentos e indagações do sujeito da enunciação poética se encontram sintetizados numa única idéia, aventada pelo mesmo, quando este sugere a imagem de um eu em oscilação, meio de fora, supondo uma expressão complementar meio de dentro, idéia que me possibilita reafirmar o que foi destacado antes: o conteúdo do poema refere-se ao processo evolutivo da criação poética. Para se comprovar esta assertiva, há ainda a declaração do sujeito da enunciação poética, revelando a sua função de nomear, significando dar existência a, gerar, formar.

Quem foi que andou pisando a minha vida
e me deixou assim meio de fora,
oscilando em mim mesmo, na medida
em que nomeio o amor, aqui e agora.

Este questionamento reflete a problemática existencial dos líricos do século XX. Um outro grande poeta deste século, Carlos Drummond de Andrade, preocupou-se também com o problema. Em uma reflexão poética, no “Poema das sete faces”, poema de abertura do livro Alguma Poesia, ele se nomeia o próprio agente da enunciação: Quando nasci, um anjo torto / desses que vivem na sombra disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

Conseqüentemente, os anjos tortos (seres de um plano insólito, plano este que, no âmbito da literatura, se caracteriza como privilégio exclusivo dos escritores atuais, sejam eles ficcionistas ou poetas) fazem parte desse espaço recôndito (espaço livre, de tempo ou de lugar), acessível somente aos marcados pelo estigma da marginalidade. É bom lembrar que marginalidade, aqui, não se refere à Poesia marginal, enquanto marca registrada de um determinado fazer poético. Assim, se nada no poema induz a pensar em um alguém específico, que tivesse deixado o sujeito poético meio oscilante, a Semiologia do Texto Poético, atualmente, já permite uma explicação intertextual, apoiada nas escrituras de outros poetas, em que o analista busca no imaginário popular os mitos que estruturam o viver cotidiano da Humanidade, carente de um sentido mágico que a faça sobreviver.

E eis que, neste século XX, cada poeta intui o enredo amorfo que circunda sua esfera conceptual. Cada poeta, de acordo com sua própria sensibilidade, procura dar forma à Poesia que o faz oscilar entre esses dois espaços. Seria extrapolar limites estéticos, ou mesmo semiológicos, imaginar que o anjo torto, de Carlos Drummond de Andrade, seja a própria personificação da Poesia, como também o alguém deste poema de Gilberto Mendonça Teles? Evidentemente, não se trata de qualquer poesia; aqui se ressalta a Poesia que se integra em um espaço extra-razão, no qual os conceitos não podem reinar. A palavra torto, por exemplo, não possui uma conotação pejorativa no universo poético. Por este prisma, seria assim inconcebível pensar que o alguém, que tanto desconcerta o sujeito poético, deixando os seus lençóis em desalinho, seja a mesma Poesia que veio/vem, através dos séculos, na calada da noite, nas horas mortas, nos momentos de euforia ou de desilusão, nos sonhos, incomodar a existência desses seres assinalados, concebidos para vislumbrar além de suas fronteiras?

O Poeta (e aqui não o destacamos como sujeito poético ou mesmo como sujeito da enunciação poética), nestes versos, re-vela a sua condição de demiurgo, quando realça a sua capacidade para nomear o amor (ou seja, a própria Poesia), dinamicamente atemporal. No segundo movimento do poema, afirma que, no espaço em que se encontra nomeando o amor, nomeia a musa que existia / no chão do nome e no colchão da fala. Assim, Amor e Musa fundem-se, transformam-se em uma única essência: a Poesia. Pelo prisma da interpretação, alicerçada firmemente na sensibilidade erótica do Poeta, a poesia é a amante perfeita, aquela que o satisfaz plenamente, aquela que o leva aos mais altos estágios do gozo e que, solícita, compreende seus mínimos desejos, deixando seus lençóis em desalinho. De acordo com o que nos passa o Poeta, agora, indivíduo, único dono de seu engenho poético, a poesia é a personificação de um ser incorpóreo, habitante de um universo oculto, espiritual, mas, passível de se materializar, por intermédio dos sonhos, adquirindo forma feminina em contatos eróticos com os homens, e forma masculina, com as mulheres. No universo mágico-substancial, estes seres possuem nomes especiais: súcubos, os que possuem formas femininas, e íncubos, formas masculinas. A própria Bíblia – a Bíblia é um repositório das mais diversas formas literárias – alude a essas personagens, presenças permanentes nas literaturas de todos os tempos.

Quando os homens começaram a multiplicar-se sobre a terra, e lhes nasceram filhos, os filhos de Deus viram que as filhas dos homens eram belas, e escolheram esposas entre elas. (Gên. 6, 1-4)

Os livros apócrifos falam de Anjos guerreiros que, saindo do plano mítico, ficavam encantados com as mulheres terrenas, falam, inclusive, de contatos sexuais. Retomo aqui os mitos e lendas, porque o próprio indivíduo poético induz-me a tal raciocínio. Seus poemas, geralmente, fazem alusão ao imenso caudal mítico, estruturador de todas as civilizações, faz alusão à quota de lenda em conta-gotas (p. 86, op. cit.) que fortalece o cotidiano de quem quer que seja.

Como forma de esclarecimento ao meu público-alvo (alunos da Formação Secundária e de Graduação em Letras), por antecipação, afirmo que os poemas aqui analisados e interpretados não pertencem ao Gênero Épico, forma mais propícia à apreensão da matéria mítico/mística. Apenas, aludi ao assunto – mitos, lendas, trechos bíblicos – porque há nesses poemas de Gilberto, notadamente líricos, a presença incontestável dessa matéria. O poema A pedra remete, a quem o estiver lendo, instintivamente à Bíblia, seja o leitor um estudioso profundo do fenômeno poético, ou seja ele um simples curioso, um leitor casual, mas que entenda um pouco do assunto religião.

No princípio era a pedra e seu instante
de existência sem nome, realidade
carente de sintaxe e vacilante
no seu jeito de ser pela metade.

Como contraponto estritamente interpretativo, eis aqui alguns versículos do Antigo e do Novo Testamento que reforçam o que desejo explicitar.

No princípio, Deus criou os céus e a terra. A terra estava informe e vazia; as trevas cobriam o abismo e o Espírito de Deus pairava sobre as águas. Deus disse: “Faça-se a luz!” E a luz foi feita.

(Gên. 1, 1-3)

No princípio era o Verbo, e o Verbo estava junto de Deus e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio junto de Deus.

(João, 1, 1-2)

E o Verbo se fez carne e habitou entre nós.

(João, 14)

O evangelista João reafirma a idéia mítica da criação do mundo, contida no Antigo Testamento, para dar sustentação inconteste à condição mítica de Jesus Cristo, o Verbo (que) se fez carne e habitou entre nós; Aquele que no princípio era o Verbo e estava junto de Deus e era Deus; Aquele que saiu do espaço etéreo e conquistou uma existência terrena. Verbo como a palavra primeira e permanente; Verbo como a palavra substancial, segundo a Bíblia. Verbo, e agora está em pauta a poesia de Gilberto Mendonça Teles, como pedra primordial e seu instante / de existência sem nome, realidade / carente de sintaxe e vacilante / no seu jeito de ser pela metade. Pedra que reflete a ambigüidade só permitida aos que possuem caracteres sobrenaturais. Assim como o Verbo bíblico é a expressão de dois planos distintos, o divino e o material, esta pedra, no poema de Gilberto Teles, é a expressão referencial dos dois espaços ideológicos que compõem a realidade histórica: o sócio-substancial e o mítico-substancial. [Observação: Para evitar complexas argumentações teóricas, a palavra ideologia será substituída, neste estudo, pela palavra substancial].

Retomando a análise do poema, a primeira estrofe, do segundo movimento, remete a todas as hipóteses, reavaliadas acima, e mais ainda: a pedra, em seu momento inicial, como referente das coisas sem forma, ou seja, da Musa ainda velada, assim como é também referente do Amor, em seu estágio inicial, sem forma, ainda velado, do primeiro movimento. Por isto, unindo os dois movimentos iniciais, percebe-se a pedra como expressão da intuição do poeta, intuição como sentido sêmico da pedra, enquanto silêncio ainda não-manifestado. Aludindo a tudo que foi explorado até agora, esta pedra-poesia-não-manifestada representaria o divino que se encontra no espaço do não-dito, ou espaço infinito, ou espaço do silêncio, qualquer que seja a nomenclatura escolhida, um pouco alheio às codificações; representaria, assim, o Grande Silêncio, sem princípio e sem fim, mas, possuindo alguns planos passíveis de serem significados.

Em um momento/movimento, esta mesma pedra se transforma. Um ser especial, meio oscilante entre dois planos distintos, põe-se a trabalhar, lapidando-a, procurando dar-lhe a devida forma, retirando a camada de mistério que a recobre. No meio, na ante-sala, habita este lírico ser demiúrgico. No meio, encontra-se o sujeito da enunciação poética, elemento (indispensável) de ligação entre os campos semânticos do poema.

Pelo ponto de vista de Greimas,

É perfeitamente normal que o sujeito da enunciação poética esteja presente, de uma maneira ou de outra, no processo de produção do objeto poético, e nesse próprio objeto; é este até um dos critérios que permitem distinguir a literatura escrita da literatura oral. Todavia, o fato de ser característico da manifestação escrita já o priva de uma parte de sua espontaneidade criativa, de que se supõe seja ele refúgio.2

A importância de se conhecer as diretrizes semiológicas de abordagem do texto poético é por demais válida, pois estas impedem o analista de se desviar do assunto escolhido e desenvolver uma análise crítica distanciada da mensagem que o poeta quis transmitir. Aproveitado o fato de que a Semiologia atual, de Segunda Geração, já não se apoia em padrões rígidos, e permite uma extra-interpretação do texto, depois, evidentemente, de uma desmontagem, depois de um reconhecimento pertinente da essência contida no espaço visual da obra, procuraremos desenvolver um intercâmbio salutar entre o método cientificista (Semiologia) e a interpretação fenomenológica (Hermenêutica), em benefício da apreensão correta das camadas visíveis e invisíveis dos textos poéticos aqui ressaltados. Eis porque, quando os comentários se referem ao sujeito da enunciação poética, este é colocado ainda dentro dos moldes fenomenológicos, ou seja, pressupõe-se um espaço meio mágico, para ali o localizarmos. Em termos de apreciação crítica, não há como escapar de uma certa mitificação, quando o assunto é Arte, extensivo, conseqüentemente, ao Criador Literário, aquele escolhido por antecipação, possuidor do conhecimento do Indizível. Este eu, o qual é designado como sujeito da enunciação poética, de acordo com a nomenclatura textualista greimasiana, está inserido em um plano muito particular da criação poética. Este plano, ou espaço, situa-se como intermezzo, meio, ante-sala, e, nesta dimensão insólita, este eu expressaria a essência deífica que habita em todos os seres humanos, mas que, lamentavelmente, é apreendida somente por um especialíssimo grupo de sensitivos, os quais transformam as velhas imagens poéticas em imagens líricas, que, segundo Bachelard, vivem da vida da linguagem viva.3

