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domingo, 5 de setembro de 2010

SEMIOLOGIA DO SERTÃO: O PLANO SUBJETIVO

NEUZA MACHADO


SEMIOLOGIA DO SERTÃO: O PLANO SUBJETIVO

NEUZA MACHADO


A Hora e Vez de Augusto Matraga de Guimarães Rosa, enquanto texto demonstrativo de arte ficcional, desenvolve criativamente o plano subjetivo: há um narrador-personagem que vivencia profundamente todos os acontecimentos. Este ser assinalado não se encontra distanciado de seu narrar. Se no início da narrativa se observa este distanciamento, quase ao estilo épico, apreende-se, posteriormente, a sua transmutação apoderando-se da matéria mítica, deixando transparecer seus questionamentos, sua fragmentação interior, seu ponto de vista em relação ao sertão. Há características líricas, poéticas, difíceis de serem desapartadas do texto ficcional. Portanto, além do narrar sintagmático, linear, em prosa, há, em A hora e vez de Augusto Matraga, o ficcional paradigmático, intermediando, o plano discursivo (o texto propriamente dito), nos quais se detectam características do discurso poético, características líricas: universos fragmentados, subjetivos, singulares, em que o narrador se afasta, por diversas vezes, da diegésis, para enredar-se em seus próprios devaneios e circunlóquios (alheio à matéria enfocada, observando o sertão pelo ponto de vista mágico do Poeta). Todas estas características formalizam um sertão poético, em que as recordações suplantam a objetividade da memória.

Nhô Augusto deixa de ter importância no esquema narrativo, torna-se apenas um pretexto ficcional para que o narrador recupere suas lembranças e possa trazer para seu presente uma realidade já modificada pelo crivo dos sentimentos interiorizados, pessoais. A história do personagem, como representante da ideologia dominante, perde seu narrador memorialista, porque o verdadeiro narrador é um cidadão burguês capitalista (e, aqui, é importante ressaltar, não há nenhum desmerecimento para com o escritor), e não há como modificar sua história pessoal e a História do Mundo. Não é possível valer-se agora de um discurso objetivo, linear, para fazer-se entender; há a necessidade de se valer de sua criatividade ficcional especialíssima, e esta não faz parte do universo diegético. Nesse momento, o narrador se transforma, mimetiza o passado, visualiza o sertão através da recordação (característica do lírico), através de um estado anímico que, segundo Staiger, faz parte de um remanescente da existência paradisíaca. A linguagem sertaneja (mineira) possui musicalidade, entoação, criatividade, que escapam às diretrizes linguísticas usuais. E o Artista explora com maestria estas características. Não se presta atenção ao conteúdo da frase, os volteios melódicos (mentais) do narrador são mais instigantes. Por isto, sua narrativa, em princípio aparentemente tão simples, passa a apresentar um alto grau de complexidade: há a lógica da ficção, isto é certo, mas, dentro de um singular ilogismo poético. O discurso poético associado ao discurso ficcional é apreendido nas últimas sequências, e permanece até a sequência final como um perfume sutil. O Artista, no final apoteótico, é poderosamente o dono de seu narrar. É aquele cantor lírico de que nos fala Staiger, travestido de narrador exemplar, perdido na contemplação de seu inesquecível passado ― e seu passado é o sertão. Segue o curso ondulatório de seus pensamentos cantando/narrando despreocupadamente — assim como Nhô Augusto segue o instinto de direção do jegue —, perfeitamente integrado no todo de seu cantar/narrar. A atitude do personagem-narrador, como conselheiro preso às imposições ideológicas, perdeu sua razão de ser. Não lhe interessa mais ser entendido, ou não; narra as aventuras de Nhô Augusto para si mesmo; recria o sertão, que está vivo em seu imaginário-em-aberto, traz novamente ao coração as recordações de um passado no qual que se misturam verdades e fantasias.

“Até que, pouco a pouco, devagarinho, imperceptível, alguma cousa pegou a querer voltar para ele, a crescer-lhe do fundo para fora, sorrateira como a chegada do tempo das águas, que vinha paralela: com o calor dos dias aumentando, e os dias cada vez maiores, e o joão-de-barro construindo casa nova, e as sementinhas, que hibernavam na poeira, esperando na poeira, em misteriosas incubações. Nhô Augusto agora tinha muita fome e muito sono. O trabalho entusiasmava e era leve. Não tinha precisão de enxotar as tristezas. Não pensava nada. E as mariposas e os cupins-de-asas vinham voar ao redor da lamparina... Círculo rodeando a lua cheia, sem se encostar... E começaram os cantos. Primeiro, os sapos: — “Sapo na seca coaxando, chuva beirando”, mãe Quitéria!... — Apareceu uma jia na horta, e pererecas dentro de casa, pelas paredes... E os escorpiões e as minhocas pulavam no terreiro, perseguidos pela correição de lava-pés, em préstitos atarefados e compridos... No céu sul, houve nuvens maiores, mais escuras. Aí, o peixe-frito pegou a cantar de noite. A casca de lua, de bico para baixo, “despejando”... Um vento frio, no fim do calor do dia... Na orilha do atoleiro, a saracura fêmea gritou, pedindo três potes, três potes, três potes para apanhar água... Choveu.

Então, tudo estava mesmo muito mudado, e Nhô Augusto, de repente, pensou com a idéia muito fácil, e o corpo muito bom. Quis se assustar, mas se riu:

— Deus está tirando o saco das minhas costas, mãe Quitéria! Agora eu sei que ele está se lembrando de mim...” (A Hora e Vez de Augusto Matraga).


MACHADO, Neuza. O Narrador Toma a Vez: Sobre A Hora e Vez de Augusto Matraga de Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: NMachado, 2006 – ISBN 85-904306-2-6

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