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terça-feira, 2 de novembro de 2010

MÁRIO QUINTANA E A PALAVRA ANÊMONA

NEUZA MACHADO


MÁRIO QUINTANA E A PALAVRA ANÊMONA

NEUZA MACHADO


O primeiro passo para a análise de uma obra ou até mesmo de um poema é aquele mais primitivo que existe: ler e sentir (e aqui vou apreciar apenas alguns versos que falam muito da criatividade lírica de Mário Quintana). É próprio do ser humano deixar-se levar pela emoção, pelos sentimentos, pelo prazer estético, e isto também em relação às leituras.

A verdade é que estas atitudes telúricas não oferecem a compreensão do valor estético de uma determinada obra. De qualquer maneira, é assim que se começa. Depois, aos poucos, o principiante torna-se veterano e descobre que um universo de emoções maiores (de prazeres maiores) esconde-se (um universo) nas entrelinhas de uma escrita literária; que é extraordinário (atentar para a etimologia da palavra) desvendar os mistérios, preencher os espaços imaginários oferecidos pelo autor. Nesse momento, o prazer deixa de ser apenas estético, pois aquele que se percebeu envolvido pela leitura já não é simplesmente leitor, é muito mais, pois se revela um analista e/ou intérprete do texto literário que o faz pensar. O prazer da leitura deixa de ser telúrico porque, havendo a aproximação entre a apreciação emotiva e a apreciação racional, o poema (ou obra narrativa) torna-se um ponto de partida para o reconhecimento profundo da própria capacidade de análise e interpretação somada à sensibilidade de quem o avalie.

O que é Poesia, o que é ser Poeta para Mário Quintana?


O POEMA


Um poema como um gole dágua bebido no escuro.
Como um pobre animal palpitando ferido.
Como pequenina moeda de prata perdida para sempre na floresta noturna.
Um poema sem outra angústia que a sua misteriosa condição de poema.

Triste.
Solitário.
Único.
Ferido de mortal beleza.

Para o poeta Mário Quintana (poeta do século XX), o sentido de poema abrange várias conotações. Para quem o lê, sedento de emoções, é semelhante a um copo de água que mata a sede. Mas, é também algo vivo, palpitante, sofrido, pois o poema é a extensão dos próprios sofrimentos do poeta, nascido da mais profunda de suas angústias pessoais, e por isso mesmo é precioso, misterioso, solitário. Além disso, é pequenino como uma moeda de prata. Realmente, o poema é a condensação máxima dos sentimentos interiores. A característica maior do poema lírico é a brevidade.

Ou, então, no poema “Passarinho”, quando ele diz que “um poema é algo assim como um passarinho engaiolado”, e que, “para apanhá-lo vivo, é preciso um meticuloso cuidado que nem todos têm”.

Esse cuidado é a sensibilidade do poeta, é a sua poesia interior; é a paciência de esperar o momento adequado para a inspiração tomar forma. Não se faz um poema em meio ao barulho; é preciso silêncio, concentração e esperteza, para não deixar o momento passar. O tempo para a realização do poema é curto, a disposição anímica é passageira, e o poeta se vê na condição de caçador de um instante que não mais se repetirá. Bastará uma pequena interrupção, um quase inaudível barulhinho, e todo o processo de criação não se realizará.

Um poeta da estética modernista, como, por exemplo, é o caso de Mário Quintana, aproveita-se da quebra da inspiração para inserir no poema um fecho humorístico. Esta atitude modernista observa-se no final deste mesmo poema (“Passarinho”). O poeta vai, gradativamente, transcrevendo sua inspiração (que ia passando, voando, e ele apreendendo a própria intuição, criando neologismos inspirados), até que, de repente, acontece um deslocamento. A tensão lírica transforma-se em humor, simplesmente porque o poeta utiliza, no verso final, palavras que não condizem com seu lírico estado anímico. Quintana, ao finalizar seu poema com a exclamação “Vaca! Escafedeu-se!”, utiliza o tal fio imaginário, realçado por Vítor Hugo, em seu Prefácio ao Cromwell, e que liga o sublime ao grotesco.

Também uma interjeição poderá originar um poema. A atitude de espanto, de surpresa, ante as pequeninas atrações da vida, e que somente o poeta percebe, poderão transformar-se no início das formas de um poema. Isto nos prova que além da inspiração deverá haver o sentimento.

Repensemos agora este outro poema de Mário Quintana que começa assim: “A beleza dos versos impressos em livroserena beleza com algo de eternidade”. Os versos de um poema têm, para o poeta Quintana, “algo de eternidade”, porque, ao serem grafados no papel e, posteriormente, alcançando o valor de Arte e superando as barreiras de seu próprio tempo e espaço, tornam-se imortais (pelo menos enquanto houver um leitor que os aprecie esteticamente). Graças a esta aceitação atemporal, transformam-se em “misteriosos cântaros”, em “frágeis prateleiras de vidro”, em algo silencioso, solitário, etc. Aqui se percebe uma contribuição da lírica estética romântica: a idéia de mistério, silêncio, solidão.

Mas esses versos de Mário Quintana não são tão silenciosos que não possam ser distinguidos, ouvidos pelo leitor. Cada um dos versos “tem um timbre diverso de silêncio.../ Só tua alma (a alma do leitor) distingue seus diferentes passos, / Quando o único rumor em teu quarto / É quando voltas de alma suspensa mais uma página / Do livro...” A alma do leitor sensível deve estar em assombrosa comunhão com o poema e sentir dentro de si as vibrações angelicais, como se fosse um milagre. Sentir até mesmo o barulho das asas dos anjos. O verso para Quintana seria então algo sublime, descido do céu.

Mas as rimas de um poema, segundo a criatividade poético-lírica de Mário Quintana, transformam-se em várias coisas. Poder sem igual o do Poeta! Não é atoa que ele se sente um “rei Midas”. Assim, algo tão divino, angelical, pode tornar-se, também, tremendamente humano e transformar-se, imprevistamente, em uma “pesca maravilhosa”. Para Quintana, as rimas não são privilégio de um só poeta. “Dêem-se as mesmas rimas a diferentes poetas e de cada poeta brotará um poema diferente”. Para Quintana, a sensibilidade é fundamental e, “se o rio do poeta não for lá muito piscoso”, isto é, se não houver inspiração e sensibilidade, a poesia não sairá perfeita.

Submetida (aqui) à condição de analista/intérprete de alguns criativos e singulares versos de Mário Quintana, interagindo com seus pensamentos poéticos, penso que não são necessárias muitas palavras para exprimir um poema-arte. Às vezes, basta uma palavra, uma pequena e pulsante palavra que contenha um mundo de significações. “Basta que digas (por exemplo) a palavra anêmona / E tudo esquecerás, enredado na sua / Fantasmagórica palpitação”.

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