NEUZA MACHADO
SONHOS DILATADOS E BEM LEMBRADOS: A LONGA PONTE DE TRONCO DE ÁRVORE E O LARGO RIO INFINITO - 1
NEUZA MACHADO
Na época do meu primeiro sonho (o que pretendo aqui relatar), eu já havia completado sete anos de vida no final do ano anterior. Minha família morava em uma casa de beira de estrada, no sopé da Serra dos Perons (uma montanha agrária que pertencia - ou pertence ainda - às inúmeras ramificações de um grande grupo familiar de origem italiana, cujo patriarca - penso eu - chamava-se Alexandre Peron). Era uma casinha de meeiro localizada no sítio do patrão de meu pai, o senhor Delilo Coutinho (irmão daquele famoso magnata do futebol brasileiro dos anos cinquenta e sessenta, o empresário Giulite Coutinho, anos depois presidente da CBF), casinha esta que se localizava na entrada/saída da cidade de Santa Luzia do Carangola de Minas Gerais, em direção à Estrada BR116 (onde atualmente existe um Anel Rodoviário, em bifurcação, pois, do lado esquerdo de quem vai para a BR116, a estrada se direciona a cidade de Divino, e, do lado direito, atravessando o rio Carangola, a mesma estrada vai a direção à Varginha e outras localidades adjacentes).
A mudança da casa velha (do Bairro de Santa Maria, onde eu nasci), uma casa antiga próxima ao grande Pontilhão de Ferro da Linha Ferroviária da Princesa Leopoldina, para aquela, a daquele momento, acontecera naqueles dias, imediatos ao dia do acontecimento desta minha narrativa. (O pontilhão, precioso, fabricado na Bélgica, e que se localiza, ainda hoje, nas imediações da já destacada casa velha, poderá ser apreciado em alguns Sites de Carangola). Assim, no meio dos entretantos do tal evento que desejo narrar, Mamãe diligenciava, muito ocupada com a arrumação de nossos poucos e usados móveis, em faina constante, muito trabalhadora e, por incrível que pareça, naquele dia, inigualável na cozinha (logo, a Mamãe!). Mamãe, naquele momento, encontrava-se atarefada com as panelas de ferro, pretas, sem polimento algum, e com o cozimento das refeições, e muito feliz na recente residência.
A bem da verdade, minha mãe não era lá muito fanática por arrumação de casa e, muito menos, com o brilho das panelas e horário de refeições. O fogão de lenha de nossa casa só fazia fumaça acionado por seu progredido estômago. O que eu quero dizer é que o horário das refeições, lá em casa, naquela época e em épocas posteriores, não acompanhava o tique-taque do relógio. Comíamos na hora em que Mamãe sentia fome.
Então! Então, naquele dia era um Domingo. Mamãe estava a receber a visita de sua irmã caçula, a Tia Fizica (que iria passar uns tempos em nossa casa). Mamãe matava algumas galinhas de nosso terreiro; retirava carne de porco das latas de gordura (carne temperada e cozida, mergulhada em banha de porco, para durar por algum tempo, pois, naquela época e nas pequenas Cidades, poucas famílias possuíam geladeira em casa); catava feijão para cozinhar em um grande panelão, cuja trempe se localizava em um fogareiro, do lado de fora da casa; e outras atividades mil. Por consequência, com tal azáfama, seu propósito era preparar um lauto jantar para nossa visita.
Mas, com todo esse movimento, o jantar estava demorando a ficar pronto. Por que? Porque as duas conversavam, e conversavam, e conversavam, e a esperada janta não saía de jeito nenhum. A janta, naquele tempo, era servida por volta das dezesseis horas, ou melhor, deveria ser servida nesse horário, mas nem sempre assim, se a cozinheira fosse semelhante à Mamãe. O almoço, como era o costume daquela época, nas cidadezinhas do interior de Minas Gerais, era servido às oito horas da manhã (isso, se a Mamãe acordasse antes das oito) e o café da tarde, geralmente, por volta de meio-dia, mais ou menos. A janta, por volta das quatro da tarde. Às vinte horas, pontualmente, era servida a ceia, enquanto ouvia-se a novela radiofônica (aquela que substituiu a incomparável novela de rádio O direito de nascer, adaptação em português de um dramalhão mexicano de uma famosa novelista chamada Glória Magadan). Pois dormíamos cedo, naquela época, só depois da novela do rádio.