No universo ambíguo da literatura, todo e qualquer ser humano tem acolhida. Nesse espaço, sentimo-nos “em casa”, pois, lendo e/ou escrevendo, somos, cada um de nós, o Adão de nosso próprio mundo, e nos sabemos capazes de inventar a vida. Assim, num ato de mágica, a literatura nos revela que todas as funções que se lhe atribuem reúnem-se, harmonicamente, em sua função nomeadora. Provocando o brilho do nome, ao despertar novos sentidos, a literatura (se) constrói (como) o universo possível do homem. A poderosos golpes de linguagem.4

Este acertado raciocínio de Ângela Fabiana refere-se ao poema “Golpe”, de Cláudio Leitão, comentando o poder da literatura, situada entre linguagem e língua, em sua função nomeadora. Nessa dimensão intermediária, todos os poetas do século XX se instalaram. No caso do poema A Pedra, o sujeito da enunciação inventa a vida, revela a Musa, revela o Amor, provoca o brilho do nome, por intermédio da transcrição poética, melhor dizendo, da poesia-forma, único meio de se nomear opacamente as coisas sem forma, único meio de se desvelar, no sentido de trazer à luz em toda a sua plenitude, a Poesia. Nesse estágio intermediário, este sujeito da enunciação confunde-se com o próprio Poeta, pois quem revela é o Poeta. Intuição e, posteriormente, significação – semas nucleares diferentes – se unem no texto escrito; e, este, mesmo já privado de uma parte de sua espontaneidade criativa5, em virtude de se separar do oral, não perde seu aspecto mágico. Se o sujeito da enunciação poética nomeia a Musa, o Amor, a Poesia, e, esclareço desde já, segundo os critérios deste estudo, estes termos se unificam (ou se completam) em uma só expressão, este sujeito nomeia, também, aquele que se encontra por trás dos bastidores, atuando incognitamente, revelando o espetáculo, inventando a vida, recriando mimeticamente a realidade, tendo como suporte referencial exíguos conceitos lingüísticos. Cabe a este Ser incógnito desenvolver novos conceitos, transgredir os códigos usuais6, criar uma linguagem própria que faça a Poesia-Silêncio ultrapassar o espaço restrito da língua, para dar brilho à Poesia-Silêncio Manifestado, quando esta for, realmente, a pedra preciosa sugerida pelo Poeta, e, cujo real valor, apenas alguns privilegiados estão aptos para detectar. Não é objetivo desta apreciação teórico-crítica exaltar a classe dos analistas, mas, decompondo o texto, ou melhor, de acordo com o próprio texto analisado, a pedra-referencial tripartida remete a este estágio de criação poética, no qual se detecta a pedra lapidada já como pedra preciosa. Assim, o ato de criação poética se revela como um processo evolutivo, em que, em princípio, há uma pedra ainda bruta, não lapidada. Posteriormente, graças a um trabalho de ourives, esta mesma pedra se transforma em pedra preciosa. Conseqüentemente, além da pedra, em suas três acepções, há a Poesia, enquanto sentimento difícil de ser verbalizado, vigorando no Espaço Absoluto da Arte.

No texto, enquanto transcrição, se projetam intuição e significação. Quando faço alusão a alguns conhecedores do fazer poético, estou apenas realçando o que me foi sugerido, metaforicamente, pelo próprio sujeito da enunciação, e que procuro apreender no último movimento do poema. Por enquanto, posso dizer que uma pedra preciosa só poderá ser avaliada por quem entende da função. Um leigo vislumbraria o brilho da pedra, mas não reconheceria o seu valor. As pedras coloridas, pertencentes às espécies inferiores, costumam apresentar também um certo brilho.

Quanto ao terceiro e último movimento, uma análise bem elaborada o apresentará como catalisador do processo de compreensão do poema.

No fim, tudo é princípio e o meio é meio
de alguém cavar no pó do pergaminho
um sentido final, talvez um veio
na pedra que nomeia o meu caminho.

Este último movimento atua como catalisador do processo de compreensão do poema, porque o sujeito da enunciação desenvolve um discurso lúdico e informa que no fim, tudo é princípio. Ele desenvolveu um pensamento circular no intuito de alertar seus leitores para a importância da compreensão do sentido final de seu texto poético, ou mesmo de qualquer texto poético que apresente um alto grau de opacidade. O semema fim, que constrói o referente pedra preciosa, além de remeter à idéia própria da palavra, oferece também outras possibilidades de interpretação. Em um primeiro momento, no fim aproxima-se de algumas expressões populares, significando afinal, ou para finalizar, ou de qualquer maneira, etc. No fim, tudo é princípio: depois da criação, principia-se um novo ciclo. Fez-se luz. Um eu especial significou uma parte do imponderável que se encontrava soterrado sob toneladas de pó.7 Um eu especial lapidou, retirou as crostas que embaçavam o brilho da pedra, e revelou (no sentido de trazer à luz e novamente velar) a pedra preciosa e seu brilho que escurece a visão. Este eu sabe que a linguagem poética transcende as imposições lingüísticas – sócio-substanciais – da realidade vital.

Assinalei, no parágrafo anterior, que o terceiro movimento atua como catalisador do processo de compreensão do poema e afirmo que foi este movimento que orientou-me quanto à idéia da tripartição do referente pedra. Duas expressões fizeram-me pensar no fazer poético como um bloco granítico precioso necessitando de ser lapidado: cavar no pó do pergaminho, o qual remeteu-me ao ato de escavar uma mina de pedras preciosas, e (cavar) talvez um veio na pedra, outra expressão que oferece, também, a mesma idéia. Veio na pedra é também outra expressão que, por exemplo, lembra o brilho do diamante, ainda incrustado na pedra comum.

Ao reler a estrofe com atenção, constata-se que, depois da revelação, o Mistério permanece. A pedra transforma-se em pedra preciosa apenas para aquele que se posiciona como lapidador. A pedra lapidada – o texto transcrito – transmuta-se novamente em pedra bruta, e se alguém desejar decodificar o que foi codificado poeticamente, terá de desenvolver o mesmo processo de lapidação. O eterno recomeçar cíclico. No fim, tudo é princípio e o meio é meio / de alguém cavar no pó do pergaminho/ um sentido final. Alguém manuseará o texto e este se revelará como um bloco de pedra em estado primitivo. Este alguém procurará cavar no pó do pergaminho até encontrar um sentido final, um veio que demonstrará a preciosidade que se encontra inserida nas entrelinhas do texto poético. Entretanto, para este alguém, há também outros meios para se alcançar o entendimento do texto. Há de escolher-se um que esteja de acordo com as ambições do mesmo. Aquele que estiver predisposto a descobrir os segredos da mina de pedras preciosas poderá, por exemplo, começar a cavar, iniciando-se pela intuição do que já fora intuído anteriormente pelo eu do enunciado, ou começar pela significação, vislumbrando o texto em todo o seu brilho e retornar, gradativamente, até recuperar o seu princípio como pedra bruta. Por último, há a possibilidade de encontrar o caminho já desobstruído por outros e começar a penetrar, no texto, por intermédio do sentido final. Este é o meio mais fácil. No fim, tudo é princípio: não importa o estágio de evolução do fazer poético, o certo, o concreto, é que há uma pedra no meio do caminho e Anjos tortos deixando alguns lençóis em desalinho.


2.2 - Análise do poema “&Cone de sombras”

Um ícone de sombras e penumbras
está a teu alcance algum momento
como um sinal, uma dicção, alguma
forma que ainda vai acontecendo.

Um cone apenas restará: o espaço
reticente do amor com sua força
silensual: seus tropos, seus acasos,
sua quota de lenda em conta-gota.

Também a conexão de alguns requintes,
de sugestão na meia-luz contrária:
alguns raros meandros e melindres,
a leitura do verso da medalha.

Se um eclipse anular teu privilégio
de percepção da imagem retorcida,
é que no fundo a taxa de mistério
continua por dentro, na saliva,

no resmungo da língua e na viagem
que em si mesma se faz, mas sem caminho,
sem margens de sentido – pura praxe,
simples figuração do descontínuo.

No poema anterior, o sujeito da enunciação, utilizando-se de jogos de palavras, usando um só referente pluri-ambíguo, demonstra o esforço do lapidador para significar o indizível e, posteriormente, o trabalho que terá de ser realizado, se um possível alguém resolver decodificar o já manifestado, mas que continua ainda sob uma estrutura hermética. Em “A Pedra”, o sujeito da enunciação não está indicando caminhos, apenas constata as dificuldades iniciais do obreiro, sua condição de intermediário entre dois espaços – intuição (extratexto) e significação (texto) – e revela algumas formas de como se penetrar no espaço do texto.

Em “&Cone de sombras” (p. 86, op. cit.), o sujeito da enunciação está camuflado, esconde-se atrás de um pressuposto orientador de caminhos. Isto se dá em virtude de a mensagem se estruturar no já textualizado. O trabalho de lapidação da pedra – as fases pré-textuais – não aparece.

Um ícone de sombras e penumbras
está a teu alcance algum momento
como um sinal, uma dicção, alguma
forma que ainda vai acontecendo.

Um cone apenas restará: o espaço
reticente do amor com sua força
silensual: seus tropos, seus acasos,
sua quota de lenda em conta-gota.

A exemplo do outro poema analisado, e seguindo a orientação da semiologia do texto poético, este poema também foi dividido em movimentos, para que seus campos semânticos se tornassem visíveis. De acordo com a ótica da Semiologia Literária de Segunda Geração, as duas estrofes acima representam o primeiro movimento, primeiro passo para o esclarecimento da linguagem poética, plurissignificativa e transgressora. Um segundo movimento se situa na terceira estrofe. Detecta-se um terceiro movimento, que começa na quarta estrofe e termina na expressão sem margens de sentido, situada no terceiro verso da quinta estrofe. O sinal de travessão, contido neste terceiro verso da quinta estrofe, oferece margens de sentido, que remetem a um quarto movimento, o qual é a síntese da mensagem contida no texto poético.

Para esclarecer melhor, reporto-me ao primeiro movimento. Em princípio, sei apenas que um ícone de sombras e penumbras está ao alcance de um tu hipotético. Segundo Greimas, nenhum texto poético autoriza o leitor a ressaltar um destinatário específico em comunicação com o remetente. Assim, abandono temporariamente minhas prováveis interpretações extratexto e passo à decodificação do próprio texto poético enquanto camada visível. Submetida às regras da semiologia – regras altamente cientificistas – encontro um primeiro referente: ÍCONE; este referente conforma o indizível, o não-dito ou qualquer outra denominação que se queira dar ao plano amorfo do Silêncio, enquanto espaço ainda não conceituado. Assim, resguardada pelo referente ÍCONE, posso dizer que uma imagem de sombras e penumbras – uma parte do mistério passível de ser decodificado – encontra-se à disposição de quem quiser desenvolver um trabalho de pesquisa e empreender a busca, para descobrir o que se oculta no espaço reticente do amor com sua força silensual. É suficiente que este alguém saiba apreender o momento certo, observar os sinais, decodificar as mínimas unidades significativas, transcender a imagem em concretude até a desvelação do que foi, antes, manifestado hermeticamente.

Um cone apenas restará. Neste primeiro verso da segunda estrofe, apreendo um outro referente, CONE, sugerindo-me a imagem do já manifestado, reunindo, ao mesmo tempo, todo o processo da manifestação. É o referente CONE o somatório de duas forças que se completam e se repelem, ou seja, além de sua própria força, enquanto espaço visível, instala-se nele, também, o mistério do ÍCONE, espaço invisível repleto de sombras e penumbras. ÍCONE e CONE: sombra e luz se unem para significar alguns planos, passíveis de decodificação, inseridos no indizível espaço do Mistério Eterno. O CONE poderá ser visto, também, como recurso de imagem para explicar o processo de filtragem de racionalização do Mundo do Silêncio.

Um cone apenas restará: o espaço
reticente do amor com sua força
silensual: seus tropos, seus acasos,
sua quota de lenda em conta-gota.

O referente CONE simboliza o próprio objeto poético, enquanto expressão da Linguagem; simboliza o entrelaçamento das diversas camadas que o compõem (visíveis e invisíveis); simboliza a própria manifestação do Amor (= Poesia-Silêncio ou Linguagem primordial) com sua força silensual (silenciosa e sensual?). Este espaço reticente qualifica o amor; é reticente porque necessita sofrer atos de preenchimentos, complementações, unificações; é reticente porque necessita de uma percepção transcendental que saiba captar as sugestões que se acham reveladas nas entrelinhas do espaço desvelado. Assim, CONE como espaço destinado ao Amor (invólucro da linguagem enquanto ato de amor), porque só o Amor preenche este vazio, esta carência; só o Amor, com sua força silensual, propiciará uma futura revelação.

Como detectar essa revelação?

O CONE, como já foi dito anteriormente, sintetiza os dois campos semânticos do texto poético: o velado e o desvelado, caracterizados esquematicamente como semas isotópicos, de acordo com a orientação dos postulados greimasianos. Deste modo, para facilitar minha interpretação, depois da análise semiológica rigorosamente cientificista, e, assim, propiciar futuros estudos intertextuais, dividi o plano do CONE em dois sub-segmentos (não detectados no desenho esquemático) e os classifiquei como CONE NEGATIVO, refletor do ÍCONE NEGATIVO, espaço invisível que se esconde no CONE POSITIVO, símbolo do espaço visível do texto poético.

Antes de continuar com minhas considerações, quero esclarecer que os símbolos matemáticos positivo (+) e negativo (-), usados nesta pesquisa, não se prendem a nenhum raciocínio teórico já reconhecido e que tivesse se utilizado também de símbolos semelhantes, dentro de outros conceitos interpretativos. Apenas, reconheço o ÍCONE NEGATIVO, inserido no texto de Gilberto Teles, como o negativo de uma face do ÍCONE POSITIVO, realidade absoluta incapaz de ser decodificada em sua totalidade. O CONE NEGATIVO e o CONE POSITIVO refletem, neste poema, o ato de revelação da fotografia, uma vez que, sob a aparência da fotografia, subjaz o negativo. O CONE POSITIVO, por meio deste raciocínio, revela a face recopiada do ÍCONE POSITIVO. Reafirmando tudo o que já foi dito, o CONE se mostra como referente nuclear, em que forças antagônicas e, ao mesmo tempo, harmônicas se unem, propiciando uma luminosidade que poucos conseguem vislumbrar: Um cone apenas restará: (...) seus tropos, seus acasos, sua quota de lenda em conta-gota.

Depois da manifestação do Amor – manifestação da Poesia-Linguagem como ato de amor – torna-se mais fácil perceber o CONE POSITIVO – camada visível – e, a partir dele, ultrapassar as fronteiras até atingir o que foi apenas sugerido e se encontra invisível. Este é o plano do poema em que se vislumbra a criação poética em toda a sua grandeza. Neste plano mimético situa-se o amor com sua força silensual. Para decodificá-lo, recorri a indícios significativos que fazem parte do imaginário-em-aberto do ser humano, qualquer que seja o seu grau de conhecimento: científico, filosófico, religioso ou artístico. Neste caso, a interpretação extratexto se faz necessária, e todos os conhecimentos se unem em benefício da apreensão correta da mensagem poética. A semiologia do texto poético se vale de uma análise fechada, cientificista, que impede um olhar além do texto visível. E aqui se instaura o impasse. A análise é altamente importante para a decodificação do texto literário, mas o estudioso necessita de uma maior abrangência teórico-crítica. Não considero uma atitude inviável a união pacífica dos dois grandes grupos críticos que comandam os estudos da Literatura neste final de Milênio.

Resguardada pela minha própria compreensão do texto, depois da análise semiológica, passo agora a observar as palavras e expressões do poema por um novo prisma, certa de que há uma pluralidade de sentidos subjacentes nas mesmas. Inicialmente, procurei compreender as gradações imagísticas (imagens fragmentadas, imagens menores, imagens maiores, imagens complementares), todos os tropos somados aos acasos (combinações, idéias inesperadas, conexões, intuições). Acasos também simbolizando os vários caminhos que levam à manifestação do amor: caminhos que se encontram, que se combinam, que se multiplicam, que se prolongam, que se perpetuam, etc. Alargando meu campo de percepção, mentalizo no espaço do CONE, além dos tropos e acasos, uma quota de lenda em conta-gotas, ou seja, as gotas de lenda que compõem o imaginário de cada ser humano. O sujeito da enunciação deixa a cargo do leitor o ato de repensar as lendas, porque no CONE, plano semântico nuclear de seu poema, há apenas sugestões. As lendas fazem parte do inconsciente coletivo; todos têm conhecimento delas, em maior ou menor grau; por isto, na intuição do Artista, elas vêm em conta-gotas. O pressuposto analista necessitará de sua própria compreensão, de todos os conhecimentos adquiridos por meio de indispensáveis leituras para decodificar/interpretar o CONE.

Reportando-me novamente à Semiologia de Segunda Geração, melhor dizendo, ao esquema do primeiro movimento, detecto ÍCONE e CONE como referentes que propiciam a manifestação da linguagem e alguns sememas que definem cada referente. Os sememas que constróem o referente ÍCONE, neste primeiro movimento, são as palavras e expressões: sombras, penumbras, um sinal, uma dicção, todas simbolizando uma única idéia, uma espécie de síntese do próprio referente: forma que ainda vai acontecendo, mistério passível de ser revelado, mas, por enquanto, velado. Velado: sema nuclear do referente ÍCONE.

Os sememas que compõem o referente CONE são as expressões: seus tropos, seus acasos, sua quota de lenda em conta-gotas, também exprimindo, numa única idéia-síntese, o espaço reticente do amor com sua força silensual. No âmbito do CONE, o mistério já foi desvelado. Desvelado é o sema nuclear do referente CONE.

Sintetizando este primeiro movimento, posso dizer que existem dois espaços semânticos compondo a manifestação do amor, ou seja, a manifestação da Poesia, ou do próprio Amor em todas as suas gradações possíveis, ou, até mesmo, da essência da Vida, ou, quem sabe?, do Infinito, do Abstrato, do Atemporal. Este dois espaços, o velado e o desvelado, compõem a Vida, compõem a obra de um Poeta. Estes dois espaços, interligados, estão à disposição de quem quiser penetrar no texto e tentar decodificar, para posteriormente compreender, o que se encontra VELADO, mas latente nas entrelinhas.

No segundo movimento, o sujeito da enunciação esclarece muito mais. Além do velado e do desvelado, há mais um dado importante compondo o todo do texto poético: não basta apenas desvelar o que antes estava velado, há a necessidade de re-velar, trazer à luz as idéias que estavam veladas e que poderiam continuar ocultas após a desvelação. Revelar é muito mais do que simplesmente desvelar, revelar é mostrar os caminhos difíceis que o poeta necessitou percorrer para que, finalmente, pudesse manifestar o Amor em toda a sua plenitude. É ele que afirma: Há um ícone de sombras e penumbras, há um cone que é o espaço reticente do amor, mas há uma CONEXÃO, unindo ÍCONE e CONE. CONEXÃO, neste segundo movimento, traduz mais um referente. Os sememas que compõem este novo referente são: alguns requintes, sugestão na meia-luz contrária. O sema isotópico será, naturalmente, o termo RE-VELADO.

Esta CONEXÃO, portanto, referenciando a união, a junção, o fortalecimento pelas bases; informando semiologicamente a força que atuará unindo os campos semânticos. O Poeta, no início, antes de passar a palavra ao sujeito da enunciação, seu alter ego no Espaço da Poesia, possui apenas uma forte intuição. Ao começar sua obra, parte de um espaço velado e começa a desenvolver o processo de manifestação do que foi intuído (ele afirma que é a manifestação do amor) até chegar ao desvelado. Há um estímulo de imagens ao acaso (o que na fenomenologia bachelardiana é reconhecido como “repouso ativado”) e o Poeta não tem controle nesses estímulos, nessas combinações, apenas procura dar forma a esta intuição. Assim, ele se vale de alguns requintes, de algumas sugestões na meia-luz contrária, para que haja, posteriormente, a RE-VELAÇÃO. Para que ocorra uma autêntica revelação, procura controlar seus impulsos poéticos, valendo-se de seus conhecimentos. Não que este controle seja uma condição sine qua non para se revelar o Amor. Ele mesmo diz: Também a conexão de alguns requintes (...). Também poderá ser condição, ou sugestão. Poderá oferecer a idéia de acréscimo, de continuidade, poderá ser, ou não ser, supérfluo. Na verdade, não é e não será uma condição essencial.

Observe-se este semema: sugestão na meia-luz contrária. As palavras que compõem o semema transmitem a idéia de opacidade. Por meio do confronto, da oposição, do questionamento, dos obstáculos enxerga-se mais, chega-se ao que se quer sugerir. E eis o ÍCONE camuflando alguns raros meandros e melindres; alguns raros caminhos de uma região afastada, isolada, inacessível; alguns raros caminhos do Grande Mistério (e o Mistério, na obra de Gilberto Mendonça Teles, se configura como uma estrutura isotópica, o Grande Sema Isotópico), aquilo que é denominado como ÍCONE POSITIVO e que poderia se chamar, também, MUNDO DO SILÊNCIO. O sujeito da enunciação afirma que, nessa região inacessível, há caminhos; há brechas; há mágoas (melindres). Ele percorreu esses caminhos, vislumbrou as brechas, sofreu mágoas até atingir o ponto fraco (ou forte) de si mesmo; até alcançar a essência, o interior da própria alma. Toda esta caminhada não revela o ÍCONE POSITIVO em toda a sua grandeza, mas possibilita revelar uma parte do ÍCONE NEGATIVO. O seu processo de manifestação do Amor se verá refletido em um pequenino CONE, a leitura do verso da medalha. Conseqüentemente, um cone apenas restará. Cabe a você (um tu hipotético) deslindar o mistério do ÍCONE NEGATIVO que se projeta no CONE.

No terceiro movimento, o sujeito da enunciação vislumbra a possibilidade da obra não ser devidamente decodificada.

Se um eclipse anular teu privilégio
de percepção da imagem retorcida,
é que no fundo a taxa de mistério
continua por dentro, na saliva,
no resmungo da língua e na viagem
que em si mesma se faz, mas sem caminho,
sem margens de sentido (...)

