ODISSÉIA MARIA
NEUZA MACHADO
VIGÉSIMO NONO CANTO
NEUZA MACHADO
VIGÉSIMO NONO CANTO
mas, como eu ia contando, em São Paulo, nessa Mistura Sem-Igual, Sensacional, todos são Brasileiros, muito prazer Magnata!, torcem com garra pro time do Coríntiãs, ou, então, são todos Sampaulinos doentes, portugueses, brasilanos, japoneses, coreanos, chineses, italianos, noruegueses, venezuelanos, franceses, angolanos e et cœtera, etc, etc e tal, são todos brasileiros nessa mistura saudável com muito prazer!; até mesmo Minas Gerais, tão portuguesa!, agora, recebe e acolhe todas as etnias do Mundo Rotundo, desde o Século XVIII, ou bem antes, semideuses espanhóis e franceses e alemães e ingleses e suíços e libaneses se alojaram em Minas Gerais e disfarçaram seus semens e nomes legais, os estrangeiros foram para Minas Gerais, no passado, se tornaram mineiros altaneiros e esqueceram as origens reais, só Minas conseguiu tamanha façanha, os descendentes dos valerosos antigos franceses e ingleses, hoje, são todos cidadãos mineiros, e os italianos também, e os libaneses também, não há reduto de estrangeiros em Minas Gerais, meu Rapaz!, talvez, quem sabe?, um jovem reduto de japoneses plantando tomates em Minas Gerais, conservando ainda os costumes da origem, porém, com certeza, seus descendentes se tornarão mineiros, falarão com sotaque mineiro, cantarão músicas roceiras quomodo qualquer caipira mineiro, esquecerão os costumes dos japoneses mais velhos, aceitarão os costumes mineiros e et cœtera, e etc e tal, a despeito dos olhinhos reveladores da origem asiática; só Minas conseguiu e consegue e conseguirá tamanha façanha, não há reduto de estrangeiro em Minas Gerais, Minas sempre foi um Estado Federativo fechado do meu Brasil Adorado, quem quiser morar lá, terá de se tornar mineiro, não é semelhante a São Paulo e os Estados do Sul do Brasil, possessões estrangeiras; em Minas, alemão se transforma em mineiro e esquece depressa sua língua de origem; os turcos e libaneses são todos mineiros, não tenho certeza, mas o meu sangue é moureno também; apenas os sobrenomes denunciam a ascendência estrangeira, Minas é um Estado meio medieval, quem quiser morar lá, terá de adotar seus costumes, qualquer cidadão de outros Estados do Brasil Varonil também, também se transforma em mineiro roceiro nas Minas Gerais, os costumes da terra se apoderam depressa daquele que se atreve a morar lá, Minas é um reduto muito fechado, sim Senhor, saiba Você, eu nasci em Minas Gerais e sei muito bem o que digo e afirmo, pois o mineiro, mesmo saindo de Minas Gerais, continua mineiro em qualquer parte do Mundo, seja ele Rotundo ou Profundo; mesmo adotando e amando o Rio de Janeiro, continuo mineira, com muito prazer, relembro com amor o meu Estado de origem, recordo com carinho as bellas tardes fagueiras da minha infância distante, ai!, que saudades que tenho da minha infância querida, debaixo das laranjeiras e mangueiras e goiabeiras e jabuticabeiras, todos os deliciosos frutos existentes em Minas Gerais, do meu saudoso quintal e dos quintais dos vizinhos, ai!, que saudades que tenho, meu Amor!, meu Rapaz!; no entanto, morar em Minas Gerais nunca mais, nunca mais!, Minas é um Reduto Ainda Muito Fechado neste Final do Século XX, demais!; Minas continua adotando os Costumes Antigos, o mineiro, aquele que saiu de Minas Gerais e conheceu a Liberdade de Viver e Amar, jamais voltará para Minas Gerais, se for mulher, então, não voltará, com certeza, a mulher em Minas não tem liberdade, se lutar para ter liberdade, será mal-falada, falarão da mulher com desprezo e rancor, a mulher desobrigada é por lá criticada, a mulher deforçada, de Minas Gerais, compreenderá o aqui manuscrito e depois digitado, os costumes de Minas são patriarcais por demais, a mulher mineira tem de ser recatada, terá de ser retraída, acanhada, não pode jamais conversar com o vizinho, com o marido da vizinha, quero dizer, senão, a vizinha baixará o porrete, vai bater pra valer na vizinha irrequieta, a talzinha ousou conversar com seu marido-galinha, e a mulher liberada não estava fazendo nada de mais, óh coitada!, nem estava interessada no marido da comadre, mesmo assim, ela será afastada da sociedade, será marginalizada e malsinada, porque simplesmente