(Esquecia-me de dizer que os adultos só tomavam café puro ao acordar, para iniciarem a lida. Somente as famílias muito ricas tinham o costume de um lauto café da manhã, com mesa posta e tudo. Evidentemente, não era assim em nossa casa).
Só que, em nossa casa, e por causa dos descontentamentos de Mamãe, a ceia das oito horas da noite coincidia, quase sempre, com o horário da janta. É bom recordar o fato de que o Papai saía cedo para o trabalho. O pobre tomava um cafezinho requentado, antes de sair de bicicleta em direção ao serviço, na cidade, como funcionário-guardião do Armazém de Cereais do Seu Delilo Coutinho.
Mas, naquele dia, era domingo. Eu e o Papai esperávamos pacientemente a janta, que estava custando a sair das pretas panelas de ferro não-polidas. Mamãe conversava e conversava com a tia Fizica (por nome Iolanda, na certidão de batismo).
E o caso estranho que quero relatar foi assim:
Devia ser umas cinco horas da tarde. Cansada de esperar pela janta (que estava custando a ser servida por Mamãe), recostei-me em um travesseiro de paina, na caminha de solteiro que ficava em um quarto-saleta próximo à cozinha. Papai já estava ressonando no quarto do casal, o quarto da frente. O dia estava meio frio. Agasalhei-me com uma cobertazinha fuleira (cobertura de pobre, também chamada de coberta-bicicleta, não sei por quê?), e envolvi-me em meus sonhos infantis, próprios de uma menina de sete anos. Não tardei a pegar no sono. E comecei a sonhar. E o sonho parecia real.
De verdade, extra-sonho, havia um largo terreirão em frente a tal casinha da estrada, aquela em que morávamos. Depois da estrada de rodagem (uma ramificação rudimentar da BR116-Estrada Rio-Bahia passando pela cidade de Carangola), do outro lado, havia uma espécie de declive acentuado, arborizado, e, lá embaixo, se localizava um grande casarão de fazenda, já muito velho e caindo os torrões das paredes e podres as tábuas do assoalho (nesse casarão velho, de propriedade do senhor Delilo Coutinho, moramos também, posteriormente; hoje, a Casa-Fazenda já não existe e ali se localiza o tal Anel Rodoviário, passando um viaduto por cima do rio, e, com isto, distribuindo a estrada em várias direções). O cenário, no qual eu costumava entreter-me com outras crianças (com brincadeiras-mil), naquele tempo e até hoje, estava sempre a oferecer, a olhos infantis privilegiados, muitas árvores frutíferas, e, para completar o panorama de pura maravilha, lá em baixo, próximo ao velho casarão, passava o rio Carangola. Ali, naquele lugar, passei maravilhosos momentos quando criança.
Mas, como eu estava contando, a janta estava demorando a sair do fogão para nossos estômagos famintos. E Mamãe conversava, conversava, conversava com a Tia Fizica, e mastigava, mastigava, mastigava, alguns pedaços de carne de porco e carne de frango e provas de comida, assim como também a Tia Fizica. E a Tia Fizica rememorizava todos os casos acontecidos na roça, contando todos os episódios tim-tim-por-tim-tim. O Papai dormia, com fome, coitado!, na cama grande do quarto da frente. E eu, Menininha Sonhadora!, cochilava com fome também no quartinho da sala.
De repente (eis aí o maravilhoso sonho de meus sete anos!), o rio Carangola já estava diante do grande terreiro de nossa casa, já não havia estrada de rodagem coisíssima nenhuma; em baixo, já não existia nenhuma casa-fazenda caindo aos pedaços, não senhor!, nem mesmo árvores frutíferas, nem nada. Somente um largo rio (que já não era o rio Carangola), parecendo um imenso braço de mar de tão grande, separando a nossa casinha sem magnificência da visão magnificente de uma brilhante Cidade, que ficava lá, longe, diluída na paisagem e nos reflexos do grande rio, extenso... extenso... extenso...
No meu sonho infantil, olhei maravilhada a aparição, e, imediatamente, surgiu ante os meus olhos espantados uma longa e grossa tora de madeira, presa nas duas margens como se fosse uma longa longa longa ponte, unindo a minha casinha de roça à Grande Cidade, que se avistava ao longe.
Pela minha perspectiva inocente, a Cidade longínqua era grandiosa. Vi casas e ricos sobrados, maravilhosamente iluminados. E era dia! O sol os iluminava. E eu quis atravessar a ponte de tora de madeira e ir para o outro lado. E eu era uma menina de sete anos, bem caipirinha, bem roceirinha, bem o adjetivo inferiorizado que você quiser (não s’esqueça; eu não conhecia nenhuma grande Cidade).
Comecei a caminhar, procurando equilibrar-me em cima da tora que ficava sobre o imensurável rio de meu sonho infantil. Caminhei até à metade.
No meio do rio, depois de ter caminhado por um longo tempo, sempre me equilibrando, comecei a sentir frio e medo. Minhas pernas infantis já não colaboravam com a minha ânsia de atravessar o rio e ir para o outro lado, onde se localizava o estupendo cenário. As pernas falharam, eu escorreguei no liso da tora, e me vi sentada, com as pernas abertas sobre a tora de madeira, com muito medo de cair naquelas águas claras e tranquilas. O rio era um espelho tranquilo. Não me lembro de águas revoltas. Sentada (montada, com as pernas abertas ─ em forma de ípsilon de cabeça para baixo ─ sobre a tora de madeira), eu procurava movimentar-me, por certo sentada, dando impulso, elevando o corpo, sempre para frente. Quase chegando ao outro lado, vi-me em apuros, prestes a cair naquelas águas espelhadas e profundas. Em desequilíbrio, eu murmurava: ui!, ui!, ui!, olhando sempre em direção à Grande Cidade.
Não cai. E não voltei para trás no sonho, pois acordei.
Acordei com a Mamãe me perguntando: “O que ocê tá sentindo, Neuza? Por que ocê tá gemendo ui!, ui!, ui!?”. “Não estou sentindo nada não, Mamãe! Estava sonhando um sonho bão demais da conta! A senhora me acordou, antes d’eu chegar à cidade!... Já tem janta, Mamãe?”. E Mamãe a rir às bandeiras despregadas: “Que janta o quê, Neuza? Já é de manhã. Ocê dormiu sem janta. Um sono só, desde quatro da tarde de ontem. Não quis acordar ocê não. Ocê vai mais é tomar café, menina!, e ir logo p’ru Grupo Escolar, porque hoje já é segunda-feira!
Anos depois, já estávamos morando na Grande Cidade do Rio de Janeiro.
Em 1991, atravessei o Oceano Atlântico, sobre uma ponte de tora de madeira incrivelmente imaginária, pois olhava aquele marzão infinito da janelinha do avião. Viajava feliz, para conhecer algumas Cidades da Europa.
Em dezembro de 1995 e todo o ano de 1996, morei em Manaus, tendo por visão, o grande imenso e caudaloso rio Amazonas, visualizado em sonho aos sete anos de idade. Exatamente igual.
Em 1997, já de volta ao Rio de Janeiro, eu atravessava, todas as quartas-feiras, a Ponte Rio-Niterói, para trabalhar em São Gonçalo, como professora universitária. Nas idas e vindas, eu revivia o meu sonho dos sete anos. Tanto do lado do Rio de Janeiro, quanto do lado de Niterói, a minha perspectiva era sempre a mesma: uma longa ponte, um imenso rio-mar, e, bem próximas, duas magnificentes Cidades. Tudo exatamente igual.
Até hoje, as Grandes Cidades, as Longas Viagens e as Intermináveis Aventuras continuam em meus Sonhos de todas as noites. Os Caminhos da Roça, também. Graças a Deus! Felizmente, não perdi contato com as minhas raízes! Continuo direcionando os meus sonhos noturnos (manipulando-os), sempre para frente, até o final de meus dias, com o meu pezinho infantil ainda bem plantado em minhas emoções primordiais. Sem medo de ser feliz! Graças a Deus! Subidas íngremes (fáceis ou difíceis); tapetes brilhantes sendo puxados violentamente e maldosamente sob os meus pés com asinhas douradas; intermináveis elevadores, panorâmicos; longas estradas (de carro, ônibus, a pé, etc.); escadas infindas (sempre para cima, sim, senhor!; às vezes com dificuldade, outras vezes, com muita facilidade). Sonhos grandiosos! Sim senhor! Realidade comum! Muito trabalho! Pouco dinheiro! Sim senhor! Muita alegria! Tristeza, nunca!, de jeito nenhum! (vou driblando-as pela vida afora). Vida saudável e cabeça tranquila! Muita riqueza interior, sim senhor! Obrigada, meu Deus! Amém!