Eclipse, nas Ciências Exatas, transmite a idéia de obstrução. Imagina-se que, para o Poeta, a idéia seja semelhante. Eclipse, nesta acepção, como obstrução do entendimento. Cada palavra possuindo plurissignificações e possibilitando inúmeras interpretações. Será que o analista conseguirá compreender a mensagem contida nas entrelinhas do texto? Se um eclipse anular teu privilégio de percepção. Atente-se para o jogo de idéias entre o Poeta e o Leitor: eclipse anular / eclipse lunar. A palavra anular (por enquanto, rejeita-se o seu valor verbal) oferece a idéia de anel, ou seja, rodear o texto e não entendê-lo. Anular, em sua conotação verbal, aponta para algo como apagar o entendimento. Aceitando-se o ludismo do Poeta, vislumbrar-se-á um eclipse lunar (inexistente no texto), transmitindo a idéia de obscuridade: a lua e o sol propiciando o eclipse. Isto realça a idéia de que nem sempre o leitor (crítico) poderá alcançar a mensagem que se encontra inserida nas entrelinhas de um texto poético. A linguagem da poesia lírica é naturalmente opaca, ambígua, possibilitando inúmeras interpretações. É uma linguagem que, apesar de revelar algo (não no sentido de esclarecer totalmente, mas no sentido de vir ao mundo dos conceitos camuflada), não consegue revelar o Grande Mistério da Criação Literária em sua totalidade.

O quarto e último movimento do poema &Cone de sombras sintetiza todo o conteúdo da mensagem. A linguagem poética também faz parte do mundo dos conceitos já sacralizados; possui inclusive suas próprias regras. As palavras (conceituais) são insuficientes para significar o Mundo do Silêncio. O Poeta sabe que está limitado, pelo fato de necessitar da linguagem (das palavras e dos sinais) para dar forma ao Mistério que só ele vislumbrou. Assim, tem muita razão quando nos diz que a taxa de mistério continua por dentro, na saliva, no resmungo da língua. Se um eclipse anular o privilégio de entendimento do leitor, seja ele um principiante ou um grande estudioso do texto poético, é porque o mistério é muito grande e o texto é pura praxis, simples figuração do descontínuo.

&Cone de sombras, pela ótica da interpretação (compreensão das entrelinhas do texto), simboliza a fórmula poética encontrada por Gilberto, para demonstrar os caminhos percorridos ao longo de sua atuação como revelador da Poesia que vigora no espaço amorfo do Silêncio. Esses caminhos, aparentemente inóspitos, propiciam a manifestação do amor, mas se encontram à deriva nesse mesmo espaço descontínuo. Cabe ao intérprete, muito mais que ao analista, refazer a trajetória do Poeta, valendo-se do próprio texto interpretado, para que possa ter o privilégio de entender o mistério que se encontra por dentro, na saliva, no resmungo da língua.


2.3 - Análise do poema “Percepção”

O mundo te rodeia de cercas e desejos,
te comprime no refúgio de teu quarto
e te restringe à lâmina das coisas
no seu fino acontecer.

Todavia, o amor é para toda a vida,
é para sempre e um dia e mais talvez:
o amor te prende às palavras e te liberta
na invenção de alguns códigos e silêncios.

É possível que a tua cota de realidade
seja agora por demais excessiva
e apenas te deixe perceber os possíveis
de outros planos e subversões.

Vê como as cortinas disfarçam o teu olhar,
como as ruas se enrodilham aos teus pés
e como algumas veredas vão desaparecendo
nos teus desertos e viagens.

Que seria de ti sem os teus espelhos?
sem a jarra-de-flores que guarnece
o espaço dessa mesa de pernas para o ar,
com velhas catacreses da gaveta?

É para ti que as águas vão polindo
os sentidos desse único sentido
ainda vulnerável, mas perdido na cena,
no espetáculo obsceno de ti mesmo.

Nos versos do poema “Percepção”, do livro Plural de nuvens (p. 38, op. cit.), o sujeito da enunciação assinala o fato de que o ser humano vive, no mundo, rodeado de cercas e desejos. Em uma análise cientificista, como é o caso da Semiologia do Texto Literário, não há como desenvolver um estudo que explique realmente as significações dos referentes cercas e desejos que compõem a idéia de mundo vital. A análise privilegia apenas um estudo objetivo das camadas visíveis do texto (por meio de esquemas e dissecações, não se incomodando em absoluto com a camada plurissignificativa, reveladora das mensagens ocultas), as quais só serão apreendidas por intermédio de uma interpretação extra-texto. Neste caso, resguardada pela interpretação fenomenológica, procuro descobrir os diversos sentidos dos referentes em questão. E eis que percebo o Mundo, graças a sensibilidade do Poeta goiano, como um lugar opressivo, repleto de cercas e desejos. Detenho-me para pensar nos inúmeros significados, denotativos e conotativos, das palavras cercas e desejos, já ostentando, ambas, um certo grau de multiplicidade, graças a pluralização que as engrandece. Cercas e desejos fazem parte do cotidiano do homem. Cercas ideológicas, diretrizes de vida que impedem o ser humano de direcionar seu próprio destino. Desejos que não se realizam, porque há forças poderosas contrárias à realização. Cercas e desejos submetendo o homem a um mundo de aparências, desviando-o de seus anseios mais puros. E eis o que o Poeta quer revelar: preso numa armadilha de conceitos, o ser humano não consegue vislumbrar o Amor, o Absoluto e a essência da Poesia, perceptíveis apenas para uns poucos eleitos. O poema é uma crítica; é a certeza de que há a necessidade de um eu consciente para fazer com que o outro desperte. Há a necessidade de despertar a atenção daqueles que estão confinados em um espaço fechado, no qual imperam normas ideológicas cegas e intransigentes. E ele aponta a solução: há que se transcender os limites substanciais e buscar o que se encontra por trás da cortina. Atrás da cortina, ou seja, no lado oculto do poema está o único sentido, ainda vulnerável, ainda na sombra, mas passível de ser decodificado, de ser visível.

Seguindo as normas da Semiologia de Segunda Geração, o poema pode ser dividido em três movimentos. A primeira estrofe de quatro versos e os quatro versos iniciais da segunda estrofe de oito versos assinalam o primeiro movimento. O segundo movimento é formado pelos quatro versos finais da segunda estrofe de oito versos. O terceiro movimento e último encontra-se representado nos versos finais, desde vê como as cortinas disfarçam o teu olhar. Os referentes serão caracterizados aqui como MUNDO IDEOLÓGICO, representando o ESPAÇO CONCEITUAL, o qual por sua vez será nesta análise especificamente reconhecido como sema isotópico. Um segundo referente constrói a realidade expressa de um tu hipotético ilhado em seu quarto. O sema isotópico que dá sentido a esta realidade objetiva será representado como o ESPAÇO INDIVIDUAL desse tu, rodeado de cercas e desejos.

O sujeito da enunciação afirma que atrás da cortina está o único sentido passível de ser decodificado. A cortina simboliza os conceitos, os desejos, os sentidos, tudo o que está à volta do ser humano e o comprime e o impede de visualizar o Amor. E a palavra Amor, aqui, terá de ser entendida como um referente realçador da própria Poesia.

Há no poema um significativo aviso: Vê como as cortinas disfarçam o teu olhar, / como as ruas se enrodilham aos teus pés / e como algumas veredas vão desaparecendo / nos teus desertos e viagens. Essas ruas ainda não se encontram ao alcance da terceira visão que as tornará amplas e retas. As ruas se embaraçam nos pés, pois são caminhos já conhecidos, cristalizados, conceituados; não há a necessidade de uma percepção que ultrapasse os obstáculos e que permita visualizar o não-conhecido. Numa situação nova, estamos presos a velhos conceitos que nos impedem de raciocinar adequadamente e ultrapassar novos limites e novas ruas; novos caminhos, novas veredas desaparecem porque estamos presos aos costumes, às cercas e desejos; estamos ligados a um mundo aparentemente organizado, que nos traça os caminhos, que nos limita. Limitados a conceitos pré-estabelecidos, excessivamente repletos dos dogmas que imperam à nossa volta, adquirimos posicionamentos superficiais, insuficientes para nos fazer perceber que há uma supra-realidade que vige no tempo e no espaço, que pode ser captada por vários ângulos, mas que, em virtude de sua grandeza, jamais poderá ser abarcada em sua totalidade. Repletos de velhos conceitos superficiais, que nos impedem de abrir novos caminhos, nosso interior torna-se um deserto; há o medo de uma incursão/excursão que nos permita desbravar o não-conhecido.

Que seria de ti sem os teus espelhos?, indaga-nos o Poeta.

Subentende-se, neste verso, uma crítica aos leitores lineares, uma chamada de plena atenção extratexto (jamais realçarei a suposição de um tom irônico). Que seria de nós sem as nossas máscaras? Que seria de nós sem as aparências, sem as coisas palpáveis que nos fazem sentir falsamente seguros? Que seria de nós sem a certeza de que há velhos dogmas para nos direcionar nesse mundo atribulado de final de milênio; sem as cercas conceituais; sem as velhas catacreses da gaveta; sem os nossos limites?

Uma percepção desbloqueada possibilita-nos uma maior amplitude de visão, faz-nos descobrir novas veredas, novos cursos de água que polirão os sentidos momentaneamente adormecidos pelos pré-conceitos. Uma percepção desbloqueada ajuda-nos a alcançar outros planos, outras versões que subjazem nos domínios do absoluto. Enquanto passíveis de serem detectados, estes planos são vulneráveis. Ainda não estão definidos, mas serão conceituados a posteriori. Por enquanto, encontram-se perdidos na cena, ou seja, são sombras que atuam por detrás das cortinas. De certa forma, esses planos, esses sentidos, retratam as várias etapas de transição por que passam as nossas tentativas de desbloqueio; representam o conflito entre os conceitos e o sentido (único sentido) de absoluto que habitam em nosso interior. Ao desdobrarmos novos sentidos, vamos retirando, uma por uma, as peças do vestuário que recobre a nossa nudez. Isto eqüivale ao despojamento dos velhos conceitos, e o desnudamento é chocante, obsceno. O obsceno não é o ato de desnudar-se completamente, é o espaço de transição entre o todo coberto (total ignorância) e o todo nu (lucidez permanente). Apenas não alcançamos esta lucidez permanente porque sempre criaremos novas roupagens, novos conceitos, revestindo assim nossa insegurança. Para o Poeta, vale mais o espetáculo obsceno do desnudar-se. O que importa é caminhar, colher florzinhas, espiar os ditos e os não ditos (p. 8, op. cit.), alcançar o mais recôndito de nosso interior, ver a nossa verdade, mesmo que isto seja um ato obsceno. Afinal, critica o poeta, alertando-nos quanto à nossa insegurança existencial: Que seria de nós sem as vestes cotidianas?

Todavia, o amor é para toda a vida,
é para sempre e um dia e mais talvez:

O Amor, para o Poeta, é a plenitude de tudo, é a própria essência da vida. O Amor pode ser a Poesia, o próprio Amor e suas múltiplas manifestações; pode ser a Idéia, quando esta significar visão ampla; pode ser o Infinito, o Abstrato que não se conceitua, o Atemporal; pode ser o Absoluto, tema tão bem explorado por ele mesmo, em outro poema. O amor te prende às palavras e te liberta, o amor e seu caráter ambíguo, possibilitando diversas interpretações; o Amor que é senhor absoluto do espaço da liberdade. AMOR, POESIA, MUSA são palavras sinônimas no dicionário de Gilberto. Seu dever de honra é revelá-las num ato de amor.


2.4 - O Absoluto como última fronteira

O rio deste quarto não tem margens,
mas serve de limites. Não tem águas,
mas lava nossa sede. Não tem foz,
mas chega a seu destino antes de nós.

O rio deste quarto tem a graça
de correr para dentro: é pura mágoa,
fina sombra no leito sem lençol
modelando o remorso deste anzol.

O rio deste quarto só tem peixes
encantados, que nadam nas paredes
e atravessam meu sonho na mudez
das formas sem reflexo e nitidez.

O rio deste quarto não tem fundo
nem corre à superfície. Não tem dono
nem reparte seus bens. Mas pode mais
que a cicatriz no peito dos rivais.

O rio deste quarto tem meandros
e melindres. Seu nome vai passando
absoluto e plural, aluvião,
remanso de silêncio e solidão.

No poema Absoluto (p. 107), Gilberto procura significar este espaço recôndito e misterioso, onde se encontram latentes o Amor, a Poesia, os sentimentos indizíveis acessíveis a uns raríssimos privilegiados. Ele faz parte de um pequeno grupo de iniciados, capacitados para vislumbrarem além de suas fronteiras. No poema A Pedra, nos informava de sua condição meio oscilante, habitante de dois mundos ao mesmo tempo, e, assim, um Ser conflituado. Ao longo de seu poema, fez-nos conhecer a sua condição de lapidador de um material muito precioso. Em &Cone de sombras procurou significar o processo deste trabalho, o qual chamou de manifestação do amor; esta manifestação do amor significando o próprio texto poético, explicando melhor, o texto poético é caracterizado como CONE, junção de ÍCONE e CONE, uma simples figuração do descontínuo. Pensamos que descontínuo caracteriza, por sua vez, a idéia de ABSOLUTO. Posteriormente, Gilberto nos fez conhecer, por intermédio do sujeito de sua enunciação poética, as dificuldades para se decodificar o CONE, e mesmo o ÍCONE que subjaz no CONE. Para tal empresa, nos alertou para a necessidade de se possuir uma aguda PERCEPÇÃO. Os empecilhos são inúmeros; há cercas ideológicas impedindo o desbloqueio da visão. Só os poetas possuem este privilégio e ele é um deles. Ele já passou por todas as etapas e se encontra ilhado, em seu quarto, de onde vislumbra tudo, o mundo conceptual e o plano das idéias ainda não formalizadas, por meio de uma misteriosa tela, panorâmica e transcendental. Agora, ele se encontra confortavelmente instalado em um espaço sui generis, onde se desconhecem as exigências da realidade concreta. Não é um mundo irreal, mas também não é o mundo real. Este espaço singular é formado por uma IRREALIDADE OBJETIVA, conseqüentemente, não é um espaço não-palpável. O próprio sujeito da enunciação poética, submetido à consciência pura do Poeta, afirma que, em um quarto hipotético, há um rio, e que este rio não tem margens, mas serve de limites. O rio não tem água, não tem foz, não tem fundo, não corre à superfície, não tem dono, nem reparte seus bens; vários sememas que nos autorizam a pensar em um rio negativo (referente), levando-nos a um sema isotópico que caracterizaríamos como IRREALIDADE OBJETIVA.

Outra característica marcante desse rio, rio que se encontra em um quarto, é que, mesmo possuindo uma IRREALIDADE OBJETIVA estranhíssima, esse mesmo rio possui mais algumas características também muito estranhas, mas já classificadas dentro de um outro referente. Apesar de ser apenas um, esse rio é também positivo, assim, o referente rio é bipartido em positivo e negativo. Esse rio possui um sema isotópico que classificamos como IRREALIDADE OBJETIVA, mas possui também um outro sema que classificamos como REALIDADE SUBJETIVA. Como detectar a realidade subjetiva? Esse rio, apesar de não possuir margens, não ter águas, não ter foz, tem a graça de correr para dentro, possui sentimentos, porque é pura mágoa; sente remorsos, porque personifica os sentimentos interiores daquele que recebeu a incumbência de revelar os segredos do indizível. Esse rio, apesar de não ter águas, tem peixes encantados; mesmo aparentemente frágil, pode mais que a cicatriz no peito dos rivais. Esse rio nos faz lembrar do &Cone de sombras, essência do poético, porque possui meandros e melindres.

Esse rio, que se encontra situado em um quarto, mesmo sem águas, mata a nossa sede, mesmo sem foz, chega a seu destino antes de nós. Esse rio expressa a realidade de nossos sonhos, mais ainda, expressa a realidade do sonho do Poeta, porque, logo depois, ele deixa de lado o pronome nós, enquanto idéia de coletividade, usado no início, e revela-nos a sua condição de único dono desse espaço transcendental.

O rio deste quarto só tem peixes
encantados, que nadam nas paredes
e atravessam meu sonho na mudez
das formas sem reflexo e nitidez.

Esse rio não significa um rio qualquer, não expressa um referente ligado à realidade tangível. Está localizado no imaginário do poeta, onde se concentram cotas de lenda em conta-gota, em que se fundem a realidade e os sonhos retos do amanhecer.8 Esta IRREALIDADE OBJETIVA unida à REALIDADE SUBJETIVA formam um só plano semântico. As duas realidades servem de base para estruturar um sema isotópico maior, o qual denominamos de SUPRA-REALIDADE. O Absoluto vige nesse espaço supra-real. O Absoluto é o ÍCONE (POSITIVO) em toda a sua grandeza, é a própria essência do Amor, da Poesia, da Musa, seja qualquer denominação que possa revelá-lo na parte visível do pergaminho, no momento da intuição da Poesia.

DOCUMENTO

Pego um selo qualquer, uma estampilha
dessas de educação de antigamente,
e dou ao texto um cunho de vigília,
um estado de leitura permanente.

Mas falta-lhe um relógio de ambiente,
falta um jogo de escrita ou de mobília;
e o que se conta nunca está de frente,
tem sempre um jeito oblíquo, de armadilha.

Fosse um papel sem lado, e o meu papel
talvez se sustentasse no apelido,
nalgum nome que se abre como um delta,

como uma linha-d’água, um lado escuro,
um sinal para ser reconhecido
sem timbre e protocolo, no futuro.

Gilberto Mendonça Teles


2.5 – O lado oblíquo da linguagem poética de Gilberto Mendonça Teles

Deve-se considerar a linguagem escrita como uma realidade psíquica particular. O livro é permanente, está sob nossos olhos como um objeto. Ele nos fala com uma autoridade monótona que seu próprio autor não teria. Temos de ler o que está escrito. Para escrever, aliás, já o autor operou uma transposição.9

Os versos de Gilberto, a partir de sua terceira fase, denunciam a força de sua singular criação, intuída em seus momentos de repouso ativado, liberada pelo novo juízo oriundo do cogito(3) – consciência pura – e inscrita para sempre em seus textos oblíquos, reveladores de seu psiquismo escrito, como ensina Gaston Bachelard em sua Poética do Devaneio. Seu psiquismo vital complexo, distante das questões lineares, aliado ao psiquismo escrito, possibilitou o desenvolvimento de uma criatividade singular, fenômeno este que só ocorre em momentos de conturbadas transições históricas. Desde o início do século XX, limiar do terceiro milênio, momento de aceleração de acontecimentos apocalípticos, as ocorrências sócio-vitais desencontradas, fragmentadas, orientaram os partidários do Gênero Lírico para uma diferente forma de realização da poesia, já pré-anunciada no período do Simbolismo. Não será demais esclarecer que o desejo de liberdade criadora – diferente daquele reivindicado pelos românticos – já havia se manifestado nos poetas simbolistas, em suas tentativas de apreenderem o inefável, tentativas não consumadas por falta de permissão histórica. Também não será ilícito lembrar que os modernistas da primeira fase – assim como as inúmeras vanguardas do início do século XX – se beneficiaram, seguindo os passos dos simbolistas, descobrindo a chave mágica de Cruz e Sousa, por exemplo, aquela poderosa chave do céu, apta para abrir as portas do mistério.10

Se no início do movimento modernista – primeira fase – os intelectuais se rebelaram, repudiando os valores estéticos anteriores, proclamando total liberdade criadora, depois de 30, a literatura, ao procurar uma reordenação, se espalhou em várias vertentes (neo-naturalista, surrealista, intimista, etc.), cada uma construindo a sua própria forma, sob a aura criativa de diversos mestres. Assim, apesar da proclamação da liberdade criadora dos primeiros modernistas, recorrências de normas estéticas se instalaram nos meios intelectuais, procurando recuperar os velhos modelos, tão combatidos pela geração anterior. Mas, felizmente, alguns deles já haviam sido tocados pelos misteriosos anjos que vivem nas sombras e já estavam à procura da poesia11 em sua essência amorfa, ou então procurando a face perdida12 nos inúmeros espelhos que compõem o imaginário-em-aberto do ser humano, os quais simbolizam também, se pensarmos, submissos à crítica psicanalítica, o desatino do homem, nestas últimas décadas do Segundo Milênio (desatino, aqui, em seu correto sentido etimológico). Na segunda fase (década de 30), grandes poetas e ficcionistas se sobressaíram – Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes, Cecília Meireles, Graciliano Ramos e outros –, demonstrando claramente que, daquele momento em diante, predominaria mais o poder criativo do escritor e/ou poeta, do que propriamente as normas da estética literária em andamento.

Assim, nesta recuperação das últimas fases de nossa história literária, depois da geração de 30, geração que proclamou a predominância do estilo individual, com características individuais, surge o Grupo de 45, todos poetas, procurando restabelecer a unidade estético-poética, retomando conhecidas formas clássicas (o soneto, por exemplo), exigindo contenção e racionalidade no momento criador. Entre os que se engajaram na nova proposta, sobressaiu-se a individualidade criativa de João Cabral de Melo Neto. Nos grupos que surgiram nas décadas seguintes, o fenômeno se repetiu, realçando sempre a força criadora de um entre muitos.

Não foi sem razão que Gilberto Mendonça Teles, em seu poema “Geração”, se posicionou como um poeta solitário, individualizado. Sua trajetória poética iniciou-se nos anos 50, sob o aval dos poetas de 45, distanciado dos redutos intelectuais de seu próprio momento, com suas palavras de ordem. Desde o seu primeiro poema, apesar da afinidade com o ponto de vista estético-literário do Grupo, Gilberto desenvolveu sua criatividade com características particulares, diferentes. Assim, no segundo estágio, naquele seu singular e criativo exercício do fazer poético, ele se encontrava dividido: viu-se temporariamente preso a conflitos que, anteriormente, não faziam parte de sua atividade criativa, mas, posteriormente, intuiu a necessidade de se libertar dos dogmas que impediam a manifestação vigorosa de sua arte poética.