quis ter liberdade, a liberdade de agir sem prestar contas ao Mundo Rotundo; falo com Você, Leitor de Formação Patriarcal, Você que está lendo este Texto Enrolado, mesmo se Você agora afirmar e reafirmar o contrário; nas Minas Gerais, meu Rapaz!, neste Final de Século e de Milênio, eu afirmo e rejuro, não há liberdade para a mulher, não Senhor, meu Amor; mas, atenção!, por favor!, há uma facção de mulher mineira arisca e manhosa, ela sabe fingir com maestria, sabe enganar as velhas fofoqueiras mineiras, se não há liberdade, ela inventa a vida, santamente ela põe chifres no seu marido-galinha, e ai de quem lhe apontar o dedo, acusando-a, ela é pura e é santa, mas faz das suas às escondidas, trama com os compadres no meio da roça e et cœtera e tal; de vez em quando, vão nascendo uns filhos mui diferentes; mas seu caçula, comadre Alqueminda, é muito parecido com o compadre Jovinho, você não acha, comadre, há parecença?; o que é isso, comadre Moirena?, sou esposa fiel!, meus filhos são todos do meu marido Anfitrião Bonitão, compadre Jovinho é só o padrinho de meu caçula Izé, com muito zelo e carinho, o que é isso, comadre?, sou esposa fiel, meus filhos são todos do mesmo pai, não sou a sua filha Matirda, o que é isso, comadre?, está me estranhando?, meu caçula é filho do meu marido Bastião Anfitrião Valentão; mas, como eu ia dizendo, a mulher mineira é muito fiel, até mesmo a mulher da tal facção, quando o compadre se assanha um pouquinho mais, ela diz, compadre, o meu marido evém-já, o meu marido evém-já, compadre Jovinho, cuidado, compadre, o meu marido evém-já, meu compadre Zeuzão; e vai se inclinando pro compadre Zeuzinho, no fim de nove meses nasce mais um Izézinho, e ai de você se notar parecença!; o que é isso, comadre?, lhe bato na cara, meu Izézinho é filho legítimo do meu marido Tirésio Bastião Enfatrião, ele sua na roça de sol a sol, trabalha e trabalha de sol a sol, o Izézinho, quando crescer, vai ajudar o pai na lavoura, labutar na roça e empunhar a enxada, ainda bem, comadre, tenho doze filhos fortudos, todos homens taludos pra ajudar o pai, é bem verdade!, o Nico é bem queimadinho, quase pretinho, e seu pai Tirésio Fatrião é branco alourado de pêlo dourado, o Tirésio, comadre, teve uma avó bem pretinha, o Sinhô Português pegava a escrava de jeito; de vez em quando, nascia na sanzala um quase branquinho, o Tirésio é louro, mas sua avó era escrava, por isso o Tonico é meio queimado, digo, um escurinho bem bonitinho, o Joca, comadre, tem os olhos rasgados quomodo um japonês ou chinês, eu olhei muito, na época da gravidez, pru filho japonês do compadre Hakirô, por isso, comadre, o Joca tem cara de japonês, o que é isto, comadre?, não seja encrenqueira, não fale essas coisas, elas vão me perder, ainda bem e amém, tenho doze filhos fortudos pra ajudar o pai na lavoura, não fale essas coisas infames, minha comadre Assuntinha, o Tirésio é cego, mas é brabo também e vai me matar, se esta história esticar até aos ouvidos dele, cale a boca, comadre, sou mulher fiel; mas, como eu ia dizendo, a comadre boboca, que também faz das suas, volta pra casa amuada, coitada!, não descobriu o segredo bem guardado da comadre Minervinha Alequiméia, mãe de doze filhos hercúleos, cada um de um pai; e o reduto mineiro cada vez mais fechado, se eu estivesse ainda em Minas Gerais, meu Rapaz!, não sei não!, talvez, não teria hoje Liberdade no Mundo, teria caído na boca do povo, uai!, não aceito que me cortem a palavra!, quero sempre o meu cavalo solto no pasto, a liberdade é um bem valioso, não tem preço nem mesmo endereço, a liberdade é um bem conquistado com fervor, teria caído na boca do povo, Senhor, se tivesse ficado em Minas Gerais; talvez amigada com um fazendeiro rico, entre tapas e beijos na hora do amor, e o amante gritando e exigindo obediência, e eu me rebelando, rebelando, rebelando e batendo também, com certeza seria valente, mulher brava e rompante, jamais me submetendo ao terror, e ai do amante mandão com seus freios de amor; ainda bem!, as Parcas Bondosas do Século XX teceram meu loooooongo destino!; na hora do meu nascimento, os deuses de Hammurabi Rei Babilônico e o divino Itabirano Drummond pronunciaram meu nome, vá, Circe Irinéia Odisséia Maria do Novello