NEUZA MACHADO
UM RUMO DIFERENTE PARA O PERSONAGEM
NEUZA MACHADO
Retomando o fio narrativo de A Hora e Vez de Augusto Matraga (de Guimarães Rosa), verei um personagem novamente em vias de mudança. O narrador diz que Nhô Augusto não percebia os rumos que tomava. Isto, porque o Criador ficcional e sua criatura se estão transformando.
Nhô Augusto começa a sentir saudade da antiga vida, das mulheres. O lado mundano recomeça a latejar em seu sangue. Está mudado, mas não desiste de seu propósito: “— Cada um tem a sua hora, e a minha vez há de chegar!”
Esta frase daqui para frente será o único elemento que sustentará o fio narrativo.
Um dia resolve voltar.
Volta sozinho. O líder carismático readquire a pele do poder sócio-político tradicional? Não penso assim. A lógica do Acontecimento (padrão ficcional do século XX) comandará a narrativa roseana de ora em diante. Volta só, porque apenas os verdadeiros carismáticos necessitam de discípulos, e ele, como autêntico herdeiro do “ontem eterno”, já abandonou este revestimento. Volta em um jumento à imitação de Jesus. Ainda possuindo seus dons, pois que os adquirira por mérito; tanto os possuía que todos sentiram a partida. Seu desejo de salvação continua intacto, mas não suporta mais o peso do carisma. “— Qualquer paixão me adiverte!... Oh coisa boa a gente andar solto, sem obrigação nenhuma e bem com Deus!...”
“Andar solto, sem obrigação nenhuma”, livre dos limites substanciais e normativos, sob o comando dos imprevistos, do não-conhecido, e, principalmente, de bem com Deus.
Esse novo deus (ficcional) diferente do antigo: depois da partida de seu Joãozinho, observa-se uma crítica do narrador, quando este mostra Nhô Augusto a lamentar não ter aceitado o oferecimento, para, com isto, vingar-se de seus inimigos. Mas, reconhece que se agisse movido pela vingança, “Deus o castigava com mão mais dura”.
“E só então foi que ele soube de que jeito estava pegado à sua penitência, e entendeu que essa história de se navegar com religião, e de querer tirar sua alma da boca do demônio, era a mesma coisa que entrar num brejão, que, para a frente, para trás e para os lados, é sempre dificultoso e atola sempre mais” (A Hora e Vez de Augusto Matraga).
Para solucionar o impasse, o narrador recorre à imaginação. Agora (“deus que garante tudo”), já tem acesso à interioridade de sua criatura:
“Á noite, tomou um trago sem ser por regra, o que foi bem bom, porque ele viajou, do acordado para o sono, montado num sonho bonito, no qual havia um Deus valentão, o mais solerte de todos os valentões, assim parecido com seu Joãozinho Bem-Bem, e que o mandava ir brigar, só para lhe experimentar a força, pois que ficava lá em-cima, sem descuido, garantindo tudo” (Op. cit.).
Graças ao sonho, Nhô Augusto entra em contato com um "deus que garante tudo", passa a andar solto e de bem com Deus; entra em reciprocidade com um deus valentão que o mandava brigar só para experimentar-lhe o poder.
O narrador de Guimarães Rosa (narrador de meados do século XX) também está solto, sem obrigação nenhuma e sob as ordens desse "deus-que-garante-tudo".
Mudanças ocorrem no discurso. O narrador incomodado se deixa contagiar pelas minúcias do mundo externo do sertão que estão recolhidas em seu íntimo. Recolhe os fragmentos de suas lembranças, transformando-as em acontecimentos. Há uma superabundância de pensamentos que se entrechocam e se ajustam, e o discurso retórico (característica do literário, segundo Maurice-Jean Lefebve), impõe suas diretrizes.
“De repente, na altura, a manhã gargalhou: um bando de maitacas passava, tinindo guizos, partindo vidros, estralejando de rir. E outro. Mais outro. E ainda outro, mais abaixo, com as maitacas verdinhas, grulhantes, gargalhantes, incapazes de acertarem as vozes na disciplina de um coro.
