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sábado, 18 de setembro de 2010

A HERANÇA DO ONTEM ETERNO

NEUZA MACHADO


A HERANÇA DO ONTEM ETERNO

NEUZA MACHADO


Continuando a repensar a questão da “autoridade do ontem eterno”, na narrativa ficcional A Hora e Vez de Augusto Matraga de Guimarães Rosa ― apropriando-me de algumas assertivas de Max Weber ―, posso inferir que Nhô Augusto herdou um pequeno Império (representação do “ontem eterno”) e, durante algum tempo, nele reinou. Enquanto existiu a sua autoridade, foi o personagem a representação do poder patriarcal de Hegemônica Medieval Era. Observo isto pela sua atitude superior ao arrematar, no leilão, a Sariema, aquela que era muito amada pelo capiauzinho “enamorado”, capanga do major Consilva.

O povo (ainda submisso às leis patriarcais) evidentemente aplaudiu e glorificou a atitude do Poderoso Nhô Augusto.

O poder e prestígio do personagem, até ali, continuavam inalterados. Mas, havia um outro personagem ambicionando sua posição privilegiada e procurando as brechas para derrubá-lo: o major Consilva, “velho” inimigo da família Esteves.

Recorde o Leitor a resposta de Nhô Augusto, quando o Quim Recadeiro retornou dizendo que o major havia “comprado” os bate-paus: “Major de borra! Só de pique, porque era inimigo do meu pai” (A Hora e Vez de Augusto Matraga)

O major procurou e encontrou um meio de desmoralizá-lo. Sinal de que o dito poder não estava bem edificado e ameaçava ruir: mulheres, pancadarias, jogos, dívidas; tudo isto proporcionava a sua decadência.

O poder social do personagem se encontrava ameaçado por um inimigo mais perigoso que o major Consilva: o contra-poder econômico da decadência do sertão. Ora, se aquele Senhor poderoso e um chefe comunitário respeitado estava prestes a perder tudo o que possuía (família, terras), era natural que outro reivindicasse sua glória e prestígio.

O narrador roseano em princípio impõe-se e impõe-nos visualizar a figura imponente de Nhô Augusto, mas logo depois do leilão mostra que ele está a poucos passos da decadência.

As sucessivas transformações, ao longo da análise esclarecedora, são significantes dos vários estágios de vida estacionados no espaço do sertão, sobrepondo-se infinitamente, imunes à ação do tempo.

O narrador ficcional do século XX conseguiu apreender essas sutilezas, subjacentes em um espaço onde as Idades do Mundo se confundem e se completam. O narrador interativo do século XX apreendeu as várias etapas do tempo, entrelaçando-se e rejeitando-se, mas prestes a se anularem, graças à fragmentação do mundo moderno. Etapas de tempo que se sobrepuseram, se eternizaram e se eternizarão, enquanto houver um relator que as conte por intermédio da memória ― ou através da recordação ― e um ouvinte que compactue com seu ato de narrar.

A queda do personagem e suas etapas de vida representam as transformações de uma determinada burguesia que se acomodou nos pequenos vilarejos do sertão de Minas Gerais. Já não há Senhores-de-terra poderosos, mas as grandes famílias que comandavam politicamente essas localidades ainda permanecem dominando, engajadas em partidos políticos e alardeando suas origens. Os atos de heroísmo ou covardia são fatos do passado e quase não há narradores para relembrá-los.

Por este prisma confirmo que, nesta narrativa especialmente, o narrador de Guimarães Rosa apresenta o momento de crise vivido por seu personagem Nhô Augusto, um “herdeiro do ontem eterno” brasileiro, em acordo com a crise sócio-econômica que ocorreu no Brasil do século passado, principalmente na sociedade agrária sertaneja a partir dos anos trinta do século XX. O inevitável impasse, as mudanças existenciais do personagem e a própria transformação discursiva do narrador roseano representaram e representam, inclusive, a mudança de poder político; ainda: o contra-poder se transformando em poder de fato.

“Quando chega o dia da casa cair — que, com ou sem terremoto, é um dia de chegada infalível — o dono pode estar: de dentro, ou de fora. É melhor de fora! E é a só coisa que um qualquer-um está no poder de fazer. Mesmo estando de dentro, mais vale todo vestido e perto da rua. Mas, Nhô Augusto, não: estava deitado na cama — o pior lugar que há, para se receber uma surpresa má” (A Hora e Vez de Augusto Matraga)

O major, personificação do contra-poder que aspira ao poder, em A Hora e Vez de Augusto Matraga, narrativa ficcional escrita por Guimarães Rosa em meados do século XX, “compra” os capangas de Nhô Augusto. O poder do herói sertanejo do século XX, enquanto um herdeiro do “ontem eterno”, ruíra.


MACHADO, Neuza. O Narrador Toma a Vez: Sobre A Hora e Vez de Augusto Matraga de Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: NMachado, 2006 – ISBN 85-904306-2-6

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