Quer se comunicar com a gente? Entre em contato pelo e-mail neumac@oi.com.br. E aproveite para visitar nossos outros blogs, "Neuza Machado 1", "Neuza Machado 2" e "Neuza Machado - Letras".

terça-feira, 28 de setembro de 2010

UM FICCIONAL PERSONAGEM “AFAMADO” PARA A TRANSFORMAÇÃO DISCURSIVA DO NARRADOR

NEUZA MACHADO


UM FICCIONAL PERSONAGEM “AFAMADO” PARA A TRANSFORMAÇÃO DISCURSIVA DO NARRADOR

NEUZA MACHADO


“O bando desfilou em formação espaçada, o chefe no meio. E o chefe — o mais forte e o mais alto de todos, com um lenço azul enrolado no chapéu de couro, com dentes brancos limados em acume, de olhar dominador e tosse rosnada, mas sorriso bonito e mansinho de moça — era o homem mais afamado dos dois sertões do rio: célebre do Jequitinhonha à Serra das Araras, da beira do Jequitaí à Barra do Verde-Grande, do Rio Gavião até aos Montes-Claros, de Carinhanha até Paracatu, maior do que Antônio Dó ou Indalécio; o arranca-toco, o treme-treme, o come brasa, o pega-à-unha, o fecha-treta, o tira-prosa, o parte-ferro, o rompe-racha, o rompe-e-arranca: Seu Joãozinho Bem-Bem” (A Hora e Vez de Augusto Matraga).

O poder de seu Joãozinho Bem-Bem é especial: como já foi observado em sua descrição, irradiava também uma luz carismática (lenço azul, dentes brancos). Mas não carisma religioso. Seu carisma provinha de sua força, destemor, coragem e desapego a bens materiais (carisma guerreiro-ficcional). Brigava e matava, mas só se houvesse motivos. Apadrinhava as brigas dos amigos ou, então, brigava e matava por motivo de política. Seus homens o obedeciam cegamente e, se fosse preciso, morreriam por ele. Costumava dizer: “Gente minha só mata as mortes que eu mando, e morte que eu mando é só morte legal!” (Op. cit).

Como personagem carismático guerreiro, vivia desvencilhado dos laços familiares, não ligava para as mulheres. “E as moças... Para mim não quero nenhuma, que mulher não me enfraquece: as mocinhas são para meus homens!” (Op. cit)

O narrador se vale deste novo personagem para operar as modificações necessárias no plano do discurso. Agora, Nhô Augusto se encontra envolvido por atitudes de vida conflitantes, incertezas quanto ao futuro. O aspecto moral da narrativa memorialista desaparece e o narrador se esforça por ordenar o desarticulado. Os conflitos e incertezas refletem a "desorientação" (Walter Benjamin) do discurso do narrador. Se antes, nas sequências iniciais, as etapas de vida eram previsíveis, agora nem mesmo o narrador do século XX saberá como se dará o desfecho. Ninguém, inclusive o leitor incomodado, saberá prever o que virá a seguir. A partir da chegada de seu Joãozinho Bem-Bem e seu bando, o verdadeiro dono do narrar vai esforçar-se ao máximo para dar sentido às sensações que o incomodam e que acontecem em seu mundo ficcional.

Com a chegada de seu Joãozinho, a tentação voltou a perseguir Nhô Augusto. Seu Joãozinho percebeu que o proprietário da casa não era tão pacífico como demonstrava e começou a tentá-lo para que retornasse às brigas. Nhô Augusto provou novamente as delícias do antigo poder do “ontem eterno”: pegou em arma (pegar em arma e fazer pontaria = desejo de alcançar o poder totalitário), atirou em um pássaro para experimentar a pontaria (para exercitar o seu poder de mando). Logo depois se arrependeu e retomou a rezaria. Ficou triste novamente, acabrunhado. Na hora da partida do bando, seu Joãozinho ainda tenta convencer Nhô Augusto.

“Mano Velho, o senhor gosta de brigar, e entende. Está-se vendo que não viveu sempre aqui, nesta grota, capinando roça e cortando lenha. (...) Quer se amadrinhar com o meu povo? Quer vir junto?

— Ah, não me tenta, que eu não posso, seu Joãozinho Bem-Bem” (A Hora e Vez de Augusto Matraga).

À interferência do jagunço Joãozinho Bem-Bem, Nhô Augusto, enquanto herdeiro do "poder de mando", se percebe conflituado. Seria o antigo poder do “ontem eterno” lhe corroendo a alma? “Era só falar, era só bulir com a boca que seu Joãozinho Bem-Bem e seu bando acabavam com o major Consilva. Mas — qual! — aí era que se perdia mesmo, que Deus o castigava com mão mais dura...

Nhô Augusto se percebe atado à sua antiga penitência. “— Agora que eu principiei e já andei um caminho tão grande, ninguém me faz virar e nem andar de-fasto!

Lukács fala do indivíduo problemático do romance moderno e do mundo que o cerca. Como imaginar Nhô Augusto um personagem conflituado, se se conhece a pureza de seu espaço existencial (o sertão anterior aos dogmas da burguesia)? Ora, personagem e espaço, no sertão roseano, são puros. O narrador de meados do século XX, no momento personagem plenamente atuante, é quem reflete o impuro mundo moderno. Ele perde contato com a pureza primitiva do sertão mineiro, perde contato com as idéias disseminadas pela experiência de um povo ímpar. A aspiração do personagem, de ter “a sua hora e vez”, está problematizada, porque o problemático e solitário é o narrador de meados do século XX. Este é o indivíduo ilhado em um mundo de conformismo e convenção (sem permissão histórica para modificar a realidade que o rodeia). Quem busca valores humanos autênticos e não os encontra? O narrador de meados do século XX. Ele conheceu um imaculado sertão e era também um imaculado ser. Posteriormente, conheceu o mundo burguês e seus valores inautênticos e degradou-se. Buscou novamente a primitiva autenticidade do sertão por meio das lembranças e da memória, mas não conseguiu encontrá-la. Na primeira etapa da narrativa memorialista (não confundir com narrativa de memórias), o narrador do século XX deixa entrever momentos de degradação nos personagens. Suas lembranças se encontram maculadas pela degradação do mundo burguês moderno (capitalista). Afastando-se do sertão, rompe com o primitivo.


MACHADO, Neuza. O Narrador Toma a Vez: Sobre A Hora e Vez de Augusto Matraga de Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: NMachado, 2006 – ISBN 85-904306-2-6

Nenhum comentário: