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segunda-feira, 6 de setembro de 2010

SEMIOLOGIA DO SERTÃO: UM DEMIURGO QUE GARANTE TUDO

NEUZA MACHADO


SEMIOLOGIA DO SERTÃO: UM DEMIURGO QUE GARANTE TUDO

NEUZA MACHADO


“Então, tudo estava mesmo muito mudado, e Nhô Augusto, de repente, pensou com a idéia muito fácil, e o corpo muito bom. Quis se assustar, mas se riu: — Deus está tirando o saco das minhas costas, mãe Quitéria! Agora eu sei que ele está se lembrando de mim...” (A Hora e Vez de Augusto Matraga)

Ao lado da diegésis com todas as suas noções referenciais (personagens, o posicionamento destes no espaço da narrativa, o enredar-se em acontecimentos esperados ou inesperados), há as imagens do texto: imagens imitativas e imagens conotativas. As imagens imitativas não se ligariam propriamente ao texto-objeto ― cópia da natureza ―, seriam uma representação da natureza por meio de uma imaginação rica e particular. Essas imagens imitativas, apreendidas na narrativa roseana, possuem um poder todo especial: colocam-se como representação — função exclusiva do texto como cópia da natureza —, trazendo em si o poder de invenção. As imagens conotativas formam a realidade estética propriamente dita, espaço opaco, no qual se vislumbram todos os questionamentos burgueses, o espanto existencial do narrador, sua atitude paradoxal transferindo para o personagem Nhô Augusto sua face problemática, porque, narrando as transformações de vida do personagem principal, revela suas próprias transformações existenciais. O alter ego do Artista Ficcional retoma o passado e recria o personagem, assim revela suas próprias transformações na vida e na arte. O alter ego do Artista Ficcional retoma o passado e recria o personagem à sua imagem e semelhança. Por intermédio do personagem recompõe a sua face sertaneja, o que ele possivelmente teria sido se permanecesse no sertão de Minas Gerais. O personagem representa as suas raízes sertanejas, é um fragmento de seu íntimo existencial, ou melhor, o painel de vários fragmentos de seu ser. O personagem representa um trecho de uma história pessoal que não foi significado racionalmente, mas que está devidamente registrado no universo das probabilidades.

Evidentemente, no início da narrativa há imposições ideológicas — sociais e religiosas — direcionando o ato de narrar, mas, graças aos questionamentos burgueses, o narrador roseano modifica sua forma de criar o ficcional. Revigorado por um novíssimo juízo (Bachelard: juízo de descoberta), poetiza as recordações do sertão, inventa uma nova face para Nhô Augusto quando este procura acertar o caminho do retorno ao arraial do Murici, “caminho do que houve e do que não houve”, como o Artista diria mais tarde em Grande Sertão: Veredas por intermédio de Riobaldo. O ato de narrar necessita objetividade, e a realidade estética se estrutura a partir da ambiguidade e do subjetivismo. O narrador roseano, descrevendo o retorno de Nhô Augusto, deixa-se enredar pelo fluxo da memória. Não há muita coerência na descrição do sertão nas sequências finais porque o narrador vivenciou o sertão. E por ser nato do sertão, suas lembranças estão replenas de sentimentos desencontrados. “Tudo miúdo, recruzado”, como diria mais tarde o já citado Riobaldo, outro duplo do Artista de origem sertaneja. As lembranças do puro passado vêm chegando aos arrancos, fazendo-o caminhar em ziguezague, como caminha Nhô Augusto, levado pelo instinto de direção do burrico. Esse caminhar desencontrado distingue-se pelo registro das impressões do sertão, impressões marcantes, descrições miúdas da natureza; sertão metafísico captado no entrecruzar das recordações. O dito sertão roseano é um mundo repleto de experiências, mas, também, se vale dos amplos domínios da realidade poético-ficcional.

"A narrativa estrutura uma proposição de realidade, no entanto não cria a realidade objetiva. A criação da proposição de realidade da existencialidade humana é privilégio da dinâmica do real (natureza, Deus), por isso, a narrativa se contenta em estruturar, por um processo mimético, uma proposição de realidade ficcional” (Anazildo Vasconcelos).

A narrativa estrutura “uma proposição de realidade”, mas "não cria a realidade objetiva". Já se encontra convencionado que toda narrativa quer-se verdadeira, almeja refletir o mundo em todas as gradações possíveis, e, no entanto, o mundo representado será sempre ficcional. Neste paradoxo instaura-se a grandeza do literário. A narrativa ficcional-arte, ao passar pelo processo de criação, passa também por um processo seletivo, ou seja, o narrador transmite somente as diretrizes narrativas do plenipotenciário do ato de narrar, demiurgo de um mundo feito à sua imagem e semelhança; mundo que ultrapassa as barreiras da História, alcançando as dimensões do Absoluto.

Em uma notável ENTREVISTA, diz Guimarães Rosa ao crítico alemão Günter Lorenz:

“Escrevendo, descubro sempre um novo pedaço de infinito. Vivo no infinito; o momento não conta”.

“Sou escritor e penso em eternidades”.

“Como já lhe revelei, estou buscando o impossível, o infinito”.

Para revelar o mundo ficcional, o Narrador roseano (meados do século XX) utiliza-se de seu próprio imaginário; apropria-se de um discurso metafórico, de referências sígnicas, conduzindo um discurso tenso e comovido, fazendo o leitor acompanhar (e compartilhar) as peripécias da narrativa com emoção e prazer. Este se sente transportado para uma outra realidade, que só naquele momento se descortina e lhe traz verdades nunca antes imaginadas. Eis o processo mimético atuando. Nesse momento, a realidade ficcional é tão ou mais verdadeira do que a realidade histórica. O mundo das aparências é desmascarado por meio do processo literário. Nesse momento, o leitor descobre o verdadeiro real da realidade. Agora não se percebe mais a emoção do leitor atuando, é a razão do leitor que se evidencia; é o intelecto do leitor que apreende a(s) mensagem(s) do Artista. Adorno afirma que a Arte, além de reproduzir a realidade, dá forma a um outro tipo de realidade. Por intermédio desse processo, mimético, compreende-se a proposta de realidade ficcional.


MACHADO, Neuza. O Narrador Toma a Vez: Sobre A Hora e Vez de Augusto Matraga de Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: NMachado, 2006 – ISBN 85-904306-2-6

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