SONHOS DILATADOS E BEM LEMBRADOS: A LONGA PONTE DE TRONCO DE ÁRVORE E O LARGO RIO INFINITO - 1
NEUZA MACHADO
Na época do meu primeiro sonho (o que pretendo aqui relatar), eu já havia completado sete anos de vida no final do ano anterior. Minha família morava em uma casa de beira de estrada, no sopé da Serra dos Perons (uma montanha agrária que pertencia - ou pertence ainda - às inúmeras ramificações de um grande grupo familiar de origem italiana, cujo patriarca - penso eu - chamava-se Alexandre Peron). Era uma casinha de meeiro localizada no sítio do patrão de meu pai, o senhor Delilo Coutinho (irmão daquele famoso magnata do futebol brasileiro dos anos cinquenta e sessenta, o empresário Giulite Coutinho, anos depois presidente da CBF), casinha esta que se localizava na entrada/saída da cidade de Santa Luzia do Carangola de Minas Gerais, em direção à Estrada BR116 (onde atualmente existe um Anel Rodoviário, em bifurcação, pois, do lado esquerdo de quem vai para a BR116, a estrada se direciona a cidade de Divino, e, do lado direito, atravessando o rio Carangola, a mesma estrada vai a direção à Varginha e outras localidades adjacentes).
A mudança da casa velha (do Bairro de Santa Maria, onde eu nasci), uma casa antiga próxima ao grande Pontilhão de Ferro da Linha Ferroviária da Princesa Leopoldina, para aquela, a daquele momento, acontecera naqueles dias, imediatos ao dia do acontecimento desta minha narrativa. (O pontilhão, precioso, fabricado na Bélgica, e que se localiza, ainda hoje, nas imediações da já destacada casa velha, poderá ser apreciado em alguns Sites de Carangola). Assim, no meio dos entretantos do tal evento que desejo narrar, Mamãe diligenciava, muito ocupada com a arrumação de nossos poucos e usados móveis, em faina constante, muito trabalhadora e, por incrível que pareça, naquele dia, inigualável na cozinha (logo, a Mamãe!). Mamãe, naquele momento, encontrava-se atarefada com as panelas de ferro, pretas, sem polimento algum, e com o cozimento das refeições, e muito feliz na recente residência.
A bem da verdade, minha mãe não era lá muito fanática por arrumação de casa e, muito menos, com o brilho das panelas e horário de refeições. O fogão de lenha de nossa casa só fazia fumaça acionado por seu progredido estômago. O que eu quero dizer é que o horário das refeições, lá em casa, naquela época e em épocas posteriores, não acompanhava o tique-taque do relógio. Comíamos na hora em que Mamãe sentia fome.
Então! Então, naquele dia era um Domingo. Mamãe estava a receber a visita de sua irmã caçula, a Tia Fizica (que iria passar uns tempos em nossa casa). Mamãe matava algumas galinhas de nosso terreiro; retirava carne de porco das latas de gordura (carne temperada e cozida, mergulhada em banha de porco, para durar por algum tempo, pois, naquela época e nas pequenas Cidades, poucas famílias possuíam geladeira em casa); catava feijão para cozinhar em um grande panelão, cuja trempe se localizava em um fogareiro, do lado de fora da casa; e outras atividades mil. Por consequência, com tal azáfama, seu propósito era preparar um lauto jantar para nossa visita.
Mas, com todo esse movimento, o jantar estava demorando a ficar pronto. Por que? Porque as duas conversavam, e conversavam, e conversavam, e a esperada janta não saía de jeito nenhum. A janta, naquele tempo, era servida por volta das dezesseis horas, ou melhor, deveria ser servida nesse horário, mas nem sempre assim, se a cozinheira fosse semelhante à Mamãe. O almoço, como era o costume daquela época, nas cidadezinhas do interior de Minas Gerais, era servido às oito horas da manhã (isso, se a Mamãe acordasse antes das oito) e o café da tarde, geralmente, por volta de meio-dia, mais ou menos. A janta, por volta das quatro da tarde. Às vinte horas, pontualmente, era servida a ceia, enquanto ouvia-se a novela radiofônica (aquela que substituiu a incomparável novela de rádio O direito de nascer, adaptação em português de um dramalhão mexicano de uma famosa novelista chamada Glória Magadan). Pois dormíamos cedo, naquela época, só depois da novela do rádio.
(Esquecia-me de dizer que os adultos só tomavam café puro ao acordar, para iniciarem a lida. Somente as famílias muito ricas tinham o costume de um lauto café da manhã, com mesa posta e tudo. Evidentemente, não era assim em nossa casa).
Só que, em nossa casa, e por causa dos descontentamentos de Mamãe, a ceia das oito horas da noite coincidia, quase sempre, com o horário da janta. É bom recordar o fato de que o Papai saía cedo para o trabalho. O pobre tomava um cafezinho requentado, antes de sair de bicicleta em direção ao serviço, na cidade, como funcionário-guardião do Armazém de Cereais do Seu Delilo Coutinho.
Mas, naquele dia, era domingo. Eu e o Papai esperávamos pacientemente a janta, que estava custando a sair das pretas panelas de ferro não-polidas. Mamãe conversava e conversava com a tia Fizica (por nome Iolanda, na certidão de batismo).
E o caso estranho que quero relatar foi assim:
Devia ser umas cinco horas da tarde. Cansada de esperar pela janta (que estava custando a ser servida por Mamãe), recostei-me em um travesseiro de paina, na caminha de solteiro que ficava em um quarto-saleta próximo à cozinha. Papai já estava ressonando no quarto do casal, o quarto da frente. O dia estava meio frio. Agasalhei-me com uma cobertazinha fuleira (cobertura de pobre, também chamada de coberta-bicicleta, não sei por quê?), e envolvi-me em meus sonhos infantis, próprios de uma menina de sete anos. Não tardei a pegar no sono. E comecei a sonhar. E o sonho parecia real.
De verdade, extra-sonho, havia um largo terreirão em frente a tal casinha da estrada, aquela em que morávamos. Depois da estrada de rodagem (uma ramificação rudimentar da BR116-Estrada Rio-Bahia passando pela cidade de Carangola), do outro lado, havia uma espécie de declive acentuado, arborizado, e, lá embaixo, se localizava um grande casarão de fazenda, já muito velho e caindo os torrões das paredes e podres as tábuas do assoalho (nesse casarão velho, de propriedade do senhor Delilo Coutinho, moramos também, posteriormente; hoje, a Casa-Fazenda já não existe e ali se localiza o tal Anel Rodoviário, passando um viaduto por cima do rio, e, com isto, distribuindo a estrada em várias direções). O cenário, no qual eu costumava entreter-me com outras crianças (com brincadeiras-mil), naquele tempo e até hoje, estava sempre a oferecer, a olhos infantis privilegiados, muitas árvores frutíferas, e, para completar o panorama de pura maravilha, lá em baixo, próximo ao velho casarão, passava o rio Carangola. Ali, naquele lugar, passei maravilhosos momentos quando criança.
Mas, como eu estava contando, a janta estava demorando a sair do fogão para nossos estômagos famintos. E Mamãe conversava, conversava, conversava com a Tia Fizica, e mastigava, mastigava, mastigava, alguns pedaços de carne de porco e carne de frango e provas de comida, assim como também a Tia Fizica. E a Tia Fizica rememorizava todos os casos acontecidos na roça, contando todos os episódios tim-tim-por-tim-tim. O Papai dormia, com fome, coitado!, na cama grande do quarto da frente. E eu, Menininha Sonhadora!, cochilava com fome também no quartinho da sala.
De repente (eis aí o maravilhoso sonho de meus sete anos!), o rio Carangola já estava diante do grande terreiro de nossa casa, já não havia estrada de rodagem coisíssima nenhuma; em baixo, já não existia nenhuma casa-fazenda caindo aos pedaços, não senhor!, nem mesmo árvores frutíferas, nem nada. Somente um largo rio (que já não era o rio Carangola), parecendo um imenso braço de mar de tão grande, separando a nossa casinha sem magnificência da visão magnificente de uma brilhante Cidade, que ficava lá, longe, diluída na paisagem e nos reflexos do grande rio, extenso... extenso... extenso...
No meu sonho infantil, olhei maravilhada a aparição, e, imediatamente, surgiu ante os meus olhos espantados uma longa e grossa tora de madeira, presa nas duas margens como se fosse uma longa longa longa ponte, unindo a minha casinha de roça à Grande Cidade, que se avistava ao longe.
Pela minha perspectiva inocente, a Cidade longínqua era grandiosa. Vi casas e ricos sobrados, maravilhosamente iluminados. E era dia! O sol os iluminava. E eu quis atravessar a ponte de tora de madeira e ir para o outro lado. E eu era uma menina de sete anos, bem caipirinha, bem roceirinha, bem o adjetivo inferiorizado que você quiser (não s’esqueça; eu não conhecia nenhuma grande Cidade).
Comecei a caminhar, procurando equilibrar-me em cima da tora que ficava sobre o imensurável rio de meu sonho infantil. Caminhei até à metade.
No meio do rio, depois de ter caminhado por um longo tempo, sempre me equilibrando, comecei a sentir frio e medo. Minhas pernas infantis já não colaboravam com a minha ânsia de atravessar o rio e ir para o outro lado, onde se localizava o estupendo cenário. As pernas falharam, eu escorreguei no liso da tora, e me vi sentada, com as pernas abertas sobre a tora de madeira, com muito medo de cair naquelas águas claras e tranquilas. O rio era um espelho tranquilo. Não me lembro de águas revoltas. Sentada (montada, com as pernas abertas ─ em forma de ípsilon de cabeça para baixo ─ sobre a tora de madeira), eu procurava movimentar-me, por certo sentada, dando impulso, elevando o corpo, sempre para frente. Quase chegando ao outro lado, vi-me em apuros, prestes a cair naquelas águas espelhadas e profundas. Em desequilíbrio, eu murmurava: ui!, ui!, ui!, olhando sempre em direção à Grande Cidade.
Não cai. E não voltei para trás no sonho, pois acordei.
Acordei com a Mamãe me perguntando: “O que ocê tá sentindo, Neuza? Por que ocê tá gemendo ui!, ui!, ui!?”. “Não estou sentindo nada não, Mamãe! Estava sonhando um sonho bão demais da conta! A senhora me acordou, antes d’eu chegar à cidade!... Já tem janta, Mamãe?”. E Mamãe a rir às bandeiras despregadas: “Que janta o quê, Neuza? Já é de manhã. Ocê dormiu sem janta. Um sono só, desde quatro da tarde de ontem. Não quis acordar ocê não. Ocê vai mais é tomar café, menina!, e ir logo p’ru Grupo Escolar, porque hoje já é segunda-feira!
Anos depois, já estávamos morando na Grande Cidade do Rio de Janeiro.
Em 1991, atravessei o Oceano Atlântico, sobre uma ponte de tora de madeira incrivelmente imaginária, pois olhava aquele marzão infinito da janelinha do avião. Viajava feliz, para conhecer algumas Cidades da Europa.
Em dezembro de 1995 e todo o ano de 1996, morei em Manaus, tendo por visão, o grande imenso e caudaloso rio Amazonas, visualizado em sonho aos sete anos de idade. Exatamente igual.
Em 1997, já de volta ao Rio de Janeiro, eu atravessava, todas as quartas-feiras, a Ponte Rio-Niterói, para trabalhar em São Gonçalo, como professora universitária. Nas idas e vindas, eu revivia o meu sonho dos sete anos. Tanto do lado do Rio de Janeiro, quanto do lado de Niterói, a minha perspectiva era sempre a mesma: uma longa ponte, um imenso rio-mar, e, bem próximas, duas magnificentes Cidades. Tudo exatamente igual.
Até hoje, as Grandes Cidades, as Longas Viagens e as Intermináveis Aventuras continuam em meus Sonhos de todas as noites. Os Caminhos da Roça, também. Graças a Deus! Felizmente, não perdi contato com as minhas raízes! Continuo direcionando os meus sonhos noturnos (manipulando-os), sempre para frente, até o final de meus dias, com o meu pezinho infantil ainda bem plantado em minhas emoções primordiais. Sem medo de ser feliz! Graças a Deus! Subidas íngremes (fáceis ou difíceis); tapetes brilhantes sendo puxados violentamente e maldosamente sob os meus pés com asinhas douradas; intermináveis elevadores, panorâmicos; longas estradas (de carro, ônibus, a pé, etc.); escadas infindas (sempre para cima, sim, senhor!; às vezes com dificuldade, outras vezes, com muita facilidade). Sonhos grandiosos! Sim senhor! Realidade comum! Muito trabalho! Pouco dinheiro! Sim senhor! Muita alegria! Tristeza, nunca!, de jeito nenhum! (vou driblando-as pela vida afora). Vida saudável e cabeça tranquila! Muita riqueza interior, sim senhor! Obrigada, meu Deus! Amém!
Um comentário:
Alexandre Peron é meu tataravô italiano. Que bacana !
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