E agora os periquitos, os periquitinhos de guinchos timpânicos, uma esquadrilha sobrevoando outra... E mesmo, de vez em quando, discutindo, brigando, um casal de papagaios ciumentos. Todos tinham muita pressa: os únicos que interromperam, por momentos, a viagem, foram os alegres tuins, os minúsculos tuins de cabecinhas amarelas, que não levam nada a sério, e que choveram nos pés de mamão e fizeram recreio, aos pares, sem sustar o alarido — rrrl, rrril! rrrl-rrril!...” (Op. cit.).
O insólito da ficção em nível de discurso textual: os fonemas r, i, l agrupados de forma a caracterizarem o alarido dos tuins. Por que a manhã gargalhou com a revoada dos pássaros?
“Mas o que não se interrompia era o trânsito das gárrulas maitacas. Um bando grazinava alto, risonho, para o que ia na frente: — Me espera!... — E o grito tremia e ficava nos ares, para outro escalão, que avançava lá atrás” (Op. cit.).
Os estranhamentos, em nível de discurso, nas transformações sofridas pelo narrador e pelo narrado. Estes se encontram sob as exigências do mágico mundo ficcional e todas as contribuições poéticas serão bem-vindas. A mimésis literária ficcional (mimésis indireta) se sobressai apenas no texto visível. Nhô Augusto é um simples receptor das variações mentais de quem narra. Agora, o discurso é poético, repleto de metáforas, antíteses e estranhamentos. Agora, o narrador faz seu personagem cantar velhas cantigas e encantar-se com a natureza.
Os estranhamentos, o insólito irrompendo do texto:
“E Nhô Augusto pegou a cantar a cantiga, muito velha, do capiau exilado:
“Eu quero ver a moreninha tabaroa,
arregaçada, enchendo o pote na lagoa...”
Cantou, longo tempo. Até que todas as asas saíssem do céu” (Op. cit.).
“Asas” conotando “pássaros”. “Asas” impondo a visualização da grandiosidade do espetáculo do bando de maitacas, maracanãs e tuins voando em direção ao sul, em períodos cíclicos. (Futuramente, ao Sul: ele vai tentar o retorno, mas não conseguirá).
Outro estranhamento. Depois que os pássaros passam, ele raciocina: “Não passam mais... Ô papagaiada vagabunda! Já devem de estar longe daqui...” A seguir, observa-se a perplexidade do narrador, comandando o ato de narrar: “Longe, onde?”, se não há distâncias geográficas no mundo da ficção. Eis o insólito. Há uma intercalação de versos, através do ato de cantar de Nhô Augusto.
“Como corisca, como ronca a trovoada,
No meu sertão, na minha terra abençoada...” (Op. cit.)
O narrador apresentara um bonito dia ensolarado. Novamente, impõe sua perplexidade, diante de uma descoberta que se delineia subjetivamente, ainda incubada: Longe, onde? Intercala outros versos, obrigando o leitor (também incomodado) a perceber um discurso insólito.
“Quero ir namorar com as pequenas,
com as morenas do Norte de Minas...” (Op. cit.)
Como desejar namorar as morenas do Norte de Minas, se ele se encontra no Norte? “Longe, onde”, então?
“Norte” é o símbolo do mundo ficcional. No literário não há fronteiras ("Longe, onde?"), não há distancias temporais, não há imposições linguísticas, não impera a lógica da razão. “Longe, onde?”, se tudo é possível em um mundo de um "deus-que-garante-tudo".
O personagem, agora, é o somatório de todos os heróis, quer sejam humanos ou literários: Jesus, cavaleiro medieval, cavaleiro andante, Quixote, pícaro. Seu retorno é pautado por acontecimentos díspares, poéticos e insólitos. Não há metas a alcançar, não há pressa de se chegar a um determinado sítio. A viagem de Nhô Augusto, de volta ao seu local de origem, é um passeio poético, passeio do narrador, visitando as recordações do sertão misturadas às lembranças de antigas narrativas. Para não se afastar totalmente do mundo da ficção, se vale do burrico, a montaria de Nhô Augusto, deixando a critério do animal os rumos da viagem (da narrativa). A “desorientação verbal” (cf. Benjamin) demonstra a impossibilidade de se desenvolver uma narrativa memorialista em um mundo que já perdeu suas características comunitárias. Assim, Nhô Augusto, solto e de bem com “deus”, sofre um novo imprevisto.
MACHADO, Neuza. O Narrador Toma a Vez: Sobre A Hora e Vez de Augusto Matraga de Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: NMachado, 2006 – ISBN 85-904306-2-6