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terça-feira, 14 de setembro de 2010

A AURA DO HERÓI SERTANEJO DE ANTIGAS CONTENDAS

NEUZA MACHADO



A AURA DO HERÓI SERTANEJO DE ANTIGAS CONTENDAS

NEUZA MACHADO


Recupero agora os dados que remetem à aura do herói de antigas contendas (em A Hora e Vez de Augusto Matraga de Guimarães Rosa): houve um deslocamento de gentes porque a figura imponente do personagem, alteado, peito largo, vestido de luto (a cor negra como símbolo de respeito) se agigantava, diminuindo ainda mais o povo, já por si pequeno na escala social. Nhô Augusto, Zeus sertanejo, pisando pés dos outros, não se incomodando em destruir, varando a frente da massa, se encarando com a Sariema, pondo-lhe o dedo no queixo; assim, a Sariema como uma entre tantas deidades preferidas pelo tonitruante deus “com voz de meio-dia”; o tonitruante que nunca pede, ao contrário, berra, grita, impõe. Um tonitruante deus acostumado a determinar o destino dos mortais; que não oferece o rosto ao povo, mas espera os aplausos, a glorificação.

Entretanto, no momento, o deus sertanejo já não se encontra em um espaço apenas mítico como os deuses da Antiguidade. O mítico agora se amálgama ao místico cristão. Há um leilão de santo, e isto indica que alguma coisa está por acontecer. Se o povo está miticamente encapetado com as atitudes de Nhô Augusto, e sedento por prazeres, como nas festas pagãs, há, por outro lado, o Tião leiloeiro, mensageiro do Deus monoteísta, lembrando àquela multidão o aspecto sagrado do evento: "— Respeito, gente, que o leilão é de santo!..." Maior do que a grandeza de Nhô Augusto é a grandeza do Sagrado.

Isto impõe reafirmar que o início da narrativa remete simbolicamente ao momento de transição, que caracterizou uma passagem: o paganismo politeísta cedendo espaço aos austeros preceitos da fé monoteísta. Preceitos esses fortes, para os quais o próprio herói Augusto Matraga, rebaixando a sua aura mítica, se curvou servilmente, abafando a arrelia. “— Sino e santo não é pagode, povo! Vou no certo... Abre, abre, deixa o Tião passar!” E o povo, surpreendido com a atitude de Nhô Augusto, acalmou-se. O capiauzinho enamorado chamou a sua amada Tomázia, porque para ele ela não era a Sariema, para saírem dali, aproveitando a confusão que se estabelecera — confusão como significante de espaços dogmáticos que se superpõe —; evidentemente, o capiauzinho não conseguiu seu intento, simplesmente porque ainda não chegara o momento do deus pagão sertanejo desmantelar-se juntamente com o seu Olimpo. O Zeus tonitruante sertanejo ainda não se vê ameaçado e separa-os com uma pranchada de mão. Não sabe o capiauzinho que todas as deidades do sertão pertencem ao Senhor-de-terra? Nhô Augusto, o Todo-Poderoso, rompente, mítico, “alargou no tal três pescoções: — Toma! Toma! E toma!... Está querendo?...

O narrador, por enquanto diegético e observador, distanciado dos acontecimentos e, por isto mesmo, consciente de todos os detalhes da narrativa, registra a cena, captando todos os ângulos do tumulto que se instaurou após a iniciativa de briga de Nhô Augusto. O narrador está atento ao detalhe, porque sua função, neste primeiro momento, é reproduzir uma narrativa memorialista, continuar uma tradição (como herdeiro do “ontem eterno”), levar aos pósteros as experiências de vida do povo sertanejo. Por estas razões, ele busca em um passado remoto o modelo de seu herói. O sertão tem suas raízes no mítico. O sertão possui matéria mítica ainda em estado primitivo. Apenas o mundo circundante é outro. Não existe mais a verdade dos antigos, e as experiências de vida comunitária foram suplantadas pela degradação do homem moderno.

Assim, penso nesse início como um momento de transição: Nhô Augusto um herói à moda antiga, um semideus (mítico-pagão), depois, "meio homem e meio santo" (místico-cristão); Sariema (uma das inúmeras deidades do sertão requisitadas pelo Senhor-Todo-Poderoso); Dionóra (a “nora de deus”; a traída e sofrida Hera), consorte legítima e desprezada; Quim Recadeiro (Hermes, o Mensageiro), mensageiro do Destino e mensageiro do Mundo; o sertão como espaço mítico/místico, cenário da memória e futuro palco de acontecimentos insólitos, os quais, por ora, jazem inativos nos compartimentos da recordação.


MACHADO, Neuza. O Narrador Toma a Vez: Sobre A Hora e Vez de Augusto Matraga de Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: NMachado, 2006 – ISBN 85-904306-2-6

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