Este foi e continua sendo o segredo de sua lírica (seu segredo), que faz de sua Poesia, ainda hoje, matéria digna de ser preservada. Naquele momento – segundo estágio –, já vivenciando a sua meia-noite psíquica, onde germinam virtudes de origem13, ele caminhou solitário, entre os seguidores de fórmulas poéticas, entre palavras e páginas desertas (p. 392, op. cit.), construindo, experimentando, criando, individualizando-se. Suas experiências não se assemelhavam às experiências poéticas de seu momento histórico/estético; elas eram ímpares, porque existia a consciência de seu valor. Os modismos passariam, as estruturas vazias, também. [Quando aqui me refiro a estruturas poéticas vazias, alerto para o fato de que estas estruturas não fazem parte do Vazio Criador bachelardiano – ou dos ensinamentos filosóficos dos orientais: Vazio Criador Bashôniano – no qual fervilha o mais autêntico lirismo, aquele lugar de puro silêncio onde os grandes Poetas do Mundo foram buscar inspiração]. Assim, mesmo atualizando-se, mesmo aderindo-se às normas estéticas vigentes na década de cinqüenta, sua estrutura poética da segunda fase não se manifestou vazia, isto é, preocupada apenas com a forma enquanto camada visível, ao contrário, mostrou-se replena de sintaxe invisível, apenas visível para aqueles que conhecem misteriosos lagos subterrâneos. Enquanto criador do século XX, simulou fazer parte dos novos modismos, mas consciente de que estava só, ou por outra, ainda se sentia sentimentalmente ligado aos grandes líricos da História da Literatura Universal, aqueles que o motivaram a desvendar os segredos do imponderável. Não foi em vão que afirmou em um de seus poemas, em dois segmentos:


GERAÇÃO

I

Sou um poeta só, sem geração,
que chegou tarde à gare modernista
e entrou num trem qualquer, na contramão,
e vai seguindo sem sair da pista.

A de quarenta e cinco me tutela,
me trata como a um filho natural.
Eu chego às vezes tímido à janela
mas vou brincar no fundo do quintal.

Na poesia concreta, a retaguarda
é que me vê brincando de arlequim.
Às vezes fujo à rima e lavo um fardo
de roupas sujas, não tão sujo assim...

A de sessenta e um foi de proveta,
foi mágica de circo para um só.
Ninguém me viu caçando borboleta
ou pescando escondido o meu lobó.

Quem fez letra, cantou e usou bodoque
quem se fez marginal pela cidade,
será que fez poesia ou fez xerox
ou apenas tropicou na liberdade?


II

Eu sei, minha Maria, que o verão
já vai passando trêmulo nos dias.
E sei que é muito bom ter geração,
“que as glórias que vêm tarde já vêm frias”.

Melhor, muito melhor, é ter sossego,
não saber nada sobre bem-te-vis,
mas usar o radar (como um morcego)
e abrir as asas, pesquisar os xis,

ler os gênios antigos, ler os novos
(Bandeira e Cassiano, ler Cabral,
ler Mário, ler Drummond) e juntar ovos
de ouro para um estilo nacional.

O mais simples e sóbrio, o mais exato
no prazer de fazer como convém
na mistura que agrada e no formato
de meu próprio fermento e querer-bem.

E servir – prato-feito ou à la carte – ,
servir por atacado e em comissão,
sete vezes servir, como quem parte
para tão grande amor... sem geração.

(Op. cit., p. 22-23)

Esse momento de impasse poético, aliado à sua capacidade de recriação interativa – subentendida em alguns textos e reveladora do estudioso das grandes obras da Literatura Universal –, permitiu-lhe juntar ovos de ouro para um estilo nacional, mas foi também o marco de sua trajetória singular, como criador que oferece a seus leitores verdadeira Poesia. O Poeta reconheceu o quanto é importante ter geração, ser glorificado enquanto ainda vivo, mas sentiu que era melhor, muito melhor ter sossego, para continuar servindo à Musa, a seu modo, num grande amor... sem geração.

Como Poeta, conhecedor do segredo de como descobrir o silêncio dos círios e a luz dos símbolos mais puros (p.155, op. cit.), percebeu o quanto seria difícil abandonar sentimentos líricos, provindos das desconhecidas regiões do Mundo Amorfo, para aceitar os modismos conceituais e vitais, os quais, vez por outra, se revestem de formas opressoras, racionalizando a emoção por meio de regras estéticas intransigentes. E usando o radar da intuição (como um morcego), e abrindo asas oníricas, para uma incursão/excursão no imaginário-em-aberto, pesquisando os xis impeditivos – problemáticos, conceituais –, lendo os grandes gênios, antigos e novos, ele se propôs a juntar ovos de ouro para um estilo nacional. Buscando em Bachelard uma explicação que me autorize a repensar esse momento de conscientização estética, penso que foi na solidão ativa14 que Gilberto trabalhou a matéria lírica, amorfa, transformando-a em provocativas metáforas polivalentes.


FESTIVAL

Das dobras desses montes e das obras
dos que amaram demais, vem o noturno
encanto dessas vozes que se juntam
à voz que restitui a cada coisa
o sentido dos dias e das noites.

Como romper o estranho sortilégio
das sombras que se escoam das janelas
e me falam de Nize e de Marília
e me estendem, tangível, a certeza
de que os astros enfim se conjugaram
e conspiraram contra o meu silêncio?

Agora eu também tenho um coração
maior que o mundo e sei cantar de amor
esses tenros cuidados de quem tem
o peito repartido em dois pedaços.

Agora amo-te muito, como as flores
da serenata ou como as ondas negras
do mar que vem de dentro do teu nome
e se atira perdido contra o tempo
de novo indecifrável.

(Op. cit., p. 298)

Agora, graças a esse coração maior que o mundo, atavicamente, recorda (sentido etimológico) os grandes líricos do passado e lamenta o fato de não estar entre eles, já que, graças a um estranho sortilégio, acessível apenas aos verdadeiros poetas, possui o mesmo poder. E ei-lo reclamando o seu direito de sonhar15, de idealizar sua Musa do século XX, como todos os poetas fizeram anteriormente, principalmente, os árcades do Brasil-Colônia, no século XVIII, aqueles que souberam disfarçar uma espécie de pré-emotividade romântica nas dobras de uma tessitura poética presa às normas estéticas do Século das Luzes, glorificando sentimentalmente suas amadas. Ele, Poeta de uma fase intermediária do século XX, deplora o fato de existirem normas estéticas racionais em seu momento histórico, normas que rejeitam um envolvimento criativo com o já mencionado estranho sortilégio. Naquele estágio de sua trajetória poética, segundo suas próprias palavras, os astros conjuraram e conspiraram contra o seu silêncio, ou seja, contra a forma como ele percebia o silêncio, ele que se inseria em um caótico momento estético-literário bem diferente daquele do século XVIII. Mas, seus leitores daquela ocasião conseguiram alcançar a grandeza desse plano amorfo, silencioso, por intermédio de seus versos plurissignificativos, assim como, também, seus leitores de hoje. Muitos versos adiante, na terceira fase, já vivenciando o cogito(3) da consciência ativada, ele descobrirá que os verdadeiros astros, os anjos tortos que vivem nas sombras, protetores de poetas mineiros e goianos, jamais o abandonaram, e que sua criatividade poética se projetaria além e aquém das mesquinhas conjurações e conspirações dos poderosos “astros” do mundo intelectual do século XX, os quais procuram regulamentar novos preceitos estéticos, propiciadores de imediato retorno financeiro.

Por enquanto, no cogito(2) [pensamentos dialetizados], ele compreende o duplo argumento da linguagem poética:

Não se filtram sem ritmo
as crispações da cãibra,
nem o sol se eletriza
na transparência do âmbar.

Mal se cresta na rocha
o prodígio do musgo,
e o repouso se aflora
à superfície, brusco.

Toda essência se oculta
e se mostra num cone
de sombra. E sob a turva
aparência do nome

tudo o mais se compreende
neste duplo argumento:
a senha, a contra-senha;
o tempo, o contra-tempo.

( p. 330, op. cit.)

Este poema representa o momento de repouso ativado do poeta goiano. Nesse instante de pura conscientização, ele percebe a força da palavra de duplo sentido, essência que se oculta e se mostra num cone de sombras. Se compreendo a provocação do sujeito poético, alter ego do indivíduo Gilberto, penso não poder aceitar mais (ou aceitar como contribuição crítico-analítica complementar), neste final de século, as limitações próprias das diretrizes analíticas, as quais se prendem em estudos fechados, que não permitem um envolvimento reflexivo com o lado oculto do texto poético, tão perfeitamente qualificado como um cone de sombras. É neste momento que ouso buscar nos pensamentos de um conceituado semiólogo dos anos setenta a minha defesa, já que postulo (em benefício da compreensão das camadas ocultas do texto paradigmático) um intercâmbio produtivo entre as duas grandes linhas de pesquisa, que ainda se digladiam em nosso panorama intelectual.

Sair em busca da especificidade do fato poético, afirmando que ele se manifesta numa classe particular do discurso, só é simples aparentemente. Como se sabe, a lingüística, que até recentemente limitara seu objeto às dimensões da frase, não nos havia preparado para manipular discursos. A distinção que se vem procurando estabelecer nestes últimos tempos entre a palavra imediata (diálogo, comentário sobre o universo) e a palavra mediatizada (discurso, texto, narrativa) não é óbvia e até agora não parece baseada em critérios formais comprovados e suficientemente gerais.

Conceber o discurso como uma concatenação de enunciados não será suficiente para explicar a sua isotopia, isto é, a sua coerência sintagmática. Entrever, nele, redundâncias significativas já eqüivale a reconhecer regularidades que não mais dependem da gramática gerativa das frases, mas que obrigam a imaginar uma organização discursiva autônoma. Impossibilitada de buscar apoio numa teoria geral dos discursos, a semiótica poética se vê assim compelida a ir forjando pelo caminho seus próprios conceitos operacionais.16

Estes pensamentos de Greimas, não condizentes com a postura inflexível da Semiologia de Primeira Geração (de Pearce, Levy Strauss e outros), ainda presa a conceitos estritamente lingüísticos, foram revelados nos anos setenta, momento que registrou o cerne da crise entre os dois pontos de vista que se opunham: os estudos estruturalistas da literatura e a hermenêutica do texto literário. Alguns semiólogos europeus perceberam a importância de uma reformulação nos conceitos críticos vigentes e procuraram se adaptar aos novos reclames da Crítica Literária. No entanto, em se tratando de Brasil, a questão permanece, já que não possuímos uma teoria literária própria, saída de nosso próprio meio intelectual, apta ao diálogo com os textos literários de nossos escritores. Continuamos importando teorias estrangeiras. A literatura brasileira exige um conhecimento teórico próprio, um direcionamento teórico-crítico que se identifique com as idéias criativas de nossos narradores e poetas. As teorias e críticas literárias européias ou americanas foram inventadas para suprirem as necessidades de análise e compreensão dos textos de lá, e elas nem sempre abrangem o todo de nosso universo literário, já que não foram pensadas em função de nossas vivências. Mesmo afirmando minha adesão aos conceitos bachelardianos, quero dizer que, ao longo desta pesquisa, o meu ponto de vista desenvolver-se-á sob uma particular interpretação dessas idéias, objetivando um estudo transmutativo da obra poética de Gilberto Teles.


