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segunda-feira, 30 de agosto de 2010

A DIMENSÃO SÓCIO-SUBSTANCIAL EM A HORA E VEZ DE AUGUSTO MATRAGA

NEUZA MACHADO


A DIMENSÃO SÓCIO-SUBSTANCIAL EM A HORA E VEZ DE AUGUSTO MATRAGA

NEUZA MACHADO


No intuito de construir um estudo centralizado no texto, procurei pensar a narrativa A hora e vez de Augusto Matraga
de Guimarães Rosa partindo do processo literário de criação: a técnica do Artista, seu método de execução de trabalho, a forma de apreender o Histórico e de transformá-lo em realidade ficcional.

Segundo Anazildo Vasconcelos:

“Na narrativa de semiotização do acontecimento, a identidade do personagem com o espaço é rompida por um acontecimento, cuja lógica significativa, aliada ao fio narrativo, submete espaço e personagem à logicidade estrutural da proposição de realidade ficcional. Desarticulados, personagem e espaço tornam-se impotentes diante do acontecimento. Incapazes de reduzirem-no às suas lógicas significantes respectivas, não conseguem recuperar a imagem do mundo estruturada, anterior ao acontecimento, e restabelecer a identidade perdida” (SILVA, Anazildo Vasconcelos. Semiotização Literária do Discurso
).

Ao desenvolver um modelo de trabalho, constatei que a narrativa se encaixava, em termos de padrões ficcionais, na narrativa de semiotização do acontecimento, de acordo com as observações teórico/semiológicas de Anazildo Vasconcelos, porque todo o sentido desta construção ficcional roseana se estrutura a partir de um acontecimento
que vem abalar o aparentemente sólido posicionamento sócio-substancial do personagem principal. Nhô Augusto comanda seu espaço vivencial e este, por sua vez, submete-se às suas exigências. Senhor absoluto de um pequeno lugarejo do sertão, o personagem se encontra, nas primeiras linhas, em toda a sua plenitude. Destaca-se como figura respeitada, temida, amada (observar, por exemplo, as atitudes servis do personagem Quim Recadeiro) e odiada, dando a impressão, em princípio, de colocar-se como representante de narrativa de personagem (característica de narrativa romântica). Esta impressão é desfeita nas sequências seguintes em virtude do Inesperado que se avizinha, e que sujeitará o personagem à lógica do acontecimento.

A mola propulsora que desencadeia o desmoronamento sócio-substancial e vivencial do personagem se situa a partir de um “leilão de atrás de igreja, no arraial da Virgem Nossa Senhora das Dores do Córrego do Murici” (A Hora e Vez de Augusto Matraga). Este leilão é o “acontecimento, cuja lógica significante, aliada ao fio narrativo, submete espaço e personagem à logicidade estrutural da proposição de realidade ficcional” (Anazildo Vasconcelos). Esta assertiva de Anazildo Vasconcelos esclarece e embasa-me, quando passo a observar gradativamente o jogo discursivo do narrador, no qual se observa, após a queda do personagem Nhô Augusto, a imposição provisória do espaço (o personagem é punido e se submete temporariamente aos limites impostos), a tentativa de emancipação, o conflito (personagem X espaço) que se instaura a partir da chegada do Tião, trazendo notícias que ninguém não tinha pedido (em A Hora e Vez de Augusto Matraga, a lógica do acontecimento sujeitando espaço e personagem), a chegada do bando de seu Joãozinho Bem-Bem significando o imprevisto dentro da narrativa, o convite de seu Joãozinho a Nhô Augusto, para que se amadrinhasse
com o seu bando, o desejo de aceitar e o medo de ser castigado. Por último, a reemancipação de Nhô Augusto, que não se efetua em termos de narrativa de personagem, porque, mesmo atingindo a plenitude, por meio de uma morte gloriosa, santificada, sua trajetória ficcional termina sob a imposição da lógica do acontecimento.

O personagem, ao retornar, visava a sua reestruturação social. Se antes, enquanto carismático, repetia sua jaculatória, tendo por finalidade unicamente a sua entrada no céu depois da morte, agora, que a submissão havia sido superada, destaca-se em toda a sua plenitude a dimensão sócio-ficcional. Percebe-se, nas páginas seguintes, que o personagem Nhô Augusto passa a comandar suas ações, porque o narrador roseano será, de agora em diante, senhor absoluto do seu ato de narrar, mesmo desconhecendo os rumos de sua narrativa (Narrativa de Acontecimento).

“E somente por hábito, quase, era que ia repetindo: — Cada um tem a sua hora, e há de chegar a minha vez!” (A Hora e Vez de Augusto Matraga
).

“Tanto assim, que nem escolhia, para dizer isso, as horas certas, às três horas fortes do dia, em que os anjos escutam e dizem amém...” (A Hora e Vez de Augusto Matraga
).

Ele que já não olhava para “o bom parecer das mulheres” retornava ao antigo hábito: “Do outro lado da cerca, passou uma rapariga. Bonita! Todas as mulheres eram bonitas. Todo anjo do céu devia ser mulher” (A Hora e Vez de Augusto Matraga). Esta citação prova que o personagem pretende recuperar seus poderes sócio-substanciais: a fé sofre modificações. O narrador, alter ego
de quem escreve, a observa através de seu próprio ponto de vista. Mas o imprevisto, submetido às lembranças, está presente, pronto para agir, e isto só se faz visível extratexto, por intermédio dos estranhamentos linguísticos, não em nível narrativo.

A propósito, destaco uma observação de Anazildo, a respeito do Realismo Mágico, resguardando a diferença de que a narrativa em questão não se situa dentro desta modalidade, mas, como base de apreensão teórica, o processo é idêntico.

“A imagem de mundo só é percebida como absurda, ou anormal, de fora, interpretativamente, por quem guarda uma outra experiência existencial” (Anazildo Vasconcelos).

A partir da chegada do personagem passageiro Tião da Teresa até o final há estranhamentos ao nível do discurso, e isto comprova o desejo do narrador roseano de interferir em sua narrativa, para que esta não se situe como singela reprodução da realidade.

Por uma perspectiva simplista, poderia afirmar que esta narrativa de Guimarães Rosa é realista, por procurar marcar o tradicional, o regional, por intermédio do método de contar estórias, mas não poderei fazer tal afirmativa, em virtude de a mesma romper com seus limites, por meio de um manejo linguístico complexo ao nível da estrutura narrativa. Por este prisma, o próprio narrador roseano agencia o insólito, utilizando-se de um estranhamento linguístico que foge aos padrões normais de uma narrativa de informação.

Por meio desses estranhamentos — o envolvimento do narrador com a matéria narrada, seus questionamentos, assombros, sua própria surpresa diante dos imprevistos, sua atitude de cúmplice com o leitor, o que normalmente seria o inverso — a lógica do acontecimento atua e o que aparentemente é uma vitória do personagem, nada mais é do que a vitória do acontecimento.

O narrador se surpreende e questiona o próprio discurso, procurando compreender e decifrar a desordem mental
(característica do narrador do século XX) em que se acha envolvido; assim passa a agir como experimentalista, buscando novas formas de apresentar o seu discurso ficcional, e estes sinais demonstram que, a partir daí, a sua própria lógica passará a atuar, e não a do personagem. O acontecimento, de ora em diante, será a força energética que estruturará o ato de narrar. Se a lógica do personagem atuasse deveras, até o final da narrativa, como em princípio se supõe, ele direcionaria seus impulsos existenciais, e não é isto o que se observa.

“Quando ele encostou a enxada e veio andando para a porta da cozinha, ainda não possuía idéia alguma do que ia fazer. Mas, dali a pouco, nada adiantavam, para retê-lo, os rogos reunidos de mãe preta Quitéria e de pai preto Serapião” (A Hora e Vez de Augusto Matraga
).

Seu retorno é pautado por um discurso intrincado, centrado no significante. Já não se observa mais a linguagem comum da ficção linear. O personagem fez sua viagem de volta ao sabor do acaso, e este acaso se estrutura a partir das divagações poéticas do narrador (matéria lírica interagindo com a matéria da narrativa em prosa). É um discurso revelador de ambigüidades e conotações — os quais caracterizam o discurso poético —, descrições de cenas pictóricas, cantigas, exclamações, interrogações, provérbios.

