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quarta-feira, 15 de setembro de 2010

FICÇÃO ROSEANA: INTERCÂMBIO SUTIL COM O INVÓLUCRO MÍTICO

NEUZA MACHADO



FICÇÃO ROSEANA: INTERCÂMBIO SUTIL COM O INVÓLUCRO MÍTICO

NEUZA MACHADO


Ainda repensando analiticamente e reflexivamente a narrativa A Hora e Vez de Augusto Matraga de Guimarães Rosa, torna-se necessário observar como há um intercâmbio sutil com o arcabouço mítico-antigo na primeira sequência (sintagmática).

O personagem Nhô Augusto, ao retornar com Sariema em direção ao Beco do Sem-Ceroula, atravessa um cenário mítico/místico ― as Idades do Mundo se superpõem e se mesclam no sertão mineiro ―, um cenário rústico iluminado por "lanterninhas e muita luz de azeite". O “herói” sertanejo abandona a deidade Sariema no meio do caminho — atitude dos que se julgam poderosos — e desce a ladeira (sozinho).

“Lá em baixo, esbarrou com o camarada, que trazia recado de D. Dionóra: que Nhô Augusto voltasse, ou ao menos desse um pulo até lá — à casa dele, de verdade, na Rua de Cima —, porque havia ainda muito arranjo a ultimar para a viagem, e ela — a mulher, a esposa — tinha uma ou duas coisas por perguntar...” (A Hora e Vez de Augusto Matraga)

Nhô Augusto “nem deixou o mensageiro acabar de acabar” e o obriga a retornar com outro recado, dizendo que não iria, e que era para Siá Dionóra e a menina retornarem para o Morro Azul. Depois, Nhô Augusto saiu em busca “de qualquer luz em porta aberta, aonde houvesse assombros de homens, para entrar no meio ou desapartar” (A Hora e Vez de Augusto Matraga).

Este trecho revela um personagem (mítico) ansioso por contendas e apresenta o um Olimpo sertanejo, representado no povoado pela Rua de Cima, e, no campo, pelo Retiro do Morro Azul. Quim Recadeiro poderá ser repensado como a encarnação moderna da figura de Hermes, o Mensageiro dos deuses. Dona Dionóra “que tinha belos cabelos e olhos sérios”: esta frase remete a uma expressão à maneira de Homero, na Ilíada, ao se referir a Hera, esposa de Zeus: “a deusa dos olhos bovinos” (cf. HOMERO, op. cit.). Dona Dionóra, a esposa traída, que conhecia e temia os repentes de Nhô Augusto: “duro, doido e sem detença, como um bicho grande do mato”. Nhô Augusto, a encarnação do homem primitivo para quem o ato de matar era um procedimento natural. Ele “matava mesmo, como dera conta do homem da foice, pago por vingança de algum ofendido”. É importante lembrar, nesta minha apreciação, que o herói mítico não poupa a vida de seus inimigos. Dona Dionóra resolveu abandonar o Olimpo matrimonial (cenário de grandes sofrimentos) e acompanhar seu Ovídio Moura, símbolo de felicidade. Novamente, o Quim, retornando com a notícia do abandono da Dionóra, "com a notícia de que a casa estava caindo".

Eis a queda do Olimpo pagão e a ascensão do monoteísmo hebraico e, posteriormente, cristão.

O início da narrativa até à queda e a segunda sequência (na qual encontra-se o "herói" adotando uma nova estratégia existencial) simbolizam as “experiências de vida” da comunidade do sertão, material precioso que fundamenta a vida de um povo. As “experiências de vida”, assinaladas por Walter Benjamin em “O Narrador”, encontram-se registradas na memória, e é exatamente a memória do narrador roseano que insiste em ressuscitar o herói, enquanto herdeiro de um nome ilustre, e, consequentemente, em permanecer fiel às tradições do sertão de Minas Gerais.


MACHADO, Neuza. O Narrador Toma a Vez: Sobre A Hora e Vez de Augusto Matraga de Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: NMachado, 2006 – ISBN 85-904306-2-6

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