TURISMO

Ainda há lugar para alguns
descobrimentos:
cabos, não; ilhas, sim;
e muitas nuvens pelo mar-sem-fim.

Mas é preciso primeiro tomar posse
de toda esta terra que se abre
em festivais de fados e provérbios
nas águas mil do equinócio de abril.

E ser entre os seus mil e três poetas
aquele oculto viajante
que através das estradas mais secretas
vai assestando o sextante

para encontrar nas entrelinhas
o que ficou sem leitura,
como uma imagem retorcida
na caricatura.

E então já não sou eu: sou o alarve
que se dissipa a varejo:
pilar da ponte do Tejo,
fins de semana no Algarve.

Sou o que vai ser devorado
pelos encantos de Évora,
o que ressuscita por trás dos montes
e se festeja em Bragança,
o que vai às cortes de Lamego
falando brasileiro,
português e galego.

Sou aquele que sabe a gaia ciência
das encostas do Douro
e ainda se lembra
da voz dolente de Coimbra.

Sou portanto um turista sem eira
nem beira,
na Estremadura,
que te viu nos Açores, na Madeira
e ainda te procura.

Um que destruiu o tempo e o espaço
quando encontrou o caminho de Melgaço
e subiu ao Castro Laboreiro
para te ver distante,
céltica e romana
ou (quem sabe?)
uma latino-americana
com olhos de moçárabe.

Pensando bem, melhor é ser personagem
de Eça e de Garrett
e estar-se nas tintas
(ou no tinteiro)
por não poder nas terças e quintas
pintar o sete,
como um bom brasileiro.

Gilberto Mendonça Teles

2.6 – O Poeta-Indivíduo além do Terceiro Cogito

A MARCA

Entre caibros e ripas
pelegos e baixeiros
entre freios
loros
cabrestos correias e ligais
entre capangas
patronas
e sacos de aniagem
este cheiro de couro
de suor
este cheiro de mofo
da urina
este cheiro de cavalo
este bolor
este pêlo queimado
(este soluço)
esta marca de ferro
viga-mestra
forma simples de T
sombra de mão paterna
dependurada no vazio
do tempo

O caixão dessa marca
o seu quarto sem fundos
o canto dessa marca
o seu quarto crescente
vasta porção de silêncio
consonância
de sinais
flor-de-signos
ideograma
r’astro de ferro e brasa
girando no portal
rês perdida na invernada
resto de medo no pasto
galope debaixo da chuva
nesga de conversa
recuperando a lei desta madeira
a leitura no fundo deste anel
este espaço de luz na cumeeira
este emblema vistoso no papel.

(Op. cit., p. 222)

Este poema faz parte do livro Saciologia Goiana, reunião de poemas escritos entre 1970 e 1981, considerado por Anazildo Vasconcelos17 como poesia épica pós-moderna. Esta modalidade genérica, realizada por Gilberto Teles, será examinada em uma próxima pesquisa, ainda em processo de maturação. Por enquanto, está realçada, aqui, como epígrafe desta segunda etapa do trabalho. Faz-se necessário sublinhar que Gilberto passou pela iniciação da consciência do mito, para alcançar o espaço amorfo do imaginário-em-aberto, para alcançar o sinal, ambíguo e transparente, oculto sob formas espessas / reunidas no oco da noite, já visualizado nos poemas de sua segunda fase, pré-anunciadores de criativas incursões/excursões nos domínios insólitos do Absoluto.


O SINAL

Unidas às palavras, as coisas
nos agridem pelo seu lado neutro
e se ocultam sob formas espessas
reunidas no oco da noite.

Por impreciso, cada gesto se repete
e se adensa, concreto. Cada sopro
divulga na planície seus volumes
de nada. E cada timbre enuncia
um esmeril no lingote da fala.
Ambíguo e transparente, o sinal
emerge da raiz e se crava nos lábios,
conciso: prego nas quinas do tempo
ou refração no verde da piscina
onde a luz se distrai,
porosa e livre.

(p. 331, op. cit.)

O Absoluto é um espaço conhecido apenas por aqueles que foram assinalados na hora do nascimento, é um espaço vislumbrado pelos que possuem a marca dos predestinados. Consciente de tal capacidade, o poeta goiano coloca várias citações como propostas de intenções poéticas. No poema “Hora aberta”, localizado no livro Arte de armar (p. 297, op. cit.), observa-se a seguinte epígrafe: “naquele dia (os deuses) pronunciaram meu nome.” (Hammurabi). O Poeta, enquanto indivíduo possuidor de uma consciência singular, tem plena noção de seu poder, sabe que já ultrapassou os limites do pensamento linear. Outra citação reveladora se destaca no livro Plural de nuvens (p. 7, op. cit.) apontando-nos o poeta-leitor de tratados filosóficos do século XX: “O sonhador tem sempre uma nuvem que transformar. A nuvem nos ajuda a sonhar a transformação.” (Gaston Bachelard). Outras citações poderiam ser registradas como exemplos de reconhecimento de momentos metafísicos, instantes energizados, suspensos entre o antes e o depois do pensamento ativado.

Repensando as análises e, por intermédio delas, o percurso poético de Gilberto Mendonça Teles, mas, repensando também a questão dos tempos superpostos, pelo ponto de vista da filosofia de Gaston Bachelard, pude constatar que a realidade temporal é formada pelos instantes ativos do pensamento. Esses instantes dinâmicos marcaram a poesia do escritor goiano, transformando-a, revitalizando-a, instigando o poeta-indivíduo a oferecer consistência ao que foi intuído no intervalo dessas lacunas efervescentes.18

O poeta da segunda fase e seguintes conscientizou-se desses instantes intensos, energizados, e pode, assim, questionar a diretriz estética que o aprisionava. Os preceitos poéticos daquele momento do modernismo brasileiro já não condiziam com o seu novo entendimento sobre a essência das coisas, dos homens, do tempo vital e, muito menos, da Poesia. Esse novo entendimento impeliu-o a rejeitar exigências estéticas limitadoras, criando uma nova forma de se expressar poeticamente, mas que, ao mesmo tempo, fosse reconhecida em seu meio social. Em seus poemas, em cada verso, procurou organizar seus diversos momentos de pura intuição, planejando assim dar forma à realidade amorfa da Poesia, enquanto sentimento provindo do plano espiritual, o que em Ciência da Literatura denominamos Mundo do Silêncio ou Mundo do Vazio Criador.

Penso nesse Vazio Criador, depois de uma reflexiva convivência com os textos filosóficos de Bachelard – e conscientemente alerta quanto aos atuais modismos crítico-literários da inteligência brasileira, os quais se preocupam em rejeitar tais argumentos –, como um estágio intermediário entre o nível do pensamento criativo, ou cogito(3), ligado à realidade vital [não confundir com tempo vital], e o plano espiritual, ou cogito(4), realidade amorfa da pura espiritualidade. Este espaço intermediário – jamais esquecer que Bachelard realça a idéia dos intervalos vazios, mas dinâmicos, entre aparência e essência, entre causa e efeito, etc. – é o espaço de solidão do poeta pós-moderno, solidão que propicia o estar frente a frente com o extraordinário no momento da intuição e, com isto e por isto, permitindo também a realização gráfico-poética da interpretação lírica desse instante de compreensão de um momento temporal incomum. Esse momento incomum, pela compreensão de Gaston Bachelard, materializa-se liricamente por meio da ação imaginante19 daquele que sinaliza esses raros neants em confronto com uma explosão de imagens contraditórias, emaranhadas, distantes das formas definitivas que pouco revelam.

No capítulo “As nuvens”, do livro O ar e os sonhos, Bachelard alerta para a importância do elemento nuvem nos textos poéticos.

Nunca seria demasiada a importância que atribuímos a esse caráter autoritário do devaneio que confere a si mesmo o mais gratuito dos poderes criadores. Esse devaneio trabalha pelo olho. Bem meditado, pode trazer-nos luzes sobre as estreitas relações da vontade e da imaginação. Diante desse mundo de formas mutáveis, em que a vontade de ver, superando a passividade da visão, projeta os seres mais simplificados, o sonhador é mestre e profeta. É o profeta do minuto. Ele diz, num tom profético, o que se passa presentemente sob seus olhos.20

Não será demais lembrar: Gilberto Teles dedica um livro inteiro à temática da nuvem. Plural de Nuvem representa o ápice de seu poder criador, ou seja, o seu poder de visualizar e trazer à luz, liricamente, o universo amorfo do imaginário-em-aberto. O título representa sua imaginação-vontade submetendo a prolixa imaginação linear ao comando de sua ação criadora. (Segundo Bachelard, a imaginação linear é característica de sonhadores preguiçosos, produtores de textos poéticos para simples entretenimento, o que não é o caso de Gilberto). Sua vontade de ver formas poéticas ainda não conceituadas o impulsiona para a realização de uma obra lírica reformadora desses instantes ativos, ou seja, para a consignação por escrito do imponderável, apreendido em uma indeterminada Hora Aberta, oscilando entre a realidade, a crítica e o devaneio sentimental. Uma Hora Aberta, talvez para a poesia, o amor, a descoberta, ou para o dia-a-dia da coisa mais incerta, das coisas incertas de nosso cotidiano de incertas referências (realidades, fatos, interesses, empreendimentos, objetos animados e inanimados, acontecimentos, causas, motivos...), de acordo com as palavras do próprio Gilberto, pronunciadas em um momento de descontração discursiva, em sala-de-aula, em 1986, graças à sua função de professor de literatura, na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Um momento localizado entre os seus inúmeros discursos replenos de lirismo, discursos não-registrados graficamente, porém, captados por ouvidos de alunos interessados em zelar e resguardar a instantânea criatividade do professor-poeta, ao se referir ao título de seu livro Hora Aberta (uma reunião de todas as suas obras anteriormente publicadas, uma edição comemorativa dos seus trinta anos de dedicação à poesia, em 1986, pela Editora José Olympio em co-edição com o Instituto Nacional do Livro/Fundação Nacional Pró-Memória).


A mão do poeta goiano aqui assinalado sempre esteve predisposta a comandar o ato de escrever, para se apoderar das formas mutáveis e instáveis da realidade (as poéticas e incertas referências) e ao mesmo tempo permitir consistência literária ao mundo invisível da aérea imaginação transmutativa. Por intermédio de um particular imaginário-em-aberto dinâmico, sedutoramente lírico, Gilberto Mendonça Teles dilata a imaginação de seus leitores, instigando-os ao desenvolvimento da faculdade de compreender o indizível além das formas conceituais já sacralizadas. (Neuza Machado)


PLURAL DE NUVENS

Se há um plural de nuvens e se há sombras
projetadas no texto das cavernas,
por que não mergulhar, tentar nas ondas
a refração dos peixes e das pedras?

Há sempre alguma névoa, um lado obscuro
que atravessa o poema. Há sempre um saldo
de formas laterais, um como escudo
que não resiste muito a teu assalto.

Se alguma luz na contraluz se esbate,
se há no curso dos dias sol e vento,
talvez na foz do rio outra cidade
venha no teu olhar amanhecendo.

Importa é caminhar, colher florzinhas,
somar os (im)possíveis e parcelas,
criar no tempo algumas coisas findas,
algumas ilusões e primaveras.

Importa é ler de perto a cavidade
das nuvens e espiar os seus não-ditos:
o mais são armas para o teu combate,
falsos alarmas para os teus sentidos.

Gilberto Mendonça Teles

3 – CONCLUSÃO

À moda de conclusão, quero reafirmar meus propósitos iniciais, realçados na apresentação. Como foi anteriormente notificado, filiei-me ao método semiológico, para um primeiro contato com os textos poéticos de Gilberto Mendonça Teles, e coloquei em prática, de acordo com tais preceitos, uma desmontagem analítica que me permitiu alcançar a mensagem em todas as suas minúcias. Procurei particularizar planos e níveis, consciente de que tal atitude me levaria a subir os degraus do conhecimento da obra poética do escritor goiano. Posteriormente, procurei reordenar, usando de uma necessária sensibilidade, o que foi tecnicamente desmontado. Uma análise submetida apenas aos rigores da objetividade do pensamento crítico, sem a contribuição da crítica literária fenomenológica valorizando e prestigiando a compreensão, não expressaria a experiência de um contato reflexivo com as camadas invisíveis da escrita poética. As regras analíticas – oriundas de passadas diretrizes formalistas – privilegiam a objetividade, são fiéis seguidoras de preceitos cientificistas. No caso específico desta técnica de análise semiológica – primeira parte da pesquisa – aqui reivindicada como colaboradora de meus pensamentos transmutativos, esta se desenvolveu resguardada pela Semiologia de Segunda Geração – de Barthes, Umberto Eco, Anazildo Vasconcelos –, mais flexível, já aceitando acréscimos interpretativos. Ressalto, nestas linhas finais, a minha consciente adesão aos estudos analíticos do texto poético, na fase inicial da pesquisa, como orientação, para o desvelamento das camadas visíveis, mas, reafirmo: posteriormente, a força transmutadora da poesia, inserida no poema, foi apreendida em seus mínimos aspectos sensíveis, e esta apreensão só se realizou por intermédio da compreensão das camadas não-visíveis.

Contudo, travesti-me de analista. Desmontar o texto poético foi um ato manifestamente insensível, mas o trabalho de remontagem proporcionou-me um rendimento interdisciplinar acima do previsto. Posso concluir, refortalecida pela nova experiência, que desenvolver uma análise – técnica, sociológica, psicanalítica, antropológica – não é uma atitude que vá contra os princípios da crítica de base fenomenológica, uma vez que, no âmbito do Conhecimento, é pertinente apreender, também, o texto poético em suas minúcias externas. A reconstrução posterior extratexto – compreensão receptiva – por intermédio da filosofia bachelardiana, transmudou-se em um produtivo envolvimento anímico com os poemas de Gilberto, uma vez que aliei à técnica a minha própria sensibilidade de intérprete, refortalecida pelos universais preceitos de Teoria Literária, em outras palavras, postulei, nestes meus pensamentos transmutativos, minha própria maneira de desenvolver uma apreciação crítica, pelo único motivo de que é este exatamente o procedimento que se faz necessário, para a compreensão dos textos atuais – poesia e prosa –, replenos de insolúveis questões paradoxais.

Neste atual momento dos estudos literários – final do século XX, final do Segundo Milênio – não se pode desvincular a apreensão crítica fenomenológica da análise cientificista, e vice-versa, principalmente, levando-se em consideração a opacidade criativa dos atuais textos literários. Analisar, obrigando o analista a se posicionar como simples observador, decodificando apenas as camadas visíveis (não que não seja válida tal atitude), restringe a apreensão do todo de uma obra poética, na qual se instala a força tranfiguradora da poesia. Uma interação, uma colaboração, um reflexão produtiva do texto poético exige uma compreensão extratexto, uma interpretação das camadas ocultas, e esta interpretação crítica se mostrará mais confiável, teoricamente, se aceitar-se o apoio da análise cientificista. Na primeira etapa de minha empreitada (na segunda parte, desenvolvi uma apreciação teórico-filosófica do que foi analisado em uma primeira instância), desenvolvi um raciocínio linear, segundo a orientação da Semiologia de Segunda Geração (de Greimas, de Barthes, de Umberto Eco, de Anazildo Vasconcelos), e concluí que a obra poética de Gilberto Teles é particular, individual, necessitando de uma urgente divulgação entre os estudantes do Ensino Fundamental, Ensino Médio e, também, do Ensino Universitário, já que os alunos de literatura brasileira, desses níveis de escolaridade, com raras exceções (e excetuando também os alunos goianos), desconhecem a obra poética de Gilberto Mendonça Teles. Evidentemente, não estou referindo-me aos alunos de pós-graduação em Ciência da Literatura ou, especificamente, Literatura Brasileira.

Conseqüentemente, procurei analisar e interpretar alguns poemas de Gilberto Mendonça Teles, para ressaltar o fato de que sua criatividade poética não se aproxima, esteticamente, das fases que paralelamente o acompanharam. Para reforçar meu objetivo, desenvolvi um estudo interativo, atenta aos diversos paradigmas críticos que, atualmente, comandam o ato de pensar dos intelectuais brasileiros, no intuito de apreender as mensagens ocultas em seus sentidos mais confiáveis. Finalizando e recuperando os pensamentos do próprio poeta (ao se referir aos textos literários que não desbravam poeticamente o Mundo do Silêncio), penso ter tateado apenas a penugem das letras / resvalado na forma rasa do anagrama, / sem perceber, no fundo, o limiar do eterno.

NEUZA MACHADO / Rio de Janeiro - julho - 2005

4 – BIBLIOGRAFIA

BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos. Trad. de Antônio de Padua
Danesi. 1. edição brasileira. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
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3) _____. A dialética da duração. Trad. de Marcelo Coelho. 1. edição brasileira. São Paulo: Ática, 1988.
4) _____. A poética do devaneio. Trad. de Antônio de Padua Danesi. 1. edição brasileira. São Paulo: Martins Fontes, 1988.
5) _____. A poética do espaço. Trad. de Antônio de Padua Danesi. 1. edição brasileira. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
6) _____. A psicanálise do fogo. Trad. de Maria Isabel Braga. Lisboa: Litoral, 1989.
7) _____. A terra e os devaneios da vontade. Trad. de Paulo Neves da Silva. 1. edição brasileira. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
8) _____. A terra e os devaneios do repouso. Trad. de Paulo Neves da Silva. 1. edição brasileira. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
9) _____. Étude sur la Siloë de Gaston Roupnel. "L'intuition de l'instant". France: Editions Gouthier, 1932, pp. 13-56.
10) _____. Fragmentos de uma poética do fogo. Trad. de Norma Telles. 1ª edição. São Paulo: Brasiliense, 1990.
11) _____. O ar e os sonhos. Trad. de Antônio de Padua Danesi. 1ª edição brasileira. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
12) _____. O direito de sonhar. Trad. de José Américo Motta Pessanha et alii. 3. edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1991.
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14) _____. Elementos de Semiologia. Trad. de Izidoro Blikstein. São Paulo: Cultrix, 1985.
15) _____. Novos ensaios críticos / O grau zero da escritura. Trad. de Heloysa de Lima Dantas, Anne Arnichand e Álvaro Lorencini. São Paulo: Cultrix, 1974.
16) BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 34. ed. São Paulo: Cultrix, 1999.
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27) _____. Literatura e Realidade Nacional. 3. edição. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975.
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29) _____ et alii. Teoria Literária. 2. edição. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1976.
30) RAMOS, Maria Luiza. Fenomenologia da obra literária. Rio de Janeiro/São Paulo: Forense, 1969.
31) RICOEUR, Paul. Interpretação e ideologias. Rio de Janeiro: Francisco Alves,
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32) SAMUEL, Rogel (Org.). Manual de Teoria Literária. Petrópolis: Vozes, 2000.
33) SILVA, Anazildo Vasconcelos da. Formação épica da literatura brasileira. Rio
de Janeiro: Elo, 1987.
34) _____. Semiotização Literária do Discurso. Rio de Janeiro: Elo, 1984.
35) STAIGER, Emil. Conceitos Fundamentais da Poética. Trad. de Celeste Aída
Galeão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975.
36) TELES, Gilberto Mendonça. A Retórica do Silêncio. 2. edição. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1989.
37) _____. Hora Aberta (Poemas Reunidos). 3. ed. Rio de Janeiro: José Olympio / Brasília: INL – Instituto Nacional do Livro, 1986. (Edição Comemorativa dos Trinta Anos de Poesia).
38) _____. Vanguarda Européia e Modernismo Brasileiro. 8. edição. Petrópolis: Vozes, 1985.


4 – NOTAS

* TELES, Gilberto Mendonça. Hora aberta. (Poemas reunidos). 3. ed., Rio de Janeiro: José Olympio / Brasília: INL - Instituto Nacional do Livro, 1986. (Edição Comemorativa dos Trinta Anos de Poesia): 128. (Todos os poemas de Gilberto Mendonça Teles, assinalados nesta pesquisa, foram retirados desta edição).
** TELES (1986): 9
*** TELES (1986): 276
**** Cf.: BACHELAR, Gaston, A dialética da duração. Trad. de Marcelo Coelho.
1.ed. brasileira. São Paulo: Ática, 1988.
***** TELES (1986): 332
1) GREIMAS, A. J. (Org.). Ensaios de Semiótica Poética. Tradução de Heloysa de
Lima Dantas. São Paulo: Cultrix / USP, 1975: 16.
2) Idem: 26
3) BACHELARD, Gaston. O ar e os sonhos.Tradução de Antônio de Padua Danesi.
1. ed. brasileira. São Paulo: Martins Fontes, 1990: 3
4) In.: SAMUEL, Rogel (Org.). Manual de teoria literária. 13. ed. Petrópolis: Vozes, 2000: 186
5) GREIMAS (1975): 26
6) PORTELLA, Eduardo (Org.) Teoria da Literatura. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo
brasileiro, 1976: 13
7) GUIMARÃES ROSA (Entrevista ao crítico alemão Günter Lorenz – 1965)
8) BACHELAR, Gaston, O direito de sonhar. Tradução de José Américo Motta Pessanha et alii. 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1991: 163
9) BACHELARD, Gaston. A Poética do devaneio. Tradução de Antônio Padua Danesi. 1. ed. brasileira. São Paulo: Martins Fontes, 1988: 24
10) CRUZ E SOUZA, “Cárcere das Almas”
11) CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE, “A procura da poesia”
12) CECÍLIA MEIRELES, “Canção Excêntrica”
13) BACHELARD (1991): 163
14) BACHELARD, Gaston. A terra e os devaneios da vontade. Tradução de Paulo Neves da Silva. 1.ed. brasileira, São Paulo: Martins Fontes, 1991: 24
15) Idem (1991)
16) GREIMAS (1975): 13-14
17) SILVA, Anazildo Vasconcelos da. Formação épica da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Elo, 1986.
18) BACHELARD, Gaston. A dialética da duração. Tradução de Marcelo Coelho. 1. ed. brasileira. São Paulo: Ática, 1988.
19) Idem (1990): 1
20) Ibidem: 189-200

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