Entre marchas e contramarchas (de Nhô Augusto e do narrador),

“(...) somada as léguas e deduzidos os desvios, vinham eles sempre para o sul, na direção das maitacas viajoras. Agora, amiudava-se o aparecimento de pessoas – mais ranchos, mais casas, povoados, fazendas; depois, arraiais, brotando do chão. E então, de repente, estiveram a muito pouca distância do arraial do Murici” (A Hora e Vez de Augusto Matraga
).

No desenrolar dos acontecimentos, o personagem esperara "sua hora e vez" por meio da lógica do espaço (sua fé religiosa), e posteriormente por intermédio da lógica do personagem (o desejo de reestruturar-se). O arraial do Murici, povoado onde se inicia o desequilíbrio
existencial de Nhô Augusto, teria de ser o cenário no qual se daria a sua recuperação, porque o dito arraial, no plano narrativo, representa e concentra os problemas da modernidade. O retorno não se efetua porque a lógica do acontecimento possibilita novos sucessos imprevistos à narrativa. Esses imprevistos são sempre estruturados a partir do personagem (nitidamente ficcional) Joãozinho Bem-Bem.

Quase chegando ao seu arraial de origem, Nhô Augusto é levado por sua montaria, ao arraial do Rala-Coco, “onde havia, no momento, uma agitação assustada de povo” (A Hora e Vez de Augusto Matraga). Há o reencontro com seu
Joãozinho e a jagunçada; há a reafirmação do convite; há o desejo de aceitar; mas há também a recusa, por saber que, por ter vivenciado e se ligado a valores espirituais, continuava preso à sua promessa. Posso dizer, pelo ponto de vista da interpretação extratexto, que sua hora e vez teria de chegar, mas sem que abdicasse de todas as formas de poder que conhecera em sua vida.

Os outros imprevistos são a notícia da morte do Juruminho, a chegada do velho desvalido e a defesa instintiva de Nhô Augusto — fatos que colaboram para que o desfecho se situe dentro dos desígnios do acontecimento. O personagem e o espaço se submetem a logicidade estrutural da proposição de realidade ficcional
reivindicada pelo momento histórico (cf. Anazildo Vasconcelos, op. cit.). Por último, como elemento desencadeador do conflito final, visualiza-se a figura do jagunço Teófilo Sussuarana agindo impensadamente e destruindo a possibilidade de reestruturação.

"Joãozinho Bem-Bem se sentia preso a Nhô Augusto por uma simpatia poderosa, e ele nesse ponto era bem assistido, sabendo prever a viragem dos climas e conhecendo por instinto as grandes coisas. Mas Teófilo Sussuarana era bronco, excessivamente bronco, e caminhou para cima de Nhô Augusto. Na sua voz:

— Epa! Nomopadrofilhospritossantamêin! Avança, cambada de filhos-da-mãe, que chegou minha vez!...” (A Hora e Vez de Augusto Matraga
)

Sua hora e vez” — e esta frase é o ponto básico da narrativa — chega inesperadamente. O personagem Nhô Augusto só se dá conta de que “sua vez” chegara na hora da luta. O personagem passageiro Teófilo Sussuarana se destaca como elemento de interseção, o agenciador do acontecimento. Há a mortal luta entre Nhô Augusto e Joãozinho Bem-Bem. Os dois personagens roseanos morrem em condições idênticas. Nesta narrativa não há vencedores. Os dois iguais serão enterrados em chão sagrado
, ou seja, ficcional.


MACHADO, Neuza. O Narrador Toma a Vez: Sobre A Hora e Vez de Augusto Matraga de Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: NMachado, 2006 – ISBN 85-904306-2-6

Um comentário:

Unknown disse...

Minha professorinha mãezona.
Posso não comentar muito no seu blogue mas gosto muito de alimentar-me na sua fonte. (Ai, meus sais! Será que usei o pt-br direitinho?..rs)

Esse semestre já vi que não será nada fácil, pois ainda nem me decidi sobre o tal pré-projeto do Seminário de Pesquisa I. Pode escrever: até o final do semestre escolar, passarei por um período de intensa loucura de tudo. :)

É um prazer tê-la novamente numa das disciplinas do curso.

Bjs carinhosos