Amassado, ser torta na vida, e eu rodei para o Rio, na década de sessenta, num avião transportador de cargas mineiras, e o Rio de Janeiro me acolheu com amor, viva o meu Rio de Janeiro!, Doutor!, o meu Rio querido e acolhedor, aqui vivo bem e sou dona de mim, faço o que quero e sou livre e viajo sempre que posso, e leio os meus clássicos e os horóscopos também, o que seria de mim sem os oráculos astrais?, a me empurrar para frente com previsões tão certeiras!, a dividir-me em mil mulheres todos os dias e noites também; pela manhã sou Circe e sou também Irinéia, à tarde me transformo em Diana Guerreira, vou pras mattas do Rio, para pescar e caçar, vou driblando e flertando com os deuses da Floresta Equatorial-Tropical, outras tardes me transformo em Maria Felix Bonita Mexicana de Lara, passo os dias só ouvindo boleros de amor e paixão, passo horas ao lado de meu Amor Agustin, ouço a bella voz do divino Agustin até não poder mais, isto quando não me vejo na pele das chicas cubanas, das chiquitas bacanas do meu Amor Bigodudo, o meu Bienvenido Grandalhão, com sua voz sonorosa, agita e agita o meu coração, os boleros castelhanos invadem meu Casulo de Seda Brilhante, a música vibrante sacode todo o prédio, os vizinhos reclamam do barulho troante e pedem aos gritos para eu abaixar o volume do som; nesses dias de saudade, o meu apartamento se enche de música chorosa, de música chorosa à moda espanhola, e os boleros dramáticos de cabaré mexicano, ou de cabaré cubano de primeira categoria, ou até mesmo de quinta, invadem a paz de uma rua qualquer localizada num Bairro Tradicional do Rio de Janeiro, graças a Deus!, eu moro bem pra caramba!, eu moro bem pra caramba num conjugadinho apertado, e eu não troco meu Casulo de Seda Carioca por nada do Mundo, não quero jamais uma casa luxuosa, tenho pena da proprietária da casa luxuosa, é escrava permanente da casa luxuosa, mesmo se a rica possuir um batalhão de empregadas, será sempre escrava da casa luxuosa; mas, como eu ia dizendo, de vez em quando, também, sou Vájira Diamante Pedra Resistente, e recito mantras da Filosofia Budista Teravada, também da Tibetana, o om-ma-ni-pe-me-rum várias horas seguidas, um bello mantra aprendido com meu Anjo-Guru; por fim, de verdade, sou Católica Romana e creio em Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo; com muito fervor!, rezo sempre a Ave-Maria, o Credo e a Salve-Rainha, e peço a Deus Pai muita proteção!, peço sempre aos meus Santos da Igreja Católica que roguem por mim a Deus Altíssimo Nosso Senhor; quem me ensinou esse ecletismo religioso foi compadre meu Quelemém, parente distante de Dante, Camões e João Guimarães, para livrar-me dos males do Mundo, amém!; mas vou sempre consultar o oráculo astrológico, ler horóscopo faz parte da realidade atual, os deuses pagãos permaneceram atuando nos Mapas Astrológicos do Mundo Rotundo, júpiter benevolente, plutão misterioso, vênus sedutora, marte conquistador, mercúrio veloz, urano revolucionário, e tem também netuno dos mares, e saturno ameaçador com sua cara fechada, e tem o sol casado com a lua, um casal vivendo em total desencontro, o sol brilhante trabalhando de dia e a lua infiel farreando de noite, e os astros todos olhando por mim, e os deuses do olimpo de Copacabana e os da floresta dos celtas e os da floresta amazônica, os deuses do Egito e os do Oriente et cœtera etc e tal; mas, à noite, Viajo Contente, vou Desbravando o Encantado País do Silêncio Indomável, à noite, eu me transformo em Odisséia Maria Guerreira, encanto os ouvintes com as Narrativas Mais Bellas, me transformo também em Nise, em Marília, namorando os Poetas de Minas Gerais, e são tantas as mulheres que vivem em mim, e são tantos os rostos nos quais me disfarço, as máscaras cotidianas que ostento e abrigo, e não sei mais quomodo reordenar-me, reunir os pedaços de mim que estão soltos no Espaço Sem-Fim, alguns ficaram perdidos no passado; e eu, agora, Odisséia Maria dos Grandiosos Múltiplos Sonhos Brilhantes Dourados, vou viajando e cantando, às vezes rindo ou chorando, caminhando, caminhando, caminhando, caminhando, caminhando, caminhando em direção ao infinito... ao infinito... ao infinito